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CAPÍTULO IV
Lorna parou no meio da tenda e respirou o cheiro forte, proveniente dos objetos de couro, dos mó veis de sâ ndalo e do tabaco turco. O interior do local era repleto de tapeç arias, e as lâ mpadas de cobre forneciam uma luz difusa e dourada ao ambiente. Os tapetes eram persas, e, sobre uma mesa de é bano, havia uma bela caixa de madeira, toda trabalhada. Lorna abriu a caixa e soltou uma exclamaç ã o de surpresa ao avistar o belí ssimo jogo de xadrez de marfim. As peç as eram tã o bem esculpidas que pareciam transparentes. Estava admirando o cavalo, que tinha na mã o, quando ouviu um leve movimento as suas costas. Ela. se voltou rapidamente, com um aperto no coraç ã o. Kasim entrara silenciosamente na tenda e estava parado junto à porta. Trocara a roupa de montaria. e vestia uma tú nica branca, aberta no peito, presa com um cinto largo de tachas. Os cabelos pretos estavam descobertos, e havia uma insolê ncia visí vel no homem que olhava fixamente para ela, ao perceber que estava de calç a comprida e botas de cano alto. Os olhos dele se estreitaram, e Lorna preparou-se para o ataque. — Você joga xadrez? — Kasim indagou. A pergunta foi tã o inesperada que ela sentiu um tremor na mã o quando colocou a peç a de volta no interior da caixa. Ao fechar a tampa, respondeu, com frieza: — Um pouco. — Esses jogos de estraté gia foram inventados pela mente sutil dos orientais — ele disse, avanç ando um passo em sua direç ã o. — Está nervosa como um pá ssaro no deserto... — acrescentou em seguida, inclinando-se para apanhar uma amê ndoa num pratinho de louç a. A tú nica alva acentuava a pele morena do rosto, do pescoç o descoberto e dos braç os dele. No dedo indicador da mã o direita, tinha um anel pesado, gravado com letras douradas. Sem dú vida, Kasim era um homem terrivelmente belