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CAPÍTULO IV



 

 — Já lhe disse mais de uma vez, Sophina — Ricki tentava ainda ser paciente —, comidas temperadas e frituras nã o fazem bem a Jaime. Sim, eu sei que os seus filhos gostam, mas eles podem fazer exercí cios fí sicos e Jaime é obrigado a ficar sentado em sua cadeira de rodas.

 — Tenho pena de proibir o menino de comer os churros de, que ele tanto gosta. Aleijado daquele jeito, já lhe restam tã o poucos divertimentos... — respondeu Sophina, muito ofendida por ter sido praticamente expulsa do quarto de Jaime com seus deliciosos churros, tostadinhos e dourados.

 Ricki se enfureceu com a palavra " aleijado" aplicada a Jaime e agarrou o braç o da mulher, afastando-a da porta do quarto.

 — Nã o admito que diga essas coisas para o menino ouvir — vociferou com os olhos verdes brilhando. — Tenho certeza absoluta de que ele Vai voltar a andar, mas precisa sentir-se confiante e estar forte fisicamente para poder tentar. Chamá -lo de aleijado e pendurar amuletos má gicos em seu pescoç o nã o ajudam nada. Jaime nã o é aleijado, entendeu? E nã o vai mais depender de encantamentos de uma bruxa das cavernas para sarar.

 — Você nã o hesitou em usar os encantos desses olhos verdes em cima do patró n. O vale inteiro está comentando. Só uma bruxa poderia tê -lo forç ado a reabrir a piscina e a caseta.

 — Jaime precisa de exercí cios na á gua — rebateu Ricki, controlando a raiva. — Essa é a ú nica razã o para a decisã o de don Arturo. Devo acrescentar que é uma tolice você e os outros empregados acharem que a caseta é amaldiç oada. Tudo o que vã o conseguir com isso é assustar o menino.

 — Você nã o estava aqui quando o velho patró n morreu — disse Sophina gravemente. — Foi naquele covil diabó lico que ele encontrou a carta de dona Conquesta revelando tudo. O choque feriu seu coraç ã o e ele teve um ataque cardí aco. Don Arturo sempre amou muito ao pai, apesar de Leandro ser o filho favorito. Mas os homens sã o assim, sempre amando as pessoas erradas. E é claro que depois a pró pria dona Conquesta se arrependeu do que tinha feito. Na Espanha nã o temos divó rcio. Aqui o casamento só termina com a morte — concluiu Sophina.

 — Quer dizer que dona Conquesta se arrependeu de ter fugido para casar com Leandro?

 — O arrependimento turvava os olhos dela sempre que vinha aqui à granja — disse Sophina, dramá tica. — Leandro era muito bonito, mas a beleza nã o é o mais importante num homem.

 — Era tã o jovem, coitada — murmurou Ricki. — Deve ser horrí vel sentir-se forç ada a um casamento arranjado entre famí lias. Acho que ela fugiu foi da idé ia de um casamento assim e nã o do homem que ia desposar. Mas, quando entendeu isso, já era tarde demais...

 Sophina virou-se e marchou pelo corredor, levando seu prato de churros e deixando Ricki falar sozinha. Ricki suspirou. Nã o era sua intenç ã o desentender-se com a criada, mas as frituras realmente nã o faziam bem a Jaime e a pró pria atmosfera da casa parecia transformar as coisas mais simples em grandes dramas. Sacudiu os ombros, tentando afastar as preocupaç õ es, e, armando um sorriso, retornou ao quarto de Jaime. O menino estava copiando figuras de touros de um livro que Ricki tinha comprado para ele.

 Estava tã o absorto no desenho que nã o percebeu Ricki entrar. Poré m, sú bita-mente, sentiu a presenç a dela e levantou o rosto com um sorriso grave que tocou o coraç ã o de Ricki. A cada dia que passava com o menino aumentava seu desejo de vê -lo de pé, firme e destemido como os jovens peons que corriam pela estâ ncia. Até aquele momento seus cuidados e tratamento já o tinham tornado mais flexí vel e bem menos temperamental.

 Ele a chamava sempre de mi tata e, quando Ricki massageava suas costas e suas pernas com as mã os finas e há beis, ele ria. Algumas vezes, quando ela beliscava seus pé s, Jaime dava chutes reflexos, sem chegar a perceber que estava movendo as pernas.

 

 Um pacote havia sido entregue de manhã. Era bem grande e continha duas caixas vindas de uma grande loja de Sevilha. Numa delas havia meia dú zia de aventais de trabalho, cortados especialmente para Ricki, e na outra um monte de brinquedos de montar para Jaime: aviõ es, barcos, foguetes e um submarino.

 — Vai ser divertido montar tudo isso — disse Ricki, animada. — Você vai ter de agradecer a seu tio por tantos presentes.

 — É — disse Jaime, projetando o lá bio inferior, o que frisava ainda mais a semelhanç a com o tio. — Pena que nã o sejam tintas e pincé is. Era disso que eu precisava.

 — Que ingratidã o, Jaime! — disse com uma severidade nã o costumeira. — Foi muita gentileza do seu tio comprar todos esses brinquedos e você deve agradecer...

 — É. A cortesia... O señ or tio espera isso de mim — concordou friamente, afastando a caixa de brinquedos e examinando os aventais de Ricki.

 Nã o eram brancos como ela esperava que fossem, mas sim de um verde bem clarinho. As medidas tinham sido enviadas junto com o pedido e ela experimentou um deles. Servia perfeitamente e aquela cor parecia menos severa que o branco hospitalar.

 — Entã o, gosta da sua tata, moleque? — disse, dando alguns passos como uma modelo num desfile de modas.

 — Parece uma fotografia en colores — disse ele, sorrindo. — Gosto muito da minha tata verde.

 Ricki nã o pô de deixar de sorrir. Pensava se teria sido uma ironia de Don Arturo escolher a cor verde para os aventais. Será que com isso ele queria dizer que ela ainda estava verde?

 

 A reforma da piscina estava quase pronta e de vez em quando Ricki conseguia convencer seu paciente a dar uma olhada nas transformaç õ es que faziam no jardim e na caseta. Don Arturo tinha encomendado mobí lia nova para a casa de conchas e ela fora executada por um dos carpinteiros da granja, extremamente há bil nos entalhes. Ricki tinha arranjado mudas de vá rias plantas e os vasos novos vicejavam na estante, no lugar onde antes as plantas de Conquesta tinham secado e morrido. Ladrilhos novos, brilhantes, haviam sido colocados no chã o e ela mesma tinha limpado e polido as conchinhas que circundavam a entrada. Nã o sabia se don Arturo visitava o lugar, mas tentava nã o se lembrar de que ali os sonhos dele tinham morrido.

 Alvarez levava a cadeira de rodas escada abaixo e Ricki trazia o menino montado à s costas.

 Quase nunca encontravam o chefe da casa, sempre ocupado no cuidado das plantaç õ es e dos moinhos de azeite, mas uma manhã cruzaram com ele na escada, quando iam descendo. Don Arturo estacou subitamente diante de uma janela, as cores do vitral projetadas sobre sua face morena. Seu rosto turvou-se ao ver o menino montado à s costas de Ricki. Com um gesto dispensou Alvarez; depois, com gestos firmes e cuidadosos, carregou o menino.

 — De agora em diante — disse secamente — Alvarez leva a cadeira de rodas e depois volta para carregar o menino. Nã o deve esforç ar-se alé m da conta, srta. O’Neill. A escada é muito í ngreme e os degraus sã o de pedra.

 — Jaime é bem leve perto das pessoas que já tive de carregar no hospital — respondeu, procurando controlar as emoç õ es que se inflamavam.

 — Devo lembrá -la de que nã o trabalha mais no hospital. — O tom da voz era impessoal. — Esta é minha casa...

 — E devo cumprir ordens, é claro! Muito bem, señ or, na volta de nosso passeio Alvarez levará Jaime para cima.

 Os olhos escuros penetraram o rosto dela, examinaram o avental verde e entã o ele se voltou, descendo com Jaime para o hall. Ricki seguiu atrá s, olhando para o rosto do menino acima do ombro do tio. O garoto fez uma careta, mas o rosto dela permaneceu rí gido. Sentiu-se estranhamente irritada por Jaime demonstrar sua antipatia de forma tã o rude.

 Enquanto empurrava a cadeira de rodas pelo pá tio, aproveitou para repreendê -lo severamente, nã o sentindo mais nenhuma vontade de visitar a piscina e a caseta.

 — Você també m nã o gosta dele. Por que é que eu tenho de gostar? — perguntou Jaime timidamente.

 — Don Arturo é seu tio e tutor. Você lhe deve respeito, Jaimito. Ele gosta de você como se fosse... como se fosse seu filho.

 — Sou filho de Leandro de Cazalet — retrucou Jaime com firmeza. —Meu pai e minha mã e morreram por causa de don Arturo. Eu o odeio!

 — Jaime! Que coisa mais terrí vel! — exclamou Ricki, chocada. —Quem foi que lhe disse isso?

 — É segredo — murmurou ele.

 — A pessoa que lhe disse isso mentiu vergonhosamente — disse ela, tentando se convencer.

 Era inegá vel que Leandro e a mulher tinham morrido no carro de Don Arturo, mas era indigno pensar que ele tivesse recorrido a essa vinganç a cruel para limpar sua honra. Essa idé ia tinha de ser enterrada no fundo dos pensamentos e mantida a distâ ncia.

 — Jaime — disse ela, juntando seu rosto ao do garoto —, nã o se deve odiar as pessoas a nã o ser que se tenha certeza de que elas merecem isso. Seu tio amava sua mã e e seria absolutamente incapaz de causar-lhe algum dano. Portanto, nã o se deixe influenciar por essas histó rias maldosas.

 O menino afastou o rosto e olhou-a dentro dos olhos. Os lá bios tremeram e os longos cí lios oscilaram.

 — Fico tremendo quando ele chega perto de mim — sussurrou. — Por quê?

 — Porque ele é orgulhoso como um prí ncipe sarraceno e tã o duro quanto o aç o das espadas de Toledo! — Ricki se pô s de pé com uma risada e empurrou a cadeira de rodas para perto de uma roseira branca. Havia um banco de pedra e ela se sentou. Contou entã o uma histó ria inventada na hora, como se fosse uma aranha tecendo uma teia prateada.

 A lenda imaginada por ela tinha um cavaleiro de armadura escura que recebia uma rosa de presente e Jaime ouvia cada palavra com o dedo na boca e os olhos arregalados como uma corujinha. Mais uma vez, Ricki examinou aquele rostinho tã o tí pico dos Cazalet, surpresa com a enorme semelhanç a com o tio. Uma semelhanç a que devia ter ferido como um espinho o coraç ã o de sua mã e, se era realmente verdade que ela tinha se arrependido de fugir com Leandro ao perceber que era don Arturo quem amava!

 — O que é uma á rvore suspirosa? — interrompeu o menino.

 — Oh! — Ricki surpreendeu-se, pois continuara a contar a histó ria mesmo com os pensamentos em outras coisas. — É uma á rvore especial onde os amantes se encontram para sonhar com o futuro.

 — E para se beijar — acrescentou, sabido. — As pessoas sempre se beijam quando amam. Beijam e brigam.

 Ela o encarou, procurando descobrir se seus pais teriam brigado diante dele.

 — Ricki, olhe aquela borboleta! Ah, eu queria correr atrá s dela.

