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CAPÍTULO I



 

 

Estava um dia perfeito para viajar de aviã o e desde que deixaram Toronto, Jessica se maravilhava com a vista que tinha da janela. O veloz jato prateado transportava seus passageiros para Alberta, sobrevoando as proví ncias de Ontá rio, Manitoba e muitas outras terras onde outrora viveram í ndios, no tempo em que aquele paí s ainda nã o se chamava Canadá. As planí cies eram verdes e vastas, os rios desenhavam formas curvas naqueles campos sem fim. Os lagos eram pequenos pontos azul-marinho e as cidades lá embaixo pareciam de brinquedo, as linhas retas das ruas e avenidas lembrando um cená rio em miniatura.

Ao longe, no cé u, grandes formaç õ es de nuvens pareciam icebergs e castelos de contos de fadas. O sol se punha e elas já ganhavam um leve tom avermelhado. O aviã o começ ou a descer lentamente, afastando-se delas, e uma voz anunciou que os passageiros deveriam apertar os cintos e apagar os cigarros, pois logo mais estariam aterrissando.

Jessica desviou a atenç ã o da janela, apertou o cinto e recolocou a poltrona na posiç ã o correta. Uma aeromoç a sorriu para ela quando passava pelo corredor, verificando se os passageiros obedeciam à s instruç õ es.

— James, acorde! Já estamos chegando. — Jessica tocou gentilmente o braç o do homem que viajava a seu lado. Ele piscou e deu um grande bocejo. Passou a mã o nos cabelos que começ avam a ficar grisalhos nas tê mporas e olhou para Jessica.

— Esse voo sempre demora mais do que eu gostaria — disse, enquanto apertava o cinto. —... E o Canadá sempre parece maior do que pareceu na ú ltima vez! Espero que nã o tenha ficado entediada.

Jessica sorriu, lembrando que James tinha dormido praticamente durante toda a viagem desde Toronto, assim como fez no voo que os trouxe de Londres. Ela já o conhecia muito bem. James Marshall era um engenheiro altamente qualificado e inventor brilhante, para o qual ela trabalhava há dois anos, como sua assistente pessoal. Foram dois anos tumultuados e fascinantes, durante os quais aprendeu a trabalhar e conviver com uma pessoa que tinha o temperamento incerto e instá vel dos gê nios.

— Nã o se preocupe, nã o fiquei nem um pouco entediada! É a primeira vez que venho para a Amé rica e estou adorando — ela respondeu. — Acho que você é quem vai acabar se entediando de tanto ouvir minhas exclamaç õ es de surpresa por tudo que vou conhecer. Ainda estou admirada com o tamanho deste paí s!

James sorriu e, num gesto carinhoso, tocou-lhe levemente a mã o, que descansava sobre o braç o da poltrona.

— Nunca conseguiria me aborrecer a seu lado, querida Jessica. Na verdade, estou muito feliz que tenha vindo també m. Sempre que viajamos juntos, você me mostra um aspecto novo das coisas que eu já tinha visto antes!

O aviã o já estava baixando agora, a ponto de assustar alguns cavalos que pastavam numa fazenda. Perto dali se avistavam os pré dios de Edmonton, cidade na qual James ia dar uma sé rie de palestras num congresso internacional sobre novas fontes de energia.

Os campos verdes, com seus lagos brilhantes que refletiam a luz do sol, foram ficando para trá s. Em pouco tempo, Jessica e James já diziam adeus para a aeromoç a e o comissá rio de bordo que, educadamente, postavam-se à porta de saí da do aviã o.

No corredor que conduzia ao grande salã o onde deveriam esperar pela bagagem, James foi cercado por um grupo de garotas. Elas estavam vestidas como se fossem para um baile à fantasia, com roupas de faroeste. Algumas usavam chapé us e saias compridas, enquanto outras pareciam danç arinas de cancã, como sé tivessem saí do de um daqueles salõ es do velho Oeste. Tinham vindo para dar a James as boas-vindas em nome da cidade de Edmonton.

—Para que tudo isso? — Jessica perguntou divertida, ao notar como James estava embaraç ado. — Por que estã o vestidas assim?

— Deve ser por causa da celebraç ã o dos Dias de Klondike!

— Dias de Klondike? Nã o foi esse o nome que deram à quela corrida do ouro que aconteceu por aqui há muitos anos? — Jessica perguntou, mantendo a atenç ã o na esteira rolante que trazia a bagagem dos passageiros que tinham acabado de chegar.

— Exatamente! Edmonton era, nessa é poca, a cidade da qual partiam os exploradores e para a qual retornavam alguns, para usufruir da fortuna obtida e outros para amargar a tristeza pela má sorte! Para celebrar aqueles tempos de epopé ia, as pessoas se vestem como naquela é poca, e por dez dias a cidade vive uma grande festa, com bandas na rua e todo tipo de entretenimento... Bem, é melhor irmos logo procurar um tá xi.

Começ ava a escurecer lá fora quando tomaram a auto-estrada para a cidade. Em pouco tempo pararam defronte do hotel, onde ficariam. As ruas estavam repletas de luzes e de gente que se divertia com a mú sica e um grupo de acrobatas que fazia uma exibiç ã o.

No grande saguã o do hotel, Jessica sentia o mesmo clima de festa no ar. De algum outro salã o vinha o som de mú sica de cancã tocada ao piano, e por ali passavam muitas pessoas sorridentes, conversando com animaç ã o. Havia muitas mulheres vestidas a cará ter, o que dava um clima estranho ao ambiente, misturando o moderno com o antigo. Jessica sentiu-se contagiada por aquele ambiente festivo.

Jessica levou um susto, de repente, e piscou antes de olhar de novo para um homem que acabava de passar à sua frente, dirigindo-se ao balcã o de recepç ã o, onde James preenchia as fichas do hotel. O homem nã o estava vestido a cará ter para os Dias de Klondike, mas, certamente, també m se vestia como se fosse a uma festa à fantasia.. Usava calç a jeans, cuja barra dobrada deixava à mostra as botas de couro com esporas. Tinha um lenç o amarrado ao pescoç o e, na cabeç a, um chapé u branco de vaqueiro. Depois de falar com a recepcionista, apoiou o cotovelo no balcã o, enquanto esperava que confirmassem sua reserva. Olhando ao redor, seus olhos nã o tardaram a notar Jessica. Ele a encarou, por um momento, com curiosidade.

