Хелпикс

Главная

Контакты

Случайная статья





CAPÍTULO 2



CAPÍTULO 2

 

D0RINDA começou a desfazer as malas em sua cabina no “Osaka”. Era um dos mais modernos navios da linha P. & O., que serviam ao longínquo Oriente e ela estava agradavelmente surpresa com o conforto e mesmo o luxo dos aposentos destinados para si e Letty.

Compunham-se de dois grandes dormitórios e uma saleta de estar onde cestas e cestas de flores para Letty traziam os cumprimentos de Maximus Kirby.

As duas irmãs tinham sido recebidas à bordo com impressionante formalidade, quase como se fizessem parte da realeza.

Quando a camareira chinesa apareceu, fazendo seguidas reverências, era impossível ignorar como de fato eram bem tratadas e tinham sido otimamente acomodadas.

Mas Letty, de péssimo humor e terrivelmente deprimida nas últimas semanas, sempre declarava não desejar ir a Cingapura, não querer casar-se e desejar apenas ficar em casa, com os pais.

O conde, aborrecido com a atitude da filha, saía cedo de casa e só voltava à noite, freqüentemente após o jantar.

A condessa, declarando estar com dor de cabeça, se fechava em seus aposentos particulares, evitando assim as lamúrias de Letty. E, como sempre, Dorinda tinha de resolver tudo.

Letty não demonstrava o menor interesse pelas belas roupas compradas para o seu enxoval, recusando-se quase sempre a experimentá-las e obrigando Dorinda a fazê-lo por ela.

As duas irmãs tinham o mesmo tipo físico, mas Dorinda era um pouco mais magra que Lettice. Ultimamente, porém, com sua sistemática recusa em alimentar-se, Letty havia sofrido sensível perda de peso.

A costureira provava as roupas em Dorinda, e a jovem, obrigada a ficar em pé durante horas, pensava ansiosamente nos outros compromissos importantes que tinha para resolver.

O conde e a condessa levaram as filhas a Londres, onde ficaram dez dias para que Letty pudesse escolher as roupas mais modernas e elegantes. Tão caras eram elas que a condessa perguntou, desconfiada, como o conde as pagaria, o que nem o marido nem Dorinda souberam lhe responder.

Em Londres, Letty mostrou-se ainda mais difícil, chorando quando o pai tentava discutir com ela o próximo casamento e recusando-se a agradecer sempre que os amigos lhe davam os parabéns e desejavam felicidades.

— Se Kirby vir Letty nesse estado — disse o conde particularmente a Dorinda — por certo desfará o compromisso. Vamos esperar que, entusiasmado com sua beleza, só procure conversar com ela depois que a aliança estiver em seu dedo.

Dorinda se perguntava se não estariam tentando enganar o “rei não coroado de Cingapura”. E dizia para si mesma que a culpa era toda dele se estivessem.

A jovem tinha certeza de que devia haver alguma razão especial para ele querer uma esposa e estava determinada a descobri-la.

Pensando no rosto atraente de Maximus Kirby, Dorinda não tinha dúvidas de que devia haver centenas de mulheres que agarrariam com unhas e dentes a oportunidade de desposá-lo e que o amariam até a morte.

Então, por que ele viera à Inglaterra e escolhera Letty, sabendo tão pouco a seu respeito?

Dorinda pensou que a posição de seu pai devia ter tido alguma influência na escolha. Apesar de estar a família praticamente arruinada, Alderburne era um nome tradicional na história da Inglaterra e os antigos fidalgos que o ostentaram tinham sido poderosos e respeitáveis. Vários Alderburnes na corte de Elizabeth se tinham revelado grandes figuras do Império. Outros Alderburnes tinham alicerçado a Restauração da Monarquia no Reinado de Charles II e houvera também poderosos Alderburnes no reinado da Rainha Anne.

Sempre honestos e empenhados em servir ao seu país, mais que a si mesmos, eles sem dúvida fizeram jus ao respeito que granjearam. Mas o que Dorinda tinha certeza era que seu pai tinha procurado um genro rico.

Em Londres, a moça procurou novas informações a respeito de Maximus Kirby.

Não lhe foi difícil induzir o pai a procurar junto ao Secretário das Colônias e mesmo ao Primeiro Ministro esclarecimentos sobre a política e desenvolvimento de Cingapura.

— Preciso fazer com que Letty se interesse pelo futuro marido e seus negócios antes que o reveja, papai — era apenas um pretexto de que Dorinda lançara mão para forçar o conde a obter todas as informações que desejava.

Entre outras novidades, ela soube que se devia a Maximus Kirby o grande desenvolvimento do Porto de Cingapura, realizando o sonho de Sir Thomas Stamford Raffles, um brilhante aventureiro inglês que nascera num navio mercante do qual seu próprio pai era o capitão e se tornara, na idade de quatorze anos, um funcionário nos escritórios da Companhia das índias Ocidentais.

Aos vinte e quatro anos, Thomas foi mandado a Penang, onde imediatamente demonstrou sua capacidade e, quando a Inglaterra ocupou Java, tornou-se Governardor Tenente. O povo lamentou sua partida como se tivesse perdido o seu maior amigo.

Em 1818, ele alimentava a idéia de quebrar o monopólio alemão nos Estabelecimentos do Estreito e tornar Cingapura um grande porto livre. A despeito da grande oposição e muitas dificuldades encontradas, ele conseguiu realizar sua pretensão, seis anos depois.

— Ouvi dizer que Kirby praticamente exterminou os piratas — informou o conde a Dorinda. — Eles chegaram a causar tantos prejuízos na Península Malaia que o comércio na região era quase impraticável, apesar das providências do governo para protegê-lo com seus navios.

— Navios de guerra, papai? — indagou a filha.

— Vários cruzadores estiveram em ação em 1830 e uma flotilha especial contra pirataria nos vinte anos seguintes — respondeu o conde. — Mas o interessante é que em 1837 um vapor, o “Diana”, foi mandado a Cingapura e tornou-se o primeiro vapor colonial a combater os piratas.

— Fale-me a respeito do “Diana” — pediu Dorinda, fascinada.

— O Primeiro Lorde do Almirantado não foi muito claro sobre o assunto — tornou o conde. — Aparentemente, o ocorrido entrou nos anais da História Naval…

— Que aconteceu ao “Diana”?

— O Primeiro Lorde me disse que foi o primeiro vapor construído na Índia e tinha 160 toneladas, além de uma velocidade de cinco nós. Sua tripulação era constituída de três europeus e trinta malaios.

— Continue, por favor — pediu Dorinda.

— Ao lado do veleiro H.M.S. Wolf, o vapor começou sua primeira aventura, tendo encontrado seis grandes prahus — nome que os piratas chineses dão aos seus navios — atacando um junco.

Dorinda ouvia, compenetrada, e o conde prosseguiu:

— Os piratas, vendo a fumaça do “Diana”, tomaram-no por um veleiro em chamas e, julgando-o uma presa fácil, transferiram seu ataque do junco para o vapor.

O conde riu.

— Para seu horror, o vapor cruzou as águas contra o vento e atirou de passagem nos prahus, fez meia-volta e repetiu a manobra.

— Não deve ter restado muita coisa dos navios piratas depois do combate — comentou Dorinda.

— E não restou mesmo — confirmou o conde.

— E essa ação eliminou de vez a pirataria? — indagou Dorinda.

— Não imediatamente — respondeu o conde — mas mostrou às autoridades que alguma coisa podia ser feita para reduzir o que se tornara um transtorno intolerável, pois um grande número de firmas importantes estavam deixando Cingapura.

— Esses acontecimentos devem ter ocorrido anos antes de o Sr. Kirby ter se tornado influente em Cingapura — disse a moça.

— Ele, por certo, ouviu falar muitas vezes no caso quando criança — retrucou o conde. — E logo que começou a ter alguma autoridade, pôs suas próprias idéias em ação.

— Que idéias?

— Kirby descobriu que, embora os piratas tivessem deixado de molestar os navios no alto-mar por medo de revanches, continuavam a atacar qualquer barco ancorado em pequenas enseadas ou os veleiros que se encontrassem nos trechos menos freqüentados da costa.

O conde fez uma pausa, como se procurasse recordar as informações que obtivera.

— Aparentemente — continuou ele, logo depois — o costume dos piratas era abordar silenciosamente o navio vítima, de hábito à noite, e matar brutalmente a tripulação e os passageiros antes que pudessem gritar por socorro.

— E o que fez o Sr. Kirby a esse respeito? — indagou Dorinda.

— Organizou sua própria flotilha de pequenos barcos-patrulha, pesadamente armados, mas muito mais fáceis de manobrar que os navios de guerra. O Primeiro Lorde me disse que em conseqüência dessa medida a pirataria foi quase totalmente erradicada dos Estreitos da Malásia.

Dorinda guardou cada detalhe de tudo o que ouvira para tentar depois interessar Letty nas atividades de seu futuro marido, mas foi um esforço inútil.

Bastava que mencionasse o nome de Maximus Kirby e Letty desatava a chorar, dizendo sempre e sempre que não queria se casar.

Na verdade, era tão viva a reação da irmã que finalmente Dorinda disse a seu pai:

— Papai, que farei quando chegarmos a Cingapura, se Letty continuar na mesma obstinação?

— Ela tem que se casar com Kirby! — afirmou o conde, os dedos apertando os braços da cadeira em que se sentava. — Por Deus, Dorinda, será que você não consegue mostrar-lhe as vantagens desse casamento?

Dorinda olhou-o apenas, sem responder. Após alguns momentos, o conde declarou, em tom diferente:

— Sei que não é fácil. Talvez eu lhe tenha dado uma missão impossível. Mas se ela se recusar a casar, estamos todos numa situação difícil… Não só terei de arranjar os dez mil que Kirby me emprestou, mas ainda serei obrigado, por uma questão de honra, a devolver o seu último cheque.

— Foi tudo gasto, papai? — perguntou Dorinda.

— Tudo — confirmou ele.

Dorinda soube depois que mais três cavalos tinham chegado aos estábulos de Alderburne, e compreendeu então no que o dinheiro fora gasto.

Apesar de tudo, seu pai fora generoso com o enxoval de Letty e quando, afinal, ele foi entregue, todos na mansão ficaram encantados, à exceção da noiva.

— Você vai ficar linda com estes vestidos — disse Dorinda à irmã.

— Só quero ficar bonita para papai — respondeu Letty.

— Se você gostasse mesmo de papai, faria tudo para agradar-lhe — retrucou Dorinda.

Não havia dúvida de que Letty adorava o pai e era esse o único trunfo com que Dorinda contava para convencer a irmã a embarcar para Cingapura.

Na noite anterior à partida de Alderburne Park, Letty tinha ficado histérica e tentado se trancar no quarto. Dorinda conversou com a irmã e depois de mostrar-lhe o que sucederia se o conde fosse obrigado a vender a casa e os cavalos, conseguiu que Letty concordasse em partir no dia seguinte.

— Você não pode ser tão cruel com papai, se gosta tanto dele como afirma — dissera Dorinda.

— Eu gosto de papai, gosto sim — assegurara Letty.

— Então, demonstre seu amor ajudando-o — dissera Dorinda, com firmeza. — Se você lhe falhar agora, Letty, ele não vai mais querer vê-la de novo. Como poderia ele suportar que alguém do seu próprio sangue se comportasse assim? — e, como Letty não respondesse: — Se você desmanchar agora o noivado, papai não vai apenas parecer desonrado, mas também desonesto.

Somente depois de uma lacrimosa e comovente despedida, que deixou os condes pálidos e emocionados, é que Letty consentiu em embarcar no “Osaka”.

— Será melhor se vocês não a acompanharem até o último momento — aconselhara Dorinda ao conde. — Digam-lhe adeus e vão embora. Ela certamente vai ficar desesperada quando o navio estiver para partir e pode tentar desembarcar, se vocês ainda se encontrarem aqui.

E, como sempre, a moça tinha razão.

Ao ouvir a chamada final para a saída dos que não iam viajar, misturada aos apitos do navio, Letty compreendeu que estavam para partir, e frenética, gritou:

— Não vou! Não quero ir! Quero voltar para casa! Quero ficar com papai!

— Agora é tarde demais, Letty — disse Dorinda. — Ele já está de volta a Londres e contente por você ter se comportado tão bem!

Dorinda levou-a para a cabina e, exausta de tantas emoções, Letty adormeceu quase imediatamente.

Depois de fechar as cortinas das vigias, Dorinda foi para sua própria cabina.

A camareira chinesa, que tinha desfeito as malas de Letty tão logo as irmãs tinham subido a bordo, ofereceu-se para fazer o mesmo com as de Dorinda, mas a jovem preferiu cuidar delas sozinha.

Os novos vestidos, todos cinzentos, pareciam muito convenientes e adequados à sua posição de dama de companhia de Letty, dando-lhe o aspecto apagado que desejava.

Mas em sua bagagem, mais que os vestidos, eram os livros que lhe interessavam, alguns comprados em Londres, outros recentemente descobertos na biblioteca de Alderburne Park.

Em Londres, ela conseguira convencer Letty a acompanhá-la, não somente a uma livraria em Saint James Street, mas também ao British Museum.

Dorinda devia ter doze anos quando percebeu pela primeira vez que era inteligente. Esse conhecimento lhe foi dado, indiretamente, por sua preceptora ao dizer ao conde, sem saber que a aluna a escutara:

— O problema, Lorde, é que não há muito mais que eu possa ensinar a Lady Dorinda! Ela é tão inteligente que percebe as coisas no ar e compreende o assunto quase sem me dar tempo para explicações. É uma grande tragédia que ela não seja um menino.

Dorinda achou falta de tato da preceptora fazer tal comentário a seu pai. O conde, entretanto, retrucou:

— Miss Greenway, suponho que a senhora esteja querendo insinuar que Dorinda deve ter preceptores especiais?

— Acho que, com a inteligência dessa moça, seria lamentável que reduzíssemos sua educação ao pouco que posso ensinar-lhe — respondeu Miss Greenway. — Quando me empregaram, expliquei à condessa que minha capacidade era limitada…

O conde não respondeu e Miss Greenway prosseguiu:

— Eu ficaria muito triste por deixar Alderburne Park, mas tenho obrigação de lhe dizer a verdade: Dorinda precisa de uma preceptora mais experiente, alguém que possua mais conhecimentos do que eu.

— Homem nenhum quer uma esposa inteligente — respondeu o conde, com uma nota de irritação na voz. — Estou muito satisfeito com o modo como a senhora tem ensinado minhas filhas, Miss Greenway, e não tenho a menor intenção de perder tempo e dinheiro numa educação desnecessária.

Fez uma pausa antes de continuar:

— Uma mulher precisa apenas aprender o indispensável para ser uma boa esposa e uma boa mãe. Qualquer outro conhecimento pode ser adquirido do esposo, quando tiver um.

O conde saiu da sala de lições quando Dorinda entrava pela outra porta. Olhando para Miss Greenway, a moça notara vestígios de lágrimas em seus olhos.

— Fiz o que pude por você, Dorinda, mas falhei — dissera a preceptora. — Você vai ter que se instruir sozinha.

Por intermédio de Miss Greenway Dorinda aprendeu que os livros podem não apenas abrir a mente a novos horizontes, mas também proporcionar distração e conforto.

Quando finalmente compreendeu que nada podia ser feito pela sua doença, Dorinda voltou-se para os livros e neles encontrou um meio eficaz de esquecer o mundo, para o qual sua infelicidade nada significava.

Um dos especialistas da Harley Street, depois de examinar Dorinda, tinha dito à condessa:

— Sempre achei que os portadores de eczema são criaturas extremamente inteligentes. Acredito que Júlio César deve ter tido toda a vida essa doença.

— Júlio César era um homem — comentou Dorinda, calmamente.

O especialista não retrucou, mas a jovem sempre recordava suas palavras e nelas encontrava uma pequena consolação. E, desde então, procurou dedicar-se com afinco aos estudos, a fim de desenvolver cada vez mais seus conhecimentos.

Antes de mais nada, porque lhe dava prazer, procurou aprender tudo o que podia a respeito de cavalos: corridas, criação, treinamento e pedigrees.

Era a única pessoa da casa com quem o pai conversava realmente, confiando suas esperanças e ambições e à procura de consolo quando seus cavalos perdiam.

Normalmente, a conversa ao jantar versava sobre esporte, mas, certa vez, o conde recebeu um eminente senador americano, o que fez Dorinda ler a história completa dos Estados Unidos.

Em várias ocasiões, diplomatas da Europa visitaram Alderburne Park e Dorinda transformou-se numa enciclopédia viva dos costumes dos respectivos países e da genealogia dos reis.

Havia outros assuntos que lhe interessavam. Dorinda achava os pássaros fascinantes, mas depois de se aprofundar em leituras a respeito da construção de seus ninhos, suas migrações, seu modo de vida, começou a achar insuportável a idéia de matá-los por esporte.

A jovem estudava regularmente a situação política e era a única pessoa em Alderburne Park que lia o “Times” e achava assuntos de interesse nas revistas que seu pai recebia apenas por seu noticiário sobre corridas de cavalos.

Agora, em sua cabina do “Osaka”, ela examinou um a um os livros que tinha levado, todos relativos à cultura chinesa. Havia um livro sobre jade, outro sobre cerâmica chinesa e alguns dedicados à pintura chinesa. Dorinda os tinha encontrado com grande dificuldade e quando o funcionário da livraria os exibira, a moça ficara horrorizada com o seu preço. Mas, abrindo mão de dois vestidos, tinha conseguido comprá-los.

Além do mais, na biblioteca de Alderburne Park, tivera sorte de encontrar dois livros referentes à história da Península Malaia.

Dorinda tocou os livros gentilmente e, só de olhá-los, sentia-se alegre.

Havia neles tantos assuntos de interesse! Tantas novidades para aprender e compreender!

Dorinda tinha visitado as salas chinesas do Museu Britânico, observado as pinturas longilíneas e descoberto que, de algum modo inexplicável, tudo tinha para ela uma significação especial. A inexplicável afinidade que experimentara por aquelas obras de arte era algo que a jovem não conseguia traduzir em palavras.

Dir-se-ia que elas tentavam contar-lhe alguma coisa, algo que talvez estivesse meio esquecido no fundo de sua memória, ou fizesse parte de um conhecimento secreto que apenas esperava o momento de revelar-se.

Com certo esforço, a moça começou a desfazer as malas, pois os livros arrumados sobre a mesa eram uma tentação quase irresistível. Dorinda mal conseguia esperar o momento de poder começar a lê-los… e descobrir todas as revelações que eles continham.

Mesmo a excitação de estar a bordo de um navio diminuía muito de intensidade diante da idéia de que os livros guardavam algo que ela precisava saber.

Após arrumar a cabina, Dorinda vestiu a capa que comprara para a viagem e subiu ao convés. O navio se deslocava em direção ao mar alto, mas ainda havia terra à vista.

Era uma tarde cinzenta e fria, que parecia prometer neve ou chuva, a julgar pelo céu ameaçador. Dorinda olhou as ondas deslocadas pelo movimento do navio e respirou fundo.

Tinha começado a grande aventura. Ela ia cruzar o mar, rumo a Cingapura.

“E o que mais?” — a jovem não pôde deixar de pensar.

No íntimo, ela sabia a resposta, mas, como um animal assustado, não queria tomar conhecimento dela.

A verdade, entretanto, era mais forte, Dorinda foi obrigada a encará-la.

Queria rever Maximus Kirby. Sim, queria tornar a vê-lo. Era o maior desejo de sua vida…

* * *

 

O mar tornou-se especialmente bravio quando o navio atingiu o Canal da Mancha. O tempo piorou e o mar, cada vez mais tempestuoso, dificultava o avanço do navio para o sul, em busca da costa da França.

Letty imediatamente começou a enjoar e, muito assustada, queixou-se:

— Sei que esse navio… vai afundar! Todos nós acabaremos… no fundo do mar…

Durante três dias e noites, Dorinda não saiu de sua cabeceira. Então, o médico de bordo interveio.

— Não pode continuar assim, Miss Hyde — disse ele a Dorinda. — Pedirei a alguém para lhe ajudar a assistir Lady Lettice, do contrário vou acabar tendo duas doentes para cuidar…

— Estou bem, Dr. Johnson — respondeu Dorinda.

— Quantas horas dormiu à noite passada? — perguntou o médico.

E, como Dorinda não respondesse, acrescentou:

— Não quero discutir com a senhorita, Miss Hyde. Já falei com a Irmã Teresa e ela vai ajudá-la. Nós a conhecemos bem nesta linha. É uma mulher maravilhosa e muito respeitada na parte do mundo para onde vamos.

— É uma enfermeira? — indagou Dorinda.

— É uma missionária — respondeu o médico. — Não sei se tem tido êxito na conversão dos nativos ao cristianismo, mas é uma excelente pessoa, além de boa enfermeira. Quando necessário, é tão competente quanto qualquer médico…

Dorinda não duvidou das palavras do médico, quando conheceu a Irmã Teresa, uma mulher de mais ou menos quarenta anos que inspirava confiança. No hábito negro e véu branco, seu sorriso afetuoso e seus olhos brilhantes se destacavam.

— O doutor me disse que a senhora tem tido problemas com Lady Lettice — disse a freira a Dorinda. — Bem, deixe-me ajudá-la um pouco.

— É muita gentileza de sua parte — respondeu Dorinda. — Mas é difícil conquistar a simpatia de Lady Lettice…

— Não se preocupe — disse a missionária, calmamente.

E, para sua surpresa, Dorinda descobriu que Letty simpatizou com a Irmã Teresa à primeira vista. Achou maravilhoso que ela, de repente, passasse a obedecer à Irmã Teresa, aceitando sem o menor protesto, os seus remédios.

Além de aliviar-lhe as preocupações, o auxílio de Irmã Teresa ainda lhe permitia algumas horas de leitura. Mas era impossível praticar um pouco de exercício com o navio jogando o tempo todo.

Apesar disso, Dorinda foi ao convés no segundo dia e sentou-se no sofá do salão, concentrando-se inteiramente no livro que tinha nas mãos.

E, quando deixaram a Baía de Biscaia, navegando em direção às águas mais calmas do Mediterrâneo, era evidente que Letty se sentia perfeitamente à vontade na companhia da Irmã Teresa, parecia até disposta a ler um livro, coisa em que Dorinda jamais conseguira interessá-la.

— Sou-lhe muito grata, Dr. Johnson — disse Dorinda ao jovial e sempre bem-humorado médico, que ela descobrira ser mesmo uma personalidade de destaque nas linhas P. & O.