 Ela viu o inseto brilhando como ouro entre as flores do pá tio e, apesar do enorme impulso de abraç ar o menino contra seu coraç ã o, controlou-se.

 — Querer é poder, Jaimito. Os exercí cios que estamos fazendo estã o deixando suas pernas e costas bem fortes e, quando a sua mente aceitar o fato de que você é capaz de andar, entã o você vai poder andar e correr.

 — Será mesmo, Ricki? — disse, agarrando a mã o dela. — Eu detesto ser como um bebezinho que tem de ser empurrado na cadeira para todo lado. Queria ser como Paç o, que monta nos pô neis e escala as montanhas.

 — Se você deseja mesmo essas coisas com toda a sua vontade e todo o seu coraç ã o, nada o impedirá de consegui-las.

 — Verdade? — Os grandes olhos escuros eram interrogativos e desta vez ela abraç ou contra o peito o corpinho magro do menino.

 — Agora é hora da gente entrar para o almoç o — disse. — Vamos ter pudim de corvo para sobremesa.

 Assim ela tinha batizado o arroz-doce com calda escura de ameixas pretas. O menino riu muito e ela agradeceu aos cé us o senso de humor que herdara do pai e que facilitava tanto seu contato com as crianç as. E Jaime dependia daquele contato mais do que de qualquer outro.

 Depois do almoç o, colocou o menino para dormir a siesta e trocou de roupa. Escolheu um vestido leve de algodã o, listrado em tons de bege e marrom. Calç ou seus sapatos de salto baixo e colocou um chapé u de abas largas. Tinha decidido dar um passeio até a cidadezinha. As lojas abriam de novo depois das quatro horas e ela tinha de comprar algumas coisas e mandar uma carta ao pai.

 Ele nã o tinha achado nada estranha a decisã o dela trabalhar na Espanha, pois tinha també m o seu lado aventureiro, mas escrevera uma carta aconselhando: " Cuidado com esses senhores latinos. É bem capaz de um deles resolver escolhê -la para sua señ orita e eu nã o creio que você vá gostar de viver reclusa numa casa parecida com um convento".

 Ricki tinha respondido com outra carta, dizendo que nã o tinha nenhuma intenç ã o de se envolver com algum româ ntico latino. De qualquer forma, ela descobrira apenas dois desses senhores. Seu patrã o, que decididamente nã o tinha nenhuma intenç ã o de fazê -la a sua señ orita, e o avô de Jaime — criador de touros de arena —, que ainda nã o tinha tido a oportunidade de conhecer pessoalmente.

 Era essa carta que levava agora na bolsa a tiracolo. Desceu correndo as escadas e atravessou a casa, envolta na preguiç a da siesta. O pá tio estava vazio. Todos os trabalhadores se recolhiam para descansar umas duas horas, mas Ricki nã o tinha muita certeza sobre don Arturo. Achava que ele nã o tinha o há bito de dormir à tarde, mas a porta de seu escritó rio estava sempre fechada e ela apenas o imaginava sentado à mesa, conferindo documentos. Tinha visto a sala uma vez. A enorme escrivaninha de madeira escura entalhada combinava com os lambris da parede. As cadeiras eram estofadas em couro e nã o pareciam muito confortá veis. Havia centenas de livros em estantes envidraç adas e, sobre a mesa, uma mã o esculpida em bronze, usada como peso de papel, um tinteiro de prata batida e uma rosa branca num vazinho, renovada todos os dias.

 Era uma sala austera e Ricki a batizou para si mesma de " ninho do dragã o". A rosa era o ú nico toque mais leve e ela achava que devia significar alguma coisa especial para don Arturo. Talvez a beleza de uma mulher e a dor que ela causara como um espinho cravado no coraç ã o.

 Ricki cruzou o pá tio principal onde os cã es dormitavam à sombra das carroç as, o ar cheio dos odores acres dos está bulos e currais. Passou pela casa da guarda e sob o grande arco da entrada, sobre o qual vá rios lagartos verdes descansavam imó veis, fundindo-se à s pedras cheias de limo. A esquerda ficavam os barracos onde se fazia a seleç ã o de azeitonas de mesa, e um pouco alé m os moinhos de azeite, onde as polpas de oliva eram prensadas, enchendo de ó leo dourado os imensos barris. Acres e acres de terra estendiam-se debaixo do sol forte, as oliveiras frondosas e escuras recortando-se contra o solo avermelhado. Ricki, poré m, preferia as plantaç õ es de amoreiras, onde se cultivavam colô nias de bichos-da-seda. Passou debaixo de algumas dessas á rvores e saiu para a estradinha poeirenta que ondulava pelo vale.

 O chapé u protegia-lhe a cabeç a e o rosto no calor quase insuportá vel da tarde. Era delicioso sentir aquele belo vale como propriedade sua. Enquanto caminhava na tarde dourada e luminosa, olhava as flores que coloriam a vegetaç ã o.

 As Sierras elevavam para o cé u a sua coroa dentada de picos altos, cobertos de neve mesmo no inverno mais quente. Era dali que soprava aquele vento gelado depois que o sol se punha. E esses extremos contrastes do clima andaluz faziam seu povo oscilar da alegria à rusticidade.

 Ao longe, sobre uma protuberâ ncia rochosa, via-se a silhueta dramá tica das ruí nas de um castelo mourisco. Ricki resolveu visitá -las. Ouvia ao longe o tilintar dos cí ncerros das ovelhas, mú sica primitiva que sem dú vida embalava, à quela hora do dia, o sono dos pastores. Na grama, os grilos saltavam incessantemente.

 Chegando ao rochedo Ricki viu uma cachoeirinha de á guas frescas e murmure-jantes. Escalou a encosta pedregosa, a bolsa a tiracolo balanç ando contra o corpo, e deteve-se no alto para admirar a vastidã o do vale. Lá ao longe, envolta numa pesada calmaria, a forma maciç a da casa onde agora trabalhava e vivia.