Jessica desviou o olhar, mas, quase contra a pró pria vontade, foiobrigada a fitá -lo de novo. Ele agora estava conversando com a recepcionista, o que a deixou à vontade para apreciar o perfil tã o masculino daquele rosto, meio oculto pela grande aba do chapé u. Os ombros do estranho eram largos e os mú sculos fortes das pernas desenhavam-se sob o jeans apertado.

— Sempre se pode reconhecer um homem de Calgary pelo seu chapé u! — disse uma voz divertida atrá s dela. Jessica virou-se e encontrou James, acompanhado de um outro homem que tinha acabado de falar.

— Sou Brian Dawson. — O estranho se apresentou. — Trabalho na companhia que convidou o sr. James para a conferê ncia. Seja bem-vinda á Edmonton, srta. Howard. Ficamos felizes que James a tenha trazido.

— Muito obrigada. Quanto ao seu comentá rio, suponho que esteja se referindo à quele senhor com o chapé u branco... Nã o é ' o tipo de chapé u que usam em fazendas de gado?

— Exatamente, mas a senhorita logo descobrirá que muitos de nó s o usamos somente como diversã o. É fá cil encontrá -lo em qualquer loja em Calgary. Contudo, acredito que aquele homem costuma mesmo usar esse tipo de chapé u. Nã o é uma questã o de moda.

— Foi muita gentileza sua ter vindo nos encontrar, Brian — James disse.

— Ora, nã o há de quê! Minha esposa també m está aqui, alé m de Tom e Molly Crawley. Nó s estamos acompanhando alguns convidados para o congresso e vamos assistir ao show de cancã no salã o vermelho. Nã o gostariam de vir conosco? Poderí amos nos encontrar daqui a meia hora. Acha que dará tempo para se trocar, srta. Howard?

— Sim, é tempo de sobra.

— Ó timo! Entã o, nos encontramos no saguã o, está bem?

Um carregador os conduziu até o elevador, levando as malas. Por coincidê ncia, acabaram subindo com o homem do chapé u branco. Ele ficou encostado num dos cantos do elevador, o rosto meio escondido pela aba do chapé u, como se nã o tivesse vontade de ver ou ser visto por qualquer pessoa. Ainda meio fascinada com aquela -figura, Jessica nã o conseguia parar de olhá -lo. Notou que nã o carregava quase bagagem alguma, só uma pequena maleta de couro.

O quarto deles ficava no dé cimo oitavo andar e, assim que a porta se abriu, o estranho de chapé u deu um passo adiante e seguiu pelo corredor, à direita. Jessica e James acompanharam o carregador na mesma direç ã o, os passos abafados pelo grosso tapete vermelho.

Chegaram primeiro ao quarto de Jessica. O carregador abriu a porta, pô s a bagagem ao lado da cama e mostrou as dependê ncias. Em seguida, com um sorriso, partiu junto com James para levá -lo a seu quarto, que ficava um pouco mais adiante, no mesmo corredor.

Jessica desfez as malas com rapidez e, depois de se lavar, colocou um vestido vermelho, simples e fresquinho, apropriado para aquele clima quente. Depois de pronta, foi ao encontro de James. Mas quando caminhava pelo corredor, se deu conta de que nã o tinha certeza se o apartamento dele era o terceiro ou o quarto à direita.

Decidiu tentar o terceiro, já que estava mais pró ximo. Bateu à porta e ouviu uma voz masculina, abafada, convidando a entrar. A maç aneta nã o estava fechada, e Jessica percebeu que o aposento era idê ntico ao seu, até mesmo pelas cortinas e pela colcha da cama.

A julgar pelo barulho do chuveiro, James devia estar tomando um banho rá pido. Ela olhou em volta, procurando a bagagem dele, que devia estar em algum lugar por ali.

— A senhorita se enganou de quarto.

A voz era baixa e educada, ainda que tivesse um indisfarç á vel tom autoritá rio. Jessica virou-se, surpresa, e olhou com espanto o homem que acabava de sair do banheiro. Os pê los de seu peito ainda estavam molhados, assim como seus largos ombros. Ele tinha uma toalha em volta da cintura, que lhe chegava quase até os pé s. Seus olhos cinzentos ressaltavam na pele bronzeada do rosto, e sua expressã o era desconfiada. Jessica reconheceu-o de imediato, apesar de ele agora estar sem o chapé u.

— Oh, me desculpe! Pensei que este era o quarto de James! — ela exclamou, embaraç ada.

O estranho ergueu as sobrancelhas e fitou-a com um ar levemente zombeteiro.

— James?

— Sim, James Marshall, meu patrã o.

— Por que nã o tenta o outro quarto?

— Sim, obrigada. — Jessica começ ou a caminhar em direç ã o à porta, mas virou-se logo em seguida. — Eu... sinto muito tê -lo incomodado, mas é que ouvi uma voz dizendo para entrar e a porta estava aberta e...

— Sim, eu acabei de pedir uma bebida e pensei que fosse o criado que trazia — ele explicou com frieza e foi até a porta, abrindo-a para Jessica num gesto educado.

Ainda embaraç ada pelo incidente, ela saiu sem dizer mais nada e logo ouviu a porta se fechando atrá s de si. Quando bateu no quarto em frente, James logo apareceu, vestido com um bonito paletó claro.

— Venha ver o meu quarto! — convidou com um sorriso. — Parece um palá cio!

De fato, o quarto de James era bem maior que o dela, todo mobiliado à moda do velho Oeste, com imitaç õ es de lanternas a gá s nas paredes e um aparelho telefô nico de marfim, uma autê ntica antiguidade.

— Esse apartamento já seria suficiente para nó s dois — James disse, ainda sorrindo. — Na verdade, é suficiente para hospedar uma famí lia inteira... Espero que nã o esteja muito cansada para o show.

— Nã o, de maneira nenhuma. O hotel inteiro parece esperar o show e a festa, e eu nã o gostaria de perdê -los por nada no mundo!

Quando saí ram, Brian já os esperava no saguã o, acompanhado da esposa e de dois outros casais, que també m veriam o espetá culo.

— É maravilhoso encontrá -lo de novo, James — falou uma das mulheres, chamada Molly Crawley. Ela virou-se para Jessica e começ ou a explicar: — Tom e eu estivemos em Londres há dois anos e James nos levou a toda parte. Quanto tempo ficarã o por aqui? O suficiente para conhecer as montanhas, eu espero!