— A Irmã Teresa é uma criatura admirável — respondeu o médico. — Ela sempre consegue realizar o que se propõe. E, a propósito, Miss Hyde, agora não há mais desculpas para que a senhora não venha fazer as refeições no Salão de Jantar.

Dorinda pareceu pouco à vontade.

— Prefiro comer sozinha, doutor — respondeu a jovem, depois, pensando consigo mesma que o médico devia ter tido o tato de compreender que ela não queria ser vista.

— Bem, a senhorita é que sabe…

Aquela noite, a Irmã Teresa pediu a Dorinda que fosse à cabina de consultas do médico buscar um remédio preparado para Letty.

— E uma poção para o estômago de Lady Lettice — explicou a missionária. — Eu disse ao doutor esta manhã que estávamos terminando o frasco.

— Vou buscar — respondeu Dorinda.

A jovem foi à cabina onde o médico normalmente examinava seus pacientes, mas não encontrou ninguém. Um camareiro, ao vê-la bater à porta, informou que o médico devia estar no gabinete do comissário de bordo.

Dorinda dirigiu-se ao convés superior e bateu à porta do gabinete indicado. Quando esta se abriu, ela viu o Dr. Johnson sentado numa poltrona com um copo na mão.

— Entre, Miss Hyde — disse o médico, jovialmente levantando-se de sua poltrona. — A senhorita ainda não teve a oportunidade de ser apresentada ao nosso comissário de bordo… mas ele estava ansioso para conhecê-la.

Dorinda olhou um pouco surpresa o comissário, um homem alto de uns cinqüenta anos.

— Ele está curioso a respeito de sua missão — sorriu o médico. — Como pode imaginar, o navio inteiro só fala nisso.

— Em Lady Lettice? — indagou Dorinda.

— E em quem mais? — indagou o doutor. — A futura esposa de Maximus Kirby! Ele é o homem mais importante de Cingapura, como a senhorita deve saber.

— Acho que preciso voltar à cabina — falou Dorinda, sentindo-se constrangida. — Vim apenas buscar o remédio que o senhor prometeu à Irmã Teresa.

— Ora, vamos, Miss Hyde — disse o médico. — Não vai conseguir fugir tão depressa assim. Como médico deste navio, vou lhe passar também uma receita: a senhorita está precisando de um gole de Madeira e uma conversa informal. Desde o começo da viagem tem se mostrado muito pouco social…

Dorinda tentou inutilmente protestar.

Ela não podia se opor à amabilidade do Dr. Johnson nem recusar o copo de Madeira que o comissário lhe estendia.

Lembrou-se também de que aqueles dois homens podiam falar-lhe sobre Maximus Kirby e deviam ter muito a dizer a esse respeito.

— Como conheceu o Grande Max? — indagou o médico.

— Eu não o conheci — respondeu Dorinda, sinceramente. — Mas é assim que todos o chamam?

— Muitas pessoas em Cingapura o chamam de Todo-Poderoso — riu o comissário. — E é uma descrição adequada. Ele governa a região com mão de ferro em luva de veludo e não há um chinês que não se curve para limpar-lhe as botas se ele assim ordenar.

— Por que é tão admirado? — perguntou a jovem.

— Primeiro, porque ele lhes deu prosperidade — disse o médico. — Segundo, porque Kirby é o tipo do homem que eles gostariam de adorar.

— Como é ele? — indagou Dorinda.

Os dois homens se entreolharam e riram.

— Descreva-o, você — disse o médico ao comissário de bordo.

— Não posso — confessou o comissário. — Suponho que “fantástico” seria uma descrição adequada.

— Tente também “fabuloso”, “soberbo”, “autocrata”, “poderoso”… e concordarei — riu o médico.

— Gostaria de saber se Lady Lettice conhece a espécie de homem que vai desposar… — disse o comissário. — Qualquer mulher no mundo faria o impossível para estar em seu lugar…

Dorinda olhou os dois homens com apreensão.

Percebia agora que eles só falavam francamente na sua presença porque a supunham apenas dama de companhia de Lady Lettice. Além do mais, a jovem sempre percebera que, justamente por causa de sua doença, poucas pessoas a tratavam como uma moça comum.

Recebera tantas confidências, ouvira tantos segredos de pessoas normais, de todas as espécies e condições, simplesmente porque, de um modo estranho, todos pareciam julgá-la diferente e assim estavam sempre inclinadas a contar-lhe coisas que normalmente não diriam a outros.

Todos os aldeões de Alderburne a tinham tomado alguma vez como confidente e até os criados da mansão a consideravam uma amiga.