 Um encantamento parecia pairar sobre aquele vale e Ricki sentiu que ele podia significar para ela uma daquelas encruzilhadas da vida de que seu pai sempre falava. Seus pensamentos recuaram para o tempo em que suas raí zes haviam sido arrancadas do solo irlandê s e replantadas na Inglaterra. Era apenas uma crianç a, na é poca, mas suficientemente crescida para se ressentir da transiç ã o de um mundo amado e conhecido para outro, estranho. O tempo tinha acalmado os sentimentos dolorosos, mas aquela inquietaç ã o interior, aquela saudade dos ruí dos e cores de sua terra natal haviam persistido em seu coraç ã o.

 Ali na Espanha, reconheceu, perplexa, sentia como se retornasse à terra mã e. Sorriu, levantou-se e entrou nas ruí nas do castelo. Os restos de uma escadaria subiam para as muretas de vigia e ela escolheu um recesso para sentar-se a sombra de um arbusto que crescia entre as pedras.

 Era um recanto sossegado que havia descoberto num passeio anterior e dali podia admirar a vista e as evoluç õ es dos falcõ es voando contra o cé u azul. Já nã o se perguntava mais se tinha acertado ao resolver ir trabalhar naquele vale selvagem. Havia o afeto de Jaime, os duelos com o tutor do menino e a beleza natural e indomada de que seu espí rito necessitava. Naquele momento nã o trocaria de lugar com ningué m no mundo. Sentia-se sentada no topo do mundo, envolta na calma dourada do sol.

 Nã o ouviu nenhum passo, mas uma pedrinha solta rolou de repente pela encosta das ruí nas e Ricki virou-se, assustada, arregalando os olhos verdes.

 — Oh! É você — disse, aliviada.

 — Isso nã o é jeito de receber um româ ntico andaluz — observou Alvedo, levantando os braç os e deixando-os cair, desanimado.

 — Sinto muito, Alvedo. — Ela sorriu. — Meus pensamentos estavam voando como aqueles falcõ es no cé u e você me assustou. Vem sempre aqui, caballero?

 O tí tulo era uma menç ã o ao chapé u cordobê s que ele estava usando, inclinado sobre os olhos alegres e maliciosos.

 — Achei que você ia estar aqui — disse ele, fazendo um floreio com o chapé u. — Na granja nunca temos tempo de conversar. Tem sempre meu aluno no andar de cima e don Arturo lá embaixo, pairando como uma sombra escura entre nó s. Ele apaga todo o meu ardor, chiquita, mas desde aquele nosso primeiro encontro estou esperando a, oportunidade de dizer que acho você encantadora.

 — Isso é um piropo, nã o? A lisonja da Andaluzia que as mulheres colecionam como pé rolas, mas nunca levam a sé rio...

 O jovem avanç ou alguns passos e veio apoiar-se no muro onde ela estava sentada. Vestia calç a preta muito justa e camisa branca aberta no peio. O chapé u cordobê s estava dependurado nos dedos onde brilhavam dois ané is de ouro, e os sapatos eram finos e muito brilhantes. Os olhos ousados examinaram Ricki dos pé s até os olhos verdes de longos cí lios, mas aquela pele tã o branca nã o corou. Para isso era preciso um outro par de olhos, muito mais escuros, muito mais fortes, que a punham vermelha imediatamente.

 — Qualquer mulher espanhola, señ orita inglesa, poderá informá -la de que o piropo nã o é levado a sé rio, mas dá mais gosto à vida, como a pimenta e o sal temperam a comida. — Sorriu, irô nico, e acrescentou: — Mas eu ia me esquecendo que a comida inglesa é muito sem gosto.

 — Os andaluzos nã o sã o os ú nicos homens lisonjeiros do mundo, señ or. Na Inglaterra conhecia muitos estudantes de medicina e posso falar por experiê ncia pró pria.

 Os olhos dele brilharam diante das ú ltimas palavras. Sua mã o deslizou pela parede de pedra e tocou num leve carinho o braç o dela. Ricki afastou-se imediatamente e ele deu uma gargalhada.

 — Eu sabia que nã o tinha me enganado a seu respeito. As audaciosas é que sã o frias. As mais sensí veis é que tê m de se proteger com uma concha.

 — Ah, entã o o señ or Andrè s é uma grande autoridade no assunto mulheres! — exclamou, irritada. Mas a ironia, na verdade, servia apenas para encobrir quanto ela se abalara com a perspicá cia dele.

 — Nã o, por favor, continue me chamando de Alvedo — disse, ainda sorridente. — Gosto do jeito como você pronuncia. Todas as mulheres deviam ter voz acariciante. Até mesmo uma grande beleza pode ser estragada se a voz nã o tem essa qualidade.

 — Pé rola nú mero dois — disse Ricki. — Desse jeito, vou ter um colar de muitas voltas, quando for embora.

 — Vai embora? — perguntou Alvedo, sobressaltado.

 — Nã o, ainda. Mas, assim que Jaime começ ar a andar, nã o serei mais necessá ria aqui.

 — Entã o você acredita mesmo que o menino vai voltar a andar? — perguntou, sinceramente interessado.

 — Tenho certeza que sim — disse, olhando-o nos olhos e descobrindo nele uma franqueza e interesse que nã o combinavam com a idé ia de algué m que podia estimular o menino a odiar o tio. — A espinha dorsal nã o sofreu nenhum dano permanente — prosseguiu ela. — E nã o há nenhum problema fí sico que o impeç a de andar. O problema é principalmente psicoló gico. Jaime sente uma enorme inseguranç a, devido à perda dos pais. Mas, se ele sentir que é realmente querido pelo tio, poderá superar isso. Algué m insinuou ao menino que don Arturo provocou voluntariamente o acidente que matou seus pais e o deixou paralí tico.

 — Era inevitá vel que o menino acabasse ouvindo rumores — disse Alvedo com firmeza. — E nã o vamos brincar de cegos, chiquita. O carro era de Arturo, os freios estavam quebrados e há anos e anos Leandro usava como suas, as coisas do irmã o. Ele nã o tinha por que resistir à tentaç ã o de passear naquele carro esporte, novinho, brilhante, que Arturo tinha comprado e que quase nunca usava. Arturo prefere andar a cavalo.

 — Nã o se pode enforcar um homem por uma simples coincidê ncia — disse Ricki com ardor. — Don Arturo é humano. Devia gostar de um carro esporte e bonito, como qualquer um. Talvez até tivesse a intenç ã o de usá -lo mais vezes, mas aos poucos perdeu o interesse pelo brinquedo novo.

 — E você salta em defesa dele, prontamente — disse Al vedo, examinando-a, curioso. — Será que sente atraç ã o por ele?

 — Irresistí vel! — respondeu, brincando. — Pense um pouco, Alvedo. O que quero dizer é que nã o existem provas reais de que don Arturo tenha voluntariamente tentado matar o irmã o, a cunhada e o sobrinho, que é apenas uma crianç a indefesa.

 — Um homem inteligente teria o cuidado de nã o deixar pistas. O fato de Conquesta e o menino estarem no carro deve ter sido um imprevisto. O que ele queria era se livrar de Leandro.

 Porque na Espanha o casamento só termina com a morte! As palavras que Sophina havia dito ecoaram na mente de Ricki, mas ela nã o quis esticar o assunto. Pô s-se de pé, dizendo que tinha de ir à cidade para fazer compras.

 — Vamos no meu carro — sugeriu Alvedo. — Hoje é sá bado e nã o tenho aulas.

 Ricki aceitou. A energia que sentia ao começ ar o passeio parecia ter derretido com o calor. Desceram as escadarias em ruí nas e cruzaram o pá tio cheio de destroç os até o arco de pedra que dava para a estrada. Alvedo desceu primeiro e estendeu a mã o para Ricki. Ela tropeç ou, mas o jovem agarrou-a, evitando o tombo e trazendo-a junto de si, olhos arregalados, a cabeç a inclinada para trá s, os lá bios abertos.

 — A boca é inocente, mas os olhos sã o de mulher fatal — murmurou ele. — O que você faria se eu a beijasse?

 — Dava-lhe um bofetã o — respondeu, fria.

 — Mas o que é um beijo entre um homem e uma mulher?

 — Nada. Nada mesmo, quando eles nã o tê m nada a ver um com o outro — disse, livrando-se dele e arrumando o chapé u. Caminharam até o carro. Era um modelo esporte nã o muito recente, mas que parecia potente mesmo com aquela camada de poeira. Estava estacionado debaixo de umas á rvores, mas assim mesmo o assento de couro estava quente e Ricki sentou-se na ponta do banco, bem afastada de Alvedo.

 — Esse silê ncio ressentido é pior que um estouro de raiva — disse ele. — Vamos lá, o que há de tã o terrí vel em querer beijá -la? Devo fingir que nã o a acho atraente?

 — As moç as da Andaluzia sã o muito mais atraentes que eu.

 — Sã o, sim, entre os quinze e os vinte anos. Depois disso, é uma pena, pois elas engordam muito.

 — Mas os homens continuam sempre iguais, nã o? — perguntou ela.

 — Você acha que continuamos interessados nas outras mesmo depois de casados? É isso? — Olhou-a, meio divertido. — Você nã o tem vontade de se casar e ter uma grande famí lia para adorar e dominar? Parece gostar tantos dos ninos.

 — É, eu adoro crianç as. Acho que um dia vou querer, sim, ter filhos meus. Mas por enquanto minha carreira é o mais importante.

 — Gosta do trabalho na granja? — disse ele, parando o carro na pracinha da cidade. — Os outros enfermeiros enjoaram logo desse isolamento, do clima de feudalismo e dos corredores escuros daquela casa. Como é que uma moç a como você gosta disso?

 — Sou româ ntica, Alvedo. Gosto de casas antigas, cheias de histó rias. E gosto muito de Jaime. — Depois de uma pausa pensativa, abriu a porta e saiu. — Agora tenho de fazer as compras.

 — Encontre-me depois, naquele café ao lado do correio, para tomarmos alguma coisa. Posso levá -la para casa. Uma mulher nã o deve andar sozinha pelos campos depois do anoitecer.

 — É um desafio ao diabo, nã o é?

 — Quem sabe? — disse, abaixando a voz. — O pessoal conta estranhas histó rias sobre o vale e todos evitam sair depois que escurece. Você me encontra depois?

 — Por causa da bebida. Vou precisar de um refresco. Eu nã o tenho medo de fantasmas — concluiu, sorrindo.

 — Nem do fantasma de Conquesta de Cazalet? — murmurou, abrindo para ela a porta do carro.

 Enquanto caminhava pela praç a, Ricki pensava. Seria Alvedo Andrè s apenas um jovem namorador ou será que, por trá s da má scara sorridente, havia algo mau? Leandro de Cazalet tinha sido seu amigo de infâ ncia... e o pró prio Alvedo tinha dito que o há bito da vinganç a de honra ainda sobrevivia na Espanha!

 Tentando afastar esses pensamentos, Ricki disse a si mesma que era alguma coisa na atmosfera daquele vale que tornava tudo tã o dramá tico. O passado parecia ainda vivo nas ruelas estreitas de casinholas brancas. Das janelas gradeadas pendiam gerâ nios e trepadeiras, e mulheres de preto sentavam-se à s portas, tricotando. Havia pequenas lojinhas meio escondidas, as vitrinas exibindo comidas e objetos os mais estranhos.