— Eu també m espero que sim — replicou Jessica —, pois faz muitos anos que desejo conhecer esta regiã o. Minha avó nasceu aqui no Canadá, e por coincidê ncia nesta mesma cidade, Edmonton. Mas passou a infâ ncia num lugarejo chamado Clinton, que fica em algum lugar perto das montanhas. Será que você s o conhecem?

— Se conhecemos Clinton? — Os olhos de Molly piscaram divertidos, por trá s das lentes grossas dos ó culos. — Sim, conhecemos e muito bem. Temos uma casa de campo que fica perto de lá, na qual costumamos passar o verã o. Diga-me, como é que sua avó acabou indo para a Inglaterra?

— Ela era enfermeira durante a Segunda Guerra Mundial, e se alistou na Cruz Vermelha. Conheceu meu avô num hospital da Europa, quando ele se recuperava de ferimentos sofridos no campo de batalha. Mal a guerra terminou, eles se casaram e decidiram se estabelecer na Inglaterra, onde tiveram só um filho, meu pai.

— Ora, vejam que interessante — Molly admirou-se. — Você deve ter alguns parentes por aqui, alguns primos talvez...?

— Bem, nã o que eu saiba, pelo menos. Minha avó també m era filha ú nica de um pastor da igreja local.

— E ela nunca mais voltou ao Canadá?

— Nã o. Quando teve oportunidade de viajar, sua saú de já nã o permitia isso. Mas sempre insistiu para que eu viesse conhecer os lugares onde ela nasceu e viveu quando crianç a.

— Qual era o nome de solteira dela?

— Simpson... Bluebell Simpson. Ela sempre me contava que a famí lia de seu pai tinha imigrado da Escó cia para o Canadá, para se estabelecer como fazendeiros em Alberta.

— Ora, vejam só! — Molly parecia surpresa. — A famí lia de meu pai també m vem da Escó cia! Bluebell é o nome de uma pequenina flor azul que cresce nas montanhas. Se sua avó tinha os olhos tã o azuis quanto os seus, nã o é difí cil compreender por que lhe deram este nome!

— Sim, ela tinha os olhos azuis e era uma pessoa cheia de vida. Tenho certeza que ficaria muito contente sabendo que afinal eu vim até aqui. Gostaria que eu conhecesse Clinton e talvez visitasse um lago no qual costumava ir acampar à s vezes, chamado Eagle Lake. Parece que fica numa regiã o bem alta, pró xima ao topo das montanhas, e a viagem até lá é muito bonita. Suponho que já devem ter ouvido falar nele, també m.... „

— Sim, já ouvi falar, mas nunca me aventurei a conhecê -lo. A ú nica maneira de se chegar lá é a cavalo, e nã o sou muito boa para montar! Mas foi uma mulher a primeira pessoa branca a atingir o lago. Antes dela somente os í ndios é que o conheciam. Chamavam-no de lago Má gico, e tinham muitas superstiç õ es a respeito do lugar. Diziam que um espí rito bom vivia lá!

— Você acha que seria possí vel eu ir até o lago? Talvez pudesse alugar uns cavalos.

— Claro, nã o terá dificuldades para arranjar cavalos e um guia. — Molly fez uma pausa, com um olhar pensativo. — O que acha de vir passar uns dias em nossa casa de campo, quando o congresso terminar?

Surpresa por um convite tã o amigá vel por parte de uma pessoa que acabava de conhecer, Jessica nã o sabia bem o que dizer.

— Bem, é muita gentileza sua... mas... você nem me conhece direito.

— Ora, e isso é alguma razã o para que nã o a convide? Nó s, canadenses, somos muito orgulhosos de nossa hospitalidade, especialmente com os estrangeiros. De qualquer maneira, conhecemos James, e você está com ele, o que já é uma recomendaç ã o excelente. Ainda nã o trabalhava para ele quando estivemos em Londres, nã o é?

— Bem... eu já trabalhava mas estava viajando... em minha lua-de-mel.

— Sim, eu tinha notado a alianç a em seu dedo — Molly falou com sinceridade. — Seu marido deve ser uma pessoa bastante compreensiva para nã o se importar que você viaje para tã o longe acompanhando seu patrã o... Ou será que seu casamento já se desintegrou, como tantos outros hoje em dia?

— Steve morreu num acidente, numa construç ã o para a qual estava trabalhando — Jessica respondeu, uma sombra escurecendo seus olhos. — Nó s estivemos casados apenas quatro meses.

— Oh, querida, sinto muito. — Molly tinha um ar constrangido. — Acho que, à s vezes, termino falando demais! Ei, parece que Brian está nos chamando para o show! Mais tarde conversaremos com James a respeito de sua viagem conosco para as montanhas. Tenho certeza que nos encontraremos na sexta-feira, pois haverá um almoç o em minha casa para as esposas dos conferencistas e você també m será convidada.

O show era bastante animado e o salã o vermelho do hotel tinha sido redecorado para parecer um daqueles antigos saloons do velho Oeste. As pessoas nas mesinhas se divertiam muito com o espetá culo no palco, onde um grupo de garotas fazia diversos nú meros de cancã, exibindo as pernas bem torneadas e recobertas por meias finas e sensuais.

Quando o espetá culo acabou, Jessica e James se despediram dos amigos e tomaram o elevador. James esperou até que ela abrisse a porta do pró prio quarto.

— Parece que os nossos dias no Canadá começ aram bem! Você aparentemente se deu bem com Molly.

— Sim. Ela me convidou para passar uns dias em sua casa de campo, nas montanhas perto de Clinton. Você acha que poderei ir depois do congresso?

— Ora, claro que sim. Eu vou ter mesmo que visitar as instalaç õ es de uma indú stria numa cidade ao norte daqui, e ficarei alguns dias. Quando voltar, posso passar pela casa de campo de Molly e, entã o, alugaremos um carro para ir até Calgary, de onde pegaremos o aviã o para Toronto. Que acha?

— Perfeito! — Jessica exclamou satisfeita, e levou a mã o à boca para encobrir um bocejo. — Oh, acho que está mesmo na hora de dormir! Boa noite, James!