— Como é a noiva? — indagou o comissário de bordo.

— Maravilhosa! — respondeu o médico. — Nunca vi uma moça tão bonita. Você não precisa se preocupar com as mulheres de Cingapura. Nenhuma delas chega aos pés de Lady Lettice.

Dorinda sorriu.

— Fico muito satisfeita em ouvir isso, doutor.

— Mas ela vai precisar de algo mais que beleza para prender o Max — observou o comissário.

— Que quer dizer com isso?

— Bem, o Dr. Johnson e eu conhecemos, nos últimos anos, um grande número de pretendentes a Max — respondeu o comissário, tomando um gole de uísque.

— Isso é verdade — afiançou o médico.

— Lembra-se da Pérola Perfeita? Minha nossa, como Max gastou dinheiro com aquela mulher!

— Aposto como ela valia — retrucou o comissário de bordo. — Que mulher maravilhosa! E o nome lhe fazia justiça…

— Quem era ela? — indagou Dorinda, tentando disfarçar a surpresa.

— Uma chinesa — explicou o médico. — Max a encontrou em Hong Kong. Nunca se viu uma mulher tão exótica…

— E Max não poupou dinheiro. Dava-lhe pérolas do tamanho de ovos de passarinhos… Muitas vezes me perguntei como um pescoço tão frágil podia suportar o peso daquelas pérolas…

— Para Goldie foram diamantes… — lembrou o doutor.

— Goldie! — o comissário sorriu. — Será que poderemos um dia esquecer aquelas festas? Meu Deus, como eram divertidas! Lembra-se daquela que durou três dias? Quando finalmente voltei ao navio, pensei que minha cabeça estava separada do pescoço!

— Quem era Goldie? — perguntou Dorinda, baixinho.

— Uma australiana — respondeu o médico. — Bela garota… seu cabelo parecia de ouro. A pele era branca, lisa e o riso soava como um toque de sinos.

— Que aconteceu a essas moças? — indagou Dorinda.

— Max cansou-se delas — respondeu o comissário de bordo. — Ele se cansa facilmente. É um aventureiro, sempre procurando novidades, sempre em busca de novas terras para conquistar.

— Ele parece nunca encontrar muita oposição — comentou o médico, maliciosamente.

O comissário lançou um olhar para Dorinda.

— O que estamos tentando descobrir, Miss Hyde, é se Lady Lettice vai ser uma boa esposa para Max e se conseguirá prendê-lo ao lar.

— Acho que é isso o que ele deseja — disse o médico.

— Max, preso ao lar? — riu o comissário. — Só acreditarei vendo!

— Acho que ele quer imitar seu ídolo, Sir Thomas Raffles. Se você se lembra, Raffles teve uma esposa notável, que o apoiou, encorajou e inspirou a vida toda.

— Talvez você tenha razão — concordou o comissário, muito sério. — Seria muito próprio de Max tentar um novo estilo de vida, trazendo para Cingapura uma esposa que vai eclipsar todas as mulheres que ele conheceu.

— Lady Lettice será certamente uma das maiores beldades que Cingapura já viu — comentou o médico, pensativamente.

Enquanto o Dr. Johnson falava, Dorinda se perguntava se ele chegara a perceber quão infantil era Letty. As palavras seguintes do médico a fizeram pensar que o subestimara.

— A mulher certa poderá fazer muita coisa por Max — continuou ele, lentamente — mas terá que ser a mulher certa.

— Pelo que sabemos, é exatamente isso que temos a bordo! — disse o comissário, entusiasticamente. — Vamos beber em homenagem a Lady Lettice, Miss Hyde. Depois, encho de novo seu copo.

— Não, obrigada, não posso beber mais que isso. Obrigada, doutor, mas peço licença para me retirar. Preciso voltar à minha cabina.

Dorinda olhou o médico com firmeza, como se tentasse fazê-lo perceber que ela de fato precisava retirar-se. O Dr. Johnson se levantou da confortável cadeira que ocupava.

— Levarei o remédio à cabina de Lady Lettice, Miss Hyde — disse ele.

— Obrigada, doutor — respondeu Dorinda, e voltando-se para o comissário de bordo, acrescentou: — E muito obrigada por sua hospitalidade.

— Venha visitar-me sempre que se sentir solitária — disse ele. — Poderemos organizar uma festinha quando o mar estiver suficientemente calmo.

— É muita bondade sua — respondeu Dorinda — mas nunca vou a festas.

O comissário de bordo não tentou argumentar e Dorinda compreendeu que ele tinha percebido as razões de sua recusa em participar de reuniões sociais.

A jovem voltou à sua cabina, e começou a pensar em tudo o que tinha ouvido. Ela agora estava quase certa de que não somente o casamento de Letty seria um desastre, como — nas palavras que seu próprio pai teria usado — o conde estava vendendo um “animalzinho de estimação” a Maximus Kirby.

Kirby não devia saber que Letty era tão tola e infantil, pois sempre a vira em Alderburne Park, em companhia dos pais. E como todos os seus antecessores, talvez tivesse tomado por timidez o silêncio de Letty.

Dorinda não ignorava que o pai tinha procurado mostrar Letty sob os mais favoráveis aspectos. A irmã realmente apreciara o presente dos periquitos, e devia ter parecido a Kirby uma doce e amável criatura, qualidades sem dúvida exigidas pelo rapaz para a sua futura esposa.

Dorinda se perguntou o que ele sentiria ao ver quão difícil, caprichosa, ignorante e obstinada Letty podia ser e como era impossível para ela discutir os assuntos mais corriqueiros da vida cotidiana.

Seria sua beleza suficiente, perguntava-se Dorinda, quando ela precisasse servir de anfitriã para as altas autoridades que freqüentemente o procuravam em Cingapura?

Como ficariam as relações entre ambos quando ela quisesse passar o dia brincando com um gatinho ou observando os pássaros com ar de tédio quando ele pretendesse falar-lhe sobre seus planos e ambições?

— Preciso fazê-la compreender como deve agir — disse Dorinda a si mesma, desesperadamente, perguntando-se ao mesmo tempo se alguém jamais recebera missão tão difícil para tão curto tempo.

A jovem entrou na cabina de Letty e encontrou a Irmã Teresa sentada à cabeceira da irmã, lendo em voz alta. Ao ver Dorinda, a missionária interrompeu a leitura.

— Conseguiu o remédio, Miss Hyde? — indagou ela.

— O médico vai trazê-lo dentro de alguns momentos — respondeu Dorinda.

— Você está nos interrompendo, Dorinda — protestou Letty. — Continue, Irmã Teresa. Quero saber como termina a história.

Havia um queixume na voz de Letty. Em breve, se contrariada, ela romperia em lágrimas.

Dorinda sorriu.

— Por favor, não se interrompa — disse à Irmã Teresa — Esperarei na saleta.

Minutos depois, ouviu baterem à porta e o doutor entrou.

— Como está a nossa paciente? — indagou ele.

— Absorvida num livro que a Irmã Teresa está lendo para ela — respondeu Dorinda. — A menos que o senhor ache importante, é melhor não interrompê-la. Nunca vi Letty se tornar tão amiga de alguém em tão pouco tempo…

— Eu lhe disse que a Irmã Teresa tem um toque mágico — sorriu o médico. — Logo teremos Lady Lettice de pé novamente.

— Sou-lhe muito grata, doutor.

— A senhorita se comporta como mãe extremosa para essa moça — comentou ele. — Conhece-a há muito tempo?

— Oh, sim, a vida toda…

— Isso é uma coisa maravilhosa — disse o médico. — Bem, ela tem sorte por tê-la encontrado.

— E por ter encontrado também a Irmã Teresa.

— Tem razão — riu o Dr. Johnson. — Foi uma sorte ela estar neste navio. Eu não devia dizer-lhe isso, mas o capitão e o comissário de bordo já estavam em pânico só em pensar que Lady Lettice podia adoecer seriamente… o que atrairia sobre nossas cabeças a ira do Poderoso Max…

Dorinda riu.

— Ele é tão importante assim?

— Muito mais.

O médico hesitou por um momento e, depois, acrescentou:

— Espero que a senhorita não tenha ficado chocada com o que conversamos ainda há pouco. Na verdade, não foi uma conversa que se devesse travar diante de uma jovem educada.

— Não se preocupe com o que foi dito na minha presença — declarou Dorinda.

— Acho que desejávamos apenas deixar claro para a senhorita que Maximus Kirby é uma pessoa realmente excepcional. E todos esperam que a mulher que ele escolheu para esposa também o seja.

Dorinda ficou em silêncio por um momento e, depois, perguntou:

— Doutor, o senhor está sugerindo que Lady Lettice não é a esposa ideal para ele?

O médico não respondeu imediatamente. Após alguns momentos, declarou, devagar:

— Não estou fazendo pré-julgamentos, Miss Hyde. Lady Lettice é uma das moças mais bonitas que já vi em minha vida — talvez a mais bonita de todas — mas não posso deixar de me perguntar o que mais ela possui para oferecer ao grande Max…



  

© helpiks.su При использовании или копировании материалов прямая ссылка на сайт обязательна.