 Uma delas parecia medieval e vendia o tipo de doces aos quais Ricki nã o conseguia resistir: ameixas carameladas, bolotas de nozes com mel, cerejas cobertas de chocolate.

 Enquanto esperava ser atendida, Ricki sentiu-se observada por um trio de mulheres junto ao balcã o. Sorriu para elas mas, apesar de retribuí rem o sorriso, nada disseram. Sentindo-se meio deslocada, virou-se para o outro lado, ciente de que as trê s estavam cochichando. Olhou distraí da os vidros expostos: azeitonas ao vinho, saquinhos de pistach, ramas de canela e maç os de camomila. Havia també m um moedor de alho, uma pilha alta de melancias, berinjelas graú das e potes de louç a azul cheios de mel. Sentia-se deslocada ali e, sem querer, lembrou-se do que Alvedo tinha dito na primeira vez que se encontraram: os habitantes do vale ainda murmuravam a respeito de don Arturo.

 Quando as trê s mulheres saí ram, a dona da loja voltou-se para Ricki. Era uma velha de nariz fino e adunco como uma bruxa, mas atendeu Ricki com gentileza.

 — Muchas gradas, señ ora. E que nunca falte azeite em seu fogã o — Ricki disse.

 O rosto escuro franziu-se numa rede de rugas quando a velha sorriu, satisfeita por Ricki ter respondido em espanhol. A mulher lamentou o graví ssimo accidente dei chico, dizendo que ele só nã o tinha morrido por voluntad de Dió s. Subitamente, curvou-se sobre o balcã o e agarrou o pulso de Ricki com uma mã o que mais parecia uma garra marrom.

 — Já viu as Lá grimas do Diabo? — perguntou baixinho.

 — Nã o entendo — disse Ricki, assustada. — O que é isso?

 — As Lá grimas do Diabo escorrem pelas rochas bem no lugar onde o carro despencou do precipí cio — disse a velha soturna, em voz muito baixa e misteriosa. — Mau lugar para se morrer, mau lugar!

 

 Ao encontrar-se com Alvedo, Ricki sentia-se ligeiramente melancó lica. Um garç om preguiç oso serviu a granizada, um refresco feito de gelo raspado e suco de limã o. Ricki estava com calor por causa da caminhada e aqueles copos altos cheios de uma neve saborosa eram um alí vio.

 Enquanto esperava por ela, Alvedo tinha feito alguns desenhos das pessoas que passavam por ali: um camponê s com um burro carregado de cestos com sininhos, mulheres tecendo à beira da fonte, um monge encapuzado de aspecto sombrio...

 Ricki examinou os desenhos e, apesar de demonstrarem boa té cnica, as pessoas e os animais pareciam nã o ter movimento. No entanto, o pequeno Jaime conseguia dar movimento aos seus desenhos. Um pouco surpresa pela descoberta, Ricki levantou os olhos para fazer um elogio meramente formal e deparou com o olhar fixo e duro de Alvedo. Ele sabia que o talento do menino era maior que o seu. E nã o gostava nada disso!

 — Essas pessoas parecem tã o medievais — disse, sem muita convicç ã o. — A Espanha toda parece tã o pictó rica...

 Ele a encarou um momento, depois arrancou os desenhos da mã o dela e picou-os em pedacinhos.

 — Por que fez isso? — exclamou Ricki.

 — Você sabe por quê!

 Saí ram do café uns minutos depois e subiram para o carro. Durante todo o caminho ele dirigiu tã o depressa que Ricki ficou agarrada ao banco, com vontade de gritar para ele diminuir a marcha. A escuridã o da noite caí a depressa e tinha sido ali, naquela estrada, que um outro carro tinha caí do precipí cio abaixo. Ela podia ouvir o som da cascata rolando pela encosta.

 Subitamente ele freou. Na calma silenciosa que se fez, ouvia-se apenas o ruí do das lá grimas do Diabo e as batidas do coraç ã o de Ricki. Viu, aterrada, que os pneus estavam a apenas alguns centí metros da borda do abismo. Um arrepio percorreu sua espinha e ela voltou os olhos assustados para Alvedo.

 — Nã o sei o que aconteceu comigo — justificou-se. — É sempre assim quando passo por aqui., sinto um impulso irresistí vel de correr...

 Calou-se e olhou as á rvores estranhamente recortadas contra o cé u do anoitecer. Ricki o observava, pensando: será que ele també m amava Conquesta? Será que ela o tinha enfeitiç ado també m?

 —O passado parece perturbá -lo també m, Alvedo.

 —É verdade — respondeu ele. — As lembranç as do passado atormentam todos os que conheceram Conquesta. Ela era linda e sempre alegre... Menos quando Arturo estava conosco. Ela se transformava quando ele aparecia. Como uma rosa que fecha as suas pé talas quando é tocada pelo frio e pelas trevas. Perto de Arturo o riso de Conquesta perdia a alegria, os olhos nã o tinham brilho, pareciam segui-lo, implorando que a libertasse!

 — Ele a amava — murmurou Ricki. — Você, nó lugar dele... — A liberaria do compromisso? Nã o, acho que nã o. — Entã o como pode condená -lo? — prosseguiu Ricki. — Ele é um homem, apenas. E espanhol. Para ele nada havia de errado num casamento contratado entre famí lias. Contaram-me que Conquesta se arrependeu de

ter fugido, depois. Mas já era tarde demais...

 — Dizem que era arrependimento, mas eu acho que era medo — disse Alvedo, pousando a mã o de ané is de ouro sobre a de Ricki. — Leandro devia ter tirado Conquesta deste vale. Mas ele aceitou trabalhar na fazenda do pai dela e, sendo andaluz, alegre, brincalhã o, nã o viu nenhum mal na proximidade do irmã o... Mas você está tremendo, pequena. Sua roupa é leve demais para este vento da noite.