— Boa noite — ele replicou e, para surpresa dela, inclinou-se e beijou-lhe o rosto no exato momento em que algué m saí a do elevador. Quando James se virou e caminhou para o quarto, Jessica viu o homem com o chapé u branco, que passou por ela sem, ao menos, se virar para olhá -la.

Jessica dormiu bem, mas acordou muito cedo, ainda estranhando um pouco a diferenç a de fusos horá rios. Tomou uma ducha e começ ou a se preparar para enfrentar o dia, que estava lindo. Vestiu calç a comprida azul, uma blusa branca, suave e muito feminina. Penteou os longos cabelos loiros, que pareciam brilhar como ouro. Sua pele era um pouco pá lida, o que ressaltava o brilho dos olhos azuis como o cé u.

Quando desceu para tomar o café, o salã o parecia cheio, apesar de ser ainda bem cedo. Na verdade, o movimento era bastante intenso: um programa de televisã o estava sendo gravado no saguã o do hotel, e as câ meras e microfones misturavam-se à s lindas moç as do velho Oeste. Algumas pessoas estavam sendo entrevistadas, dando opiniõ es sobre as festividades. Um pouco incomodada por toda aquela agitaç ã o, Jessica fugiu para a sala de refeiç õ es, subindo uma escada que ficava num dos lados do saguã o. O refeitó rio era num mezanino, de onde se podia ver todo o saguã o.

Só havia uma mesa vazia, com lugar para duas pessoas, e Jessica se encaminhou para ela. Ficou observando o movimento lá embaixo, enquanto esperava que a garç onete lhe trouxesse o café.

—Com licenç a, senhorita. — A voz era familiar, grave e educada, poré m imperativa. Ela olhou para cima e viu o homem, que desta vez estava sem o chapé u branco. — Espero que nã o se importe se eu compartilhar desta mesa. — Ele disse com polidez.

— Nã o, esteja à vontade — Jessica replicou, torcendo para que ele nã o tivesse percebido o leve tom avermelhado que suas faces ganharam quando pensou nas circunstâ ncias em que haviam se encontrado da ú ltima vez.

— Obrigado. — Ele puxou a cadeira do outro lado da mesa, sentou-se e imediatamente abriu o jornal, escondendo o rosto atrá s do papel.

Jessica comeu ovos com bacon e bebeu um pouco de café. Ocasionalmente, olhava ao redor, logo percebendo que a maioria dos hó spedes ali presentes era de homens de negó cios, usando terno e gravata. Depois de algum tempo, seu olhar afinal se deteve sobre o homem que lhe fazia companhia à mesa. Ele tinha abaixado um pouco o jornal e Jessica podia observar seus traç os, a larga testa sobre a qual caí a um pouco dos cabelos escuros, o nariz e a boca de traç os firmes e retos.

Ele ergueu o olhar repentinamente, como se tivesse consciê ncia de que era observado. Seus olhos tinham um brilho gelado e a fitaram por um instante antes de voltarem novamente ao jornal, que foi erguido um pouco mais como que para barrar o olhar intruso de Jessica.

A garç onete trouxe o café para o estranho e partiu em seguida. Depois de colocar o jornal de lado, ele começ ou a comer. Jessica, que até entã o tinha se ocupado em observar a gravaç ã o do programa de televisã o no saguã o, sentiu que o silê ncio entre eles começ ava a se tornar pesado demais. Nas outras mesas as pessoas acompanhadas conversavam e sorriam animadamente. Afinal, por que se sentia tã o embaraç ada? Por que era uma mesa para duas pessoas? Ou por causa da maneira como haviam se encontrado no quarto, na noite passada?

Incapaz de suportar aquela situaç ã o por mais tempo, ela resolveu quebrar o silê ncio e iniciar uma conversa. Era algo que nunca fizera antes, pois em geral tendia a se fechar em torno de si mesma, por timidez, o que aos olhos dos outros à s vezes terminava por lhe dar uma imagem de arrogâ ncia e superioridade.

— Você é de Calgary? — ela perguntou.

— Como? — Ele tinha um ar surpreso, quando levantou os olhos. — Perdoe-me, nã o estava prestando atenç ã o.

— Perguntei se era de Calgary. Ontem, notei que usava um grande chapé u branco, pró prio de vaqueiros, e me disseram que um homem de Calgary sempre pode ser reconhecido por esses chapé us.

— Deve ter sido algué m de Edmonton quem lhe disse isso — ele replicou. — Existe uma rixa folcló rica entre as duas cidades e é costume fazerem essas brincadeiras, uns com os outros... Nã o, eu nã o sou de Calgary, mesmo usando aquele chapé u branco. Você deve ser inglesa, pelo sotaque, e foi você també m que entrou ontem no meu quarto por engano, nã o foi? A princí pio, nã o a reconheci... Parece muito mais jovem com os cabelos assim, soltos.

Aquele comentá rio a fez corar mais uma vez e Jessica começ ou a ficar irritada consigo mesma por deixar que aquele estranho a desconcertasse.

— De onde você é entã o, já que nã o nasceu em Calgary?

— Sou de uma cidade perto das montanhas — ele explicou secamente, como se nã o quisesse continuar a conversa.

A garç onete se aproximou para oferecer mais café e Jessica aceitou, apesar de saber que já estava na hora de encontrar James. De alguma maneira, o ó bvio desejo daquele homem de colocar um ponto final na conversa era como um desafio para ela.

— Está se referindo à s montanhas Rochosas?

— Você conhece outras montanhas por aqui?

— Nã o, suponho que nã o. — Jessica nã o fez caso do olhar irô nico que ele lhe dirigiu e decidiu mostrar que nã o era tã o ignorante a respeito do estado de Alberta e do Canadá. — Minha avó nasceu em Edmonton e me contou muitas coisas a respeito das montanhas.

— Quando foi que ela viveu por lá?

— Antes da guerra.

— Entã o hoje em dia ela nã o conseguiria mais reconhecer a cidade, pois mudou muito. Em que lugar da Inglaterra você nasceu?

— Essex — Jessica respondeu, e percebeu que ele nunca deveria ter ouvido falar naquele lugar. — Fica perto de Londres. Trabalho na cidade e volto para casa todos os dias, de trem. Conhece a Inglaterra?

— Nã o — ele respondeu e começ ou a comer. Aquilo parecia ser mesmo o fim da conversa. Contudo, Jessica desejaria saber mais a respeito dele e a ú nica maneira de conseguir isso, seria falando mais a respeito de si mesma.

— Será que nã o quer saber por que estou em Edmonton? — ela perguntou provocativamente.

— Provavelmente está em visita, talvez para ver alguns parentes de sua avó. Muita gente vem da Europa para visitar parentes no Canadá, durante o verã o.

— E costumam se hospedar em hoté is? Eu pensei que ficassem com os parentes.

Ele a observou estreitando um pouco os olhos, como se a estudasse com atenç ã o e um pouco de surpresa. Entã o sorriu, mostrando os dentes alvos e bonitos,

— Tudo bem, você venceu! O que está fazendo aqui em Edmonton, tã o longe de Londres e da Inglaterra?

— Estou participando de um congresso cientí fico sobre fontes de energia!

— Você é engenheira? — ele perguntou, surpreso.

— Nã o, sou assistente pessoal do sr. James Marshall, que é um expert na pesquisa de novas fontes de energia.

— Assistente pessoal? — ele falava vagarosamente. — E o que isso significa, afinal? É uma coisa que pode ser muito ampla...

— Ora, nã o passa de um nome mais sofisticado para secretá ria! Tomo conta de seus papé is, ajudo-o a preparar as conferê ncias, nã o o deixo perder a hora de tomar os aviõ es, garanto que esteja nos lugares certos nas horas certas.

— Compreendo... — ele replicou e, ao notar um certo brilho zombeteiro em seus olhos, Jessica receou que, por causa do beijo que James lhe deu no dia anterior, quando se despediam no corredor, ele talvez pudesse tirar falsas conclusõ es. Aquele pensamento a incomodou bastante e Jessica tomou um gole de café, achando que já estava na hora de ir embora.

— E até quando vai o congresso? — ele perguntou casualmente.

— Até sá bado.

— Depois você volta para a Inglaterra?

— Nã o, vou fazer um passeio nas montanhas. Tenho uns dias de folga e pensei em aproveitá -los por aqui — ela explicou. — Suponho que você está na cidade por causa dos Dias de Klondike?

— Nã o. Vim buscar meu filho, que estava hospitalizado há alguns dias. Estou esperando que lhe deem alta amanhã.

Meu filho!, ela pensou. De alguma maneira, nã o lhe tinha passado pela cabeç a que aquele homem tivesse um filho ou fosse casado. Ele parecia tã o independente, tã o cheio de si.

— Por que ele está no hospital?

— Por causa de uma queda de cavalo. Se esfolou um pouco e quebrou algumas costelas.

— Oh, deve ter sido horrí vel para ele. Quantos anos tem?

— Dez — ele respondeu secamente.

— Será que nã o é muito cedo para que esteja cavalgando um tipo de cavalo que o possa derrubar?

— Eu acho que nã o — ele replicou, deixando claro que nã o apreciava o sentido crí tico daquelas palavras. — Aprendi a cavalgar muito antes dos dez anos de idade.

Jessica se lembrou de como tinha percebido suas pernas arqueadas, pró prias de cavaleiros. Instintivamente, reparou em suas mã os, e sentiu um leve tremor de surpresa. Elas eram fortes e musculosas, mas ambas tinham grandes cicatrizes, como se tivessem sido feridas gravemente e depois submetidas à uma operaç ã o plá stica.

— Bem, entã o suponho que você nasceu para montar os cavalos — ela disse, desviando o olhar daquelas cicatrizes. — Talvez esse nã o seja o caso de seu filho.

Ele a observou por algum tempo, estudando-a atentamente como se quisesse ler em seus olhos o sentido que havia por trá s daquelas palavras. Franziu um pouco a testa.

— Sabe, você apontou a questã o central do problema. Ele realmente nã o nasceu para os cavalos!

Agora ele tinha uma expressã o dura, quase crispada, e Jessica soube que tocara num ponto frá gil. Desviou o olhar e deparou com James ao longe, que se aproximava rapidamente, com um ar de extrema irritaç ã o.

— Jessica, o que está fazendo? Sã o nove horas e dentro de quinze minutos temos que estar na Universidade! Procurei você por toda parte!

James estava vestido com um terno claro, a gravata desarrumada. Tinha um ar vulnerá vel, que tomava aquele estranho sentado à mesa ainda mais só lido.

— Telefonei para o seu quarto inú meras vezes! — James continuou, zangado. — Nã o a trouxe para outro continente para que ficasse sentada tomando café e conversando com um estranho...

— Ei, espere um pouco. — O homem havia se levantado e, apesar de nã o ser mais alto do que James, mostrava ombros mais largos e mais fortes. O tom de sua voz tinha algo de ameaç ador. — Este é um paí s livre e nã o há lei alguma que proí ba uma mulher de conversar com um estranho, se assim o desejar. Se a senhorita está atrasada, a culpa é minha. Fui eu quem a atrasei.

Isso é uma grande mentira, Jessica pensou. Olhou para cima e teve uma agradá vel surpresa: ao fitá -la, o estranho tinha um certo brilho zombeteiro nos olhos e Jessica sentiu uma deliciosa sensaç ã o de cumplicidade.

— Até logo, Jessica — ele disse. — Espero que tenha um bom-dia.

Ele se afastou entre as cadeiras. James, que ainda estava nervoso e irritado, sentou-se bruscamente no lugar que acabava de ficar vazio.

— Quem é aquele homem? — ele perguntou.

— Eu nã o sei. Estava só dividindo a mesa comigo. Está no hotel, també m, eu já o tinha visto antes — Jessica explicou com frieza, um pouco insultada pelas maneiras de James.

— E você conversou com ele?

— Somente nesta manhã. Ora, James, como ele disse, nã o há lei que me proí ba de conversar com estranhos. Alé m do mais, como posso aprender algo a respeito do paí s se nã o me relacionar com as pessoas?

— Mas conversar com um estranho é uma coisa tã o rara em você, Jessica. — Quase ao mesmo tempo, os dois se viraram para a caixa registradora, onde o estranho pagava o café. — Nã o sabe quem ele é, ou o que faz — James continuou. — Veja como falou comigo: foi muito grosseiro!

— Nã o concordo, James. Na verdade, acho que agiu como um cavalheiro.

— Cavalheiro!? — O espanto de James o fez falar em voz muito alta, e vá rias pessoas olharam em sua direç ã o. Incomodado por se fazer notar, ele se aproximou mais de Jessica, inclinando-se sobre a mesa. — Realmente, Jessica, nã o pensei que você desse importâ ncia a essas coisas, essas tolices... Sempre diz que vê os homens como absolutamente iguais à s mulheres!