 Antes que Ricki pudesse reagir, Alvedo passou os braç os em torno dela, puxando-a para si. O galope de um cavalo aproximando-se rapidamente deixou-a ainda mais imó vel e, de repente, don Arturo surgiu do escuro da noite, montando um cavalo cinzento.

 — Entã o é aí que você está! — As palavras soavam como chicotadas. — Passou muitas horas fora da granja, srta. O’Neill.

 Don Arturo a encarava como se ela fosse uma leviana em busca de aventuras baratas, as narinas dilatadas. O desprezo que havia em sua voz enfureceu Ricki, que imediata-mente libertou-se do abraç o do professor e, respondeu, ené rgica.

 — Acho que tenho o direito de me divertir enquanto meu paciente dorme a siesta. Todos os outros empregados tê m esse direito.

 — Os outros empregados, srta. O’Neill, nã o costumam se divertir dentro de um carro no meio da estrada! — O rosto dele era impassí vel, a voz fria. — Vim à sua procura porque Jaime levou um tombo. Nada sé rio, mas ele se assustou e chama por você.

 — Um tombo, señ or? — Ricki assustou-se, esquecendo a raiva. — Como foi? O que é que ele estava fazendo?

 — Acho que estava tentando caminhar. — Virou o cavalo e concluiu com enorme ironia: — Vou na frente avisar o menino que a sua querida tata está a caminho.

 A grande montaria cinzenta disparou num galope e Alvedo sussurrou uma maldiç ã o em espanhol. O motor roncou, quebrando o silê ncio, e parou em seguida. Alvedo virava a chave, nervoso, um ó dio profundo a todos os Cazalet estampado no rosto.

 —Vamos depressa! — implorou Ricki.

 —A gasolina está baixa. Temos de esperar esquentar um pouco o motor.

 Ele tentou de novo, girando a chave, mas o carro nã o arrancou. Um minuto depois, Ricki saltava do carro, irritada.

 — A pé vou mais depressa! — Correu pela estrada escura, deixando Alvedo a gritar o seu nome.

 Ao chegar na Granja estava sem fô lego, mas atravessou o hall numa corrida e subiu os degraus de dois em dois, fazendo oscilar as chamas dos lampiõ es à sua passagem. A porta do quarto estava aberta e a primeira coisa que viu foi a sombra de don Arturo projetada na parede. De pé, ao lado da cama do menino, ele tentava consolá -lo.

 — Um galo na testa nã o é nada para um meninã o de sete anos. Vamos lá, enxugue essas lá grimas — disse ele, tirando um lenç o do bolso do culote!

 — Vá embora! — respondeu o menino em prantos, recusando o lenç o e enterrando o rosto no travesseiro. — Nã o quero você. Quero Ricki...

 — Estou aqui, Jaime! — Atravessou o quarto sem olhar para don Arturo, atirou a bolsa ao chã o e sentou-se na cama. Tomou o menino pelos ombros, fazendo-o encará -la, e ele se atirou em seus braç os. Ricki alisou os cabelos escuros, descobrindo o calombo brilhante no alto da testa.

 — O que foi que você fez, guapo? Já lhe disse para nã o fazer bobagens quando estivesse sozinho.

 — Eu queria ver se conseguia ficar de pé — soluç ou.

 — Em cima da cama, bobinho?

 Ele fez que sim com a cabeç a afundada no peito dela e Ricki nã o pô de deixar de sorrir, levantando os olhos para don Arturo. Ele nã o retribuiu o sorriso, imó vel, esguio e calado aos pé s da cama, as mã os afundadas nos bolsos do culote.

 Ricki sentia um vago temor sempre que o via assim, vestido para montar. O casaco de tweed, culotes caqui e botas altas davam-lhe um ar mais andaluz. Parecia perder um pouco da rigidez. Leandro, o irmã o, devia ter essa aparê ncia. Aquela forç a viril debaixo da pele bronzeada.

 — É sé rio, srta. O’Neill? — perguntou, formal.

 — Está doendo, Jaime? — perguntou Ricki, examinando o galo.

 — Só um pouquinho.

 O menino abraç ou o pescoç o dela e encostou a testa em seu rosto. Ricki agradeceu o lenç o que don Arturo lhe estendeu e entregou-o à crianç a.

 — Agora, vamos, dê uma boa assoada nesse nariz e enxugue essas lá grimas. Essa choradeira toda deve ter-lhe dado uma boa dor de cabeç a... — brincou ela, enquanto o menino enxugava as ú ltimas lá grimas.

 — E entã o? — prosseguiu. — Você ficou em pé?

 — Um pouquinho... — disse Jaime, olhando o tio e depois buscando apoio em Ricki. — Mas aí começ ou a doer e eu caí.

 —Desastrado... — brincou ela, apalpando-lhe o peito. — Você está todo molhado. Que tal a gente tomar um bom banho quente e depois jantar, hein?

 — Só você e eu? Ningué m mais?

 Ricki nã o teve coragem de olhar para don Arturo e sentiu pena dele, apesar de tudo. O cuidado que ele tinha com o menino o havia levado a sair em busca de Ricki e, no entanto, o menino demonstrava abertamente que nã o o amava.

 — Se continuar assim, Jaime — disse don Arturo, impassí vel —, vai logo precisar ter um cavalo para você. Uma das é guas está para parir. É uma das melhores e o potro vai ser bom. Quer ficar com ele, quando nascer?

 — Mi abuelito me prometeu um potrinho quando eu puder andar até o rancho dele — disse Jaime, referindo-se ao pai de sua mã e, don Enrique Salvadori. — Muito obrigado, señ or tio.

 Com um suspiro quase inaudí vel, don Arturo caminhou para a porta.

 — Srta. O’Neill, venha tomar café comigo — disse, voltando-se antes de sair — depois que terminar a fiesta con el nino.

 Ricki voltou-se para Jaime, olhando-o, muito sé ria. Tinha percebido a má goa que havia nos olhos de don Arturo e sabia que ele sorria por nã o ter a confianç a e o afeto do menino.

 — Por que você nã o tenha ser amigo de seu tio? Ele está sempre tentando se aproximar e você o afasta. Imagine se você quisesse me dar uma bala e eu empinasse o nariz e nã o aceitasse. Você ia ficar contente?

 — Seu nariz já é empinado — disse o garoto, tocando com a ponta do dedinho o nariz arrebitado dela. — Mas aposto que se eu pedisse uma bala você me dava — concluiu, olhando para a bolsa no chã o.

 — Pois vai ficar querendo até depois do jantar, seu pestinha! — disse ela, rindo e fazendo o nino rir.

 Foi até o banheiro e abriu a torneira de á gua quente. Jogou um punhado de sais de banho na banheira e eles se dissolveram rapidamente. Jaime começ ava a mostrar progressos e, portanto, seu trabalho ali na granja logo chegaria ao fim. Dentro de algumas semanas o menino nã o precisaria dos cuidados dela e don Arturo, sem dú vida, dispensaria os seus serviç os.

 Levantando a cabeç a deu com seu reflexo no espelho. Parecia cansada e preocupada. Era inevitá vel que Jaime fosse reagir quando don Arturo dispensasse a tata verde, a companheira contadora de histó rias. Alisou os cabelos com a mã o, pensando que ia ter de convencer Jaime a se relacionar com o tio. As coisas nã o podiam ficar como estavam... O problema é que nã o há como interferir no coraç ã o dos outros quando há razõ es para amar ou odiar.

 

 De banho tomado e pijama limpo, Jaime sentou-se na cama ao lado de Ricki para saborearem o jantar: uma sopa leve, rins de vitela com vegetais na manteiga e sorvete de sobremesa. Jaime adorava sorvete e Ricki imaginava se teria sido idé ia de don Arturo encomendar o sorvete para agradar o menino depois da discussã o.

 Jaime, poré m, já havia esquecido e sentia-se muito orgulhoso do galo na testa, pois era um sí mbolo de sua primeira vitó ria contra a doenç a. O galo brilhava tanto quanto os olhos escuros quando ele terminou de tomar o sorvete de chocolate, um bigode marrom enfeitando o lá bio superior.

 — Estou morto de cansaç o — disse ele, atirando-se no travesseiro, enquanto Ricki removia a bandeja. — Cante para mim, Ricki. Cante aquela da castanheira.

 Ricki sorriu, limpando-lhe os lá bios no guardanapo e sentindo-se invadida por uma ternura imensa por aquela crianç a de cí lios longos, traç os refinados e o mesmo nariz orgulhoso do tio. Ele era um Cazalet e o sangue de Castela fazia seus ó dios e amores serem igualmente fortes.

 — Vamos lá, bichinho, vou cantar a da castanheira — murmurou. Em um minuto ele estava dormindo e Ricki beijou-o de leve na testa machucada, dizendo baixinho: — Durma bem, guapo. E sonhe com o potrinho que seu avô vai lhe dar. Você logo vai estar galopando.

 Diminuiu ao má ximo a chama do lampiã o, apanhou a bandeja com cuidado e saiu do quarto. Estava pensativa. Lembrava-se do convite de Don Arturo para tomar café com ele e da expressã o dura e cortante com a qual a fixara quando a viu entre os braç os de Alvedo. Era evidente que ele pensava ter surpreendido um romance e estava certa de que ia receber ordens para ser mais discreta. Só podia ser isso, pois ele nunca a convidara antes.

 Ele nem sempre estava em casa à noite e, quando havia convidados para jantar, eram em geral fazendeiros vizinhos que falavam de negó cios e fumavam charutos tã o fortes que na manhã seguinte o cheiro de fumo ainda pairava no ar. Felizmente nunca tinha sido convidada a participar dessas reuniõ es. Ela gostava de um pouco de solidã o depois de colocar Jaime para dormir, com o brasero brilhando no quarto, queimando os caroç os de azeitona olorosos, um bom livro para ler e sempre um cá lice de vinho para encerrar o dia.

 Enquanto se preparava para a entrevista com don Arturo, ouviu ao longe o rolar do trovã o e, quando estava descendo as escadas, um relâ mpago iluminou os vitrais das janelas, estremecendo todo o vale numa trovoada gigantesca. Ricki nã o tinha medo de tempestades, mas a carga de eletricidade no ar mexia com seu estado emocional. Desceu correndo o resto da escadaria, atravessando a sala até o escritó rio.

 Diante da porta entreaberta parou para arranjar o vestido verde-oliva antes de entrar no " ninho do dragã o". De repente, uma porta rangeu no outro extremo do hall e ela voltou-se, assustada. Era a porta da adega e uma figura indistinta, mergulhada nas sombras, avanç ava para ela. Encostou-se ao batente, agarrando-o com ambas as mã os, os olhos cor de jade brilhando no rosto pá lido.

 Don Arturo aproximou-se e sorriu, percebendo a tensã o dela.

 — Tem medo dos elementos da natureza, srta. O’Neill? Que surpresa! Eu pensei que era emancipada em tudo...

 — E sou — garantiu, tentando soar firme, mas ciente de que sua inseguranç a era bastante evidente.

 As cortinas vermelhas estavam cerradas, alguns troncos queimavam na lareira e a luz dos lampiõ es abrandava suavemente a excessiva severidade do escritó rio. Sobre um fogã ozinho portá til o bule de café enchia o ar com seu aroma.

 Ricki estava intrigada, pois a atmosfera era surpreendentemente í ntima.

O simples fato do pró prio don Arturo estar preparando o café era sinal de que ele nã o queria ser interrompido.

 



  

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