— Por isso mesmo, James. Pensa que aprecio a maneira como se dirigiu a mim na frente de um estranho? Gostei de ele ter vindo em minha defesa.

James estava começ ando a ficar irritado com os argumentos de Jessica e passou as mã os nos cabelos, impaciente.

— Nã o temos tempo para ficar discutindo isso agora. Você está pronta para ir à Universidade?

— Sim.

Nã o havia dú vida que o incidente tinha criado um clima de tensã o entre eles e nenhum dos dois disse nada, enquanto o tá xi os conduzia até o campus universitá rio, onde seria a abertura do congresso. Estavam presentes autoridades e representantes das companhias que promoviam o acontecimento, e houve discursos durante toda a manhã. À tarde, depois de um almoç o conjunto, foi a vez de todos se dividirem em grupos para escutar o que experts como James tinham para dizer.

Começ ava a entardecer quando voltaram para o hotel e Jessica nã o pô de descansar, pois ainda tinha que se arrumar para o jantar no Clube Cientí fico, para o qual James e ela haviam sido convidados. Já era tarde quando foi se deitar. Estava exausta. Dormiu um sono profundo e reconfortante, até à s nove horas da manhã seguinte. Ao acordar, se deixou ficar um pouco na enorme cama, sabendo que tinha a manhã livre para fazer o que quisesse, pois James só teria que voltar ao congresso à tarde. Contanto que estivesse de volta ao meio-dia, poderia sair e passear um pouco.

Sem saber bem a razã o, se lembrou do homem do chapé u branco. Será que o hospital tinha liberado seu filho? Se se apressasse para o café, talvez pudesse encontrá -lo e, entã o, poderia perguntar a ele. Atirou as cobertas para longe e, em vinte minutos, já tomava o elevador para a sala de jantar. Os cabelos penteados e um vestido lhe davam uma aparê ncia jovial.

Já era mais tarde e, ao contrá rio do dia anterior, o salã o nã o estava tã o cheio. Assim, foi fá cil perceber que o estranho nã o se encontrava lá. Ele nã o apareceu, apesar de Jessica ficar atenta durante toda a refeiç ã o. Um pouco desapontada porque talvez nunca mais o visse novamente, ela afinal dirigiu-se até a portaria, onde pediu informaç õ es a respeito de lugares interessantes que pudesse conhecer na cidade.

— Por que nã o vai ao museu? — sugeriu uma simpá tica senhora atrá s do balcã o. — Fica perto daqui e a senhorita poderá conhecer toda a histó ria dos povos que habitaram esta regiã o. Mas nã o se esqueç a de estar de volta ao meio-dia, para o Festival de Bandas!

— Festival de Bandas?

— Sim! Vá rias fanfarras de diferentes cidades se apresentarã o aqui mesmo nesta praç a, a partir do meio-dia. É um espetá culo muito bonito, que acontece todos os anos durante os Dias de Klondike.

O tá xi que tomou a conduziu atravé s de bonitos bairros residenciais, até parar defronte do museu. Era um pré dio moderno, feito em vidro e concreto, que ficava dissimulado entre as grandes á rvores que o rodeavam. Ao passar pela entrada, Jessica recebeu um folheto com a planta do museu, indicando o que se poderia ver em cada lugar. Ela foi para uma galeria onde exibiam objetos que documentavam a vida de vá rias tribos que habitaram o Canadá. Havia també m uma exposiç ã o sobre o desenvolvimento do comé rcio de peles na regiã o. Fascinada com tudo que via, Jessica ia passando pelos artefatos em exibiç ã o, seguindo um grupo de um homem, duas mulheres e dois garotos, um deles bem pequeno e animado. Ele corria de um lado para o outro, fazendo gracinhas, e os pais pareciam nã o gostar muito.

Eram pessoas diferentes das que Jessica tinha visto até entã o. A cor da pele e os traç os do rosto deixavam claro que eram descendentes de antigos í ndios. Em pouco tempo, o garoto menor chegou perto de Jessica e deu um largo sorriso. Ela sorriu de volta mas nã o pô de' dizer nada pois o outro menino, provavelmente o seu irmã o mais velho, apareceu em seguida e tomou-o pela mã o, repreendendo-o numa lí ngua que Jessica teve dificuldade em entender. Era inglê s, mas falado com um sotaque diferente e misturado com palavras que ela nã o conhecia. Era estranho estar ali, ao lado daqueles descendentes de í ndios, admirando os objetos que seus ancestrais costumavam utilizar na vida diá ria.

Jessica seguiu para outra galeria e, depois de algum tempo, percebeu no vidro o reflexo de algué m a seu lado. Sentiu um arrepio de surpresa quando viu quem estava ali. Era ele: o estranho do hotel, usando calç a jeans, a face queimada pelo sol e um chapé u branco. Ele se virou e a notou també m. Seus olhos estavam frios e sem expressã o.

— Olá! — disse Jessica.

— Olá — ele respondeu, sem entusiasmo.

— Parece que nosso destino é nos encontrar! — ela replicou, tentando parecer casual, mas ele nada respondeu e apenas manteve aquele olhar sem expressã o. — Esse museu é fascinante! — ela continuou, ao perceber que ele nã o comentava nada. Estranhava sua necessidade de puxar assunto com aquele homem. Talvez fosse o silê ncio dele, ou a maneira hostil como a olhava que a impelia a fazer isso.

— Sim, suponho que sim — ele disse afinal. — Da ú ltima vez em que estive aqui, o museu ainda estava sendo construí do.

— Entã o, deve estar satisfeito com o resultado, pois este pré dio é lindo.

Ele demonstrou surpresa, e um breve sorriso apareceu em seus lá bios. Jessica achou que sorrir devia ser algo doloroso para aquele homem, como se nã o estivesse acostumado a fazê -lo.

— Sim, você tem razã o. Contudo, nã o tenho muito interesse por museus. Vim aqui só para passar o tempo.

— Eu també m, mas estou gostando muito do que estou vendo!

Os dois voltaram a observar novamente os objetos. Jessica queria continuar caminhando, mas nã o desejava perder o homem de vista, agora que o tinha reencontrado.

— Como está seu garoto? — ela perguntou, deixando-o surpreso.

— Vou levá -lo de volta para casa esta tarde, como esperava.

— Isso é muito bom!

— Você está sendo sincera, nã o é? — Ele tinha um tom de espanto na voz. — Nã o está dizendo isso só para ser educada, está?

— Ora, que tipo de pessoa pensa que sou?

— Bem, agora fica difí cil dizer... Você parece sofisticada demais e, na minha opiniã o, as mulheres assim sã o completamente vazias por dentro.

Desconcertada com aquele comentá rio amargo, Jessica sentiu que a experiê ncia dele com as mulheres nã o tinha sido das mais felizes.

— Sempre digo o que estou sentindo, e me preocupo com a sorte dos outros, principalmente quando se trata de uma crianç a.

— Mas por que deveria estar preocupada? Você nã o o conhece... nem mesmo conhece a mim!

— Sim, é verdade, mas eu també m passei algum tempo hospitalizada quando era crianç a, e sei como ele deve estar aflito para voltar para casa, ao lado do pai e da mã e!

— Danny nã o tem mã e.

— Eu... eu sinto muito.

— Ora, nã o é necessá rio dizer isso. Contei-lhe a verdade para que nã o fique pensando coisas erradas. Danny é o queridinho das enfermeiras do hospital, todos brincam com ele e o tratam muito bem. Tenho certeza que sentirá mais saudades desses dias do que sentiu de mim, enquanto esteve hospitalizado!

— Agora você está tentando me dizer que nã o é um bom pai. Nã o posso acreditar nisso!

— E por que nã o? Todo mundo acredita! — Ele tinha um sorriso cí nico nos lá bios, — Qualquer pessoa que me conhece e sabe o que aconteceu com Danny, deve achar que a culpa foi minha por ele cair do cavalo, que eu estava esperando demais da parte dele, como sempre, que sou muito rude com ele só porque desejo que seja igual a mim... — Ele parou bruscamente e deu de ombros. — Nã o sei por que estou lhe dizendo tudo isso, você é uma pessoa estranha para mim!

— À s vezes é mais fá cil confiar um problema a uma pessoa estranha do que a algué m muito pró ximo.

Ele a observava com atenç ã o e interesse.

— Como é que sabe disso? Fala por experiê ncia pró pria?

— Sim — ela respondeu secamente. — Entã o, Danny nã o se parece com você?

— Nã o. — A resposta dele foi tã o curta quanto a dela. — Já viu tudo que desejava aqui?

A mudanç a de assunto nã o foi sem tempo. Afinal, aquela conversa estava se tornando í ntima demais para dois estranhos que se encontram num museu.

— Sim, acho que sim — Jessica falou e moveu-se em direç ã o a uma outra vitrine, onde estavam expostos antigos trajes í ndios, usados em cerimô nias e rituais. Sentiu que ele a acompanhava e parava bem atrá s dela.

— Sã o lindos estes trajes! — ela continuou. — As tranç as do tecido sã o difí ceis de fazer, é necessá rio muito tempo e trabalho!

— Os í ndios sã o pessoas pacientes. É por isso que sã o ó timos cavaleiros: sabem esperar o tempo necessá rio para compreender os animais!

— Agora há pouco havia aqui uma famí lia, descendente de í ndios, observando os pertences de seus ancestrais. A princí pio achei curioso, mas em seguida me lembrei que també m eu já fui a muitos museus na Inglaterra, observar objetos e trajes usados por meus ancestrais e...

— E entã o talvez tenha chegado à conclusã o de que todos nó s temos a mesma origem, nã o é? Que podem haver muitas diferenç as, causadas pela geografia, pelo clima diferente dos lugares, ao qual aprendemos a nos adaptar de maneiras diversas, em nossa luta pela sobrevivê ncia. — Jessica estava surpresa e ele a fitou com um olhar divertido. — Pareç o um professor falando, nã o é? Na verdade, estou repetindo as palavras que um deles me disse um dia. Durante algum tempo estudei na Universidade daqui, e um dos cursos que fiz foi de antropologia. Foi lá que ouvi o que há muito tempo já acreditava ser verdade: que somos todos da mesma raç a, homo sapiens, independente de nossos traç os fí sicos ou da cor de nossa pele. Isso me fez sentir muito bem!

— E por quê?

— Ora, você nã o se sente bem quando ouve algué m confirmar uma teoria em que sempre acreditou?

— Sim, suponho que sim. — Jessica reparou no perfil rude daquele homem. Como os í ndios que vira há pouco, ele també m parecia feito da rocha mais só lida, moldado por ventos poderosos, queimado pelo sol abrasador e resfriado pelo frio gé lido das noites de inverno nas matas.

— Veja aqueles colares coloridos. Sã o feitos por í ndios que até hoje vivem nas montanhas. As sementes que usam como adorno sã o colhidas nesta regiã o — ele disse.

— Sã o muito bonitos! Você sabe bastante a respeito dos í ndios...

— É porque já vivi com eles e, hoje em dia, existem alguns que trabalham para mim.

— Aonde?

— Num rancho, no interior do Estado. Aonde gostaria de ir agora? Ao andar superior, talvez?

Um pouco frustrada por ele nã o ter dito mais nada a respeito do rancho que possuí a, Jessica concordou em acompanhá -lo a outra parte do museu. Estava satisfeita por poder desfrutar daquela companhia. Depois de algum tempo, quando já tinham conhecido a maior parte das outras exposiç õ es, saí ram do museu. Lá fora o dia estava quente e claro, um grande rio que passava perto refletia o brilho do sol.

— Da ú ltima vez em que estive aqui, fiquei sentado num dos bancos do parque, olhando a neve e os pedaç os de gelo que desciam flutuando na á gua do rio — ele revelou.

Jessica contemplou o rio caudaloso. Nã o muito longe, havia uma grande ponte, congestionada pelo trá fego de automó veis.

— É difí cil imaginar a neve e o frio num dia como o de hoje! Minha avó costumava dizer que gostava mais das montanhas durante o inverno, que elas ficavam mais bonitas!

— Elas sã o lindas em qualquer estaç ã o do ano. — Ele tinha algo de melancó lico no olhar, como se sentisse saudades de sua terra, do lugar ao qual pertencia, um desejo de estar longe da cidade, cheia de ruí dos e movimento. Jessica consultou o reló gio.

— Oh, meu Deus, estou atrasada! Devia estar no hotel ao meio-dia e é exatamente meio-dia!

— Como é que veio até aqui?

— De tá xi.

— Aqui será difí cil achar um tá xi, é necessá rio chamar pelo telefone. É melhor tomarmos um ô nibus — ele sugeriu com senso prá tico.

O ponto de ô nibus nã o era distante, e nem tiveram que esperar muito. Antes mesmo que Jessica pudesse abrir a bolsa, o homem já tinha pago a passagem. O veí culo estava lotado, com muita gente em pé. Jessica segurou numa das traves de ferro e, quando o ô nibus deu a partida, seu corpo foi impulsionado para trá s, indo de encontro ao de seu estranho acompanhante. Ela sentiu que ele se enrijeceu para suportar-lhe o peso e, em seguida, colocou-lhe a mã o na cintura, para ajudá -la a se manter equilibrada.

Logo vagou um assento e Jessica sentou-se. Ele continuava de pé a seu lado, eventualmente se abaixando para mostrar algo interessante pela janela. O assento ao lado també m vagou e ele sentou-se junto dela. Agora nã o conversavam, mas o silê ncio nã o era pesado ou embaraç oso. Era um silê ncio vivo, como se ainda continuassem se comunicando. Ela tinha um sentimento estranho, um desejo de que aquela viagem jamais acabasse.

Mas afinal a viagem terminou e os dois se viram na calç ada, esperando para atravessar a avenida. O hotel ficava na praç a, a poucos passos de distâ ncia e, defronte dele, se aglomerava uma multidã o para assistir ao desempenho de uma banda de jovens colegiais que tocava uma marcha militar. Quando atravessaram a rua apressados, ele tomou sua mã o e foram abrindo caminho pela multidã o. Ele a segurava firme, caminhando à frente. Chegaram ao hotel rindo muito, quando levaram um susto.

— Jessica! — A voz de James era á spera e tinha um tom de censura. — Onde você esteve? Estou esperando há vinte minutos!

Imediatamente Jessica sentiu que seu acompanhante lhe soltava a mã o.

— Sinto muito, James — ela disse sem, de fato, sentir-se culpada. — Estive no museu e...

Ela interrompeu o que dizia e olhou em volta. O homem com o chapé u branco tinha se afastado e agora entrava no elevador. Antes de sumir ele ainda se virou e acenou, num gesto de despedida. Foi só neste momento que Jessica percebeu que nem ao menos sabia o nome dele!

— Jessica, acorde! Estamos atrasados. Vamos, há um tá xi nos esperando! — James parecia aflito e Jessica se virou para ele.

— Mas eu tenho que me trocar!

— Nã o dá tempo. Alé m do mais, você está ó tima assim. — Tomando-a pelo braç o, James a conduziu para fora e, em seguida, para dentro do tá xi. Assim que entraram, o veí culo colocou-se em movimento e logo já faziam parte do agitado trâ nsito da cidade.

— Nã o posso entender o que aconteceu com você! É a segunda vez que me faz esperar, em dois dias. E por causa da mesma razã o: aquele homem fantasiado de cowboy!

— Ele nã o está fantasiado, esta é a roupa que costuma usar, eu suponho. Ele tem um rancho.

— É mesmo? — James estava sendo sarcá stico. — Suponho que tenha lhe contado a respeito da imensidã o de terras que possui, das incontá veis cabeç as de gado de seus rebanhos, e você certamente acreditou em tudo!

— Ele nã o ficou contando vantagem, James. E eu acreditei mesmo em tudo que me disse!

— Nã o consigo compreender por que tem andado por aí com ele!

— Eu nã o tenho andado por aí com ele, como você está dizendo! — Jessica protestou furiosa. — Só nos encontramos por mero acaso. Ele já estava no museu quando cheguei lá. Olhamos juntos as exposiç õ es e depois voltamos no mesmo ô nibus para o hotel. Nem mesmo sei o nome dele!

— Mesmo assim, ele estava segurando sua mã o quando chegaram! — James falava com rispidez e Jessica nã o gostou das coisas que talvez estivesse pensando.

— Foi só para me ajudar a atravessar a rua e caminhar entre a multidã o lá fora!... Ora, James, você nã o está pensando que andamos por aí segurando um a mã o do outro como dois adolescentes que...

— Honestamente, nã o sei o que pensar, Jessica! — Ele a interrompeu. — Desde a morte de Steve você sempre foi tã o quieta, tã o reservada. Acho que estou com ciú me!

— Ciú me? Você?

— Sim, eu mesmo. — Seu sorriso tinha algo de amargo. — Será que isso a surpreende tanto? Agora mesmo, quando entrou no hotel, você parecia feliz e solta como um pá ssaro, de uma maneira que há muito tempo eu nã o a via. Acho que estou com ciú me porque foi outra pessoa e nã o eu quem conseguiu deixá -la assim!

Jessica olhou pela janela. Atravessavam um bairro residencial, cheio de casas grandes e rodeadas por jardins floridos. As ruas possuí am á rvores antigas, que davam sombras acolhedoras e criavam uma atmosfera agradá vel.

— Nã o há por que ter ciú me. Nã o mudei nada, James. Foi só um encontro rá pido, que agora já está acabado e que nada significou.

— Compreendo... Desculpe-me por ter sido rude, Jessica. — Ele se aproximou e colocou a mã o sobre a dela. — Gosto muito de você e... — James parou como se buscasse as palavras certas para dizer, enquanto Jessica se perguntava por que seu coraç ã o nã o se regozijava agora que James segurava sua mã o e lhe dizia que gostava dela.

— E...? — ela perguntou, encarando-o.

— Eu nã o gostaria de vê -la machucada... mais uma vez.

— Nã o se preocupe, isso nã o acontecerá — Jessica replicou com frieza.

— Ó timo! — Ele acariciou-lhe a mã o num gesto de compreensã o e, Jessica desviou de novo o olhar para a janela. Ainda há pouco um outro homem havia segurado sua mã o, com dedos grossos e fortes; uma mã o calejada pelo sol e pelo frio do campo, uma mã o marcada por cicatrizes. Sentiu uma ponta de tristeza ao pensar que jamais saberia o que tinha causado aquelas cicatrizes, assim como nunca saberia como Danny perdeu a mã e ou mesmo o nome daquele estranho.

 



  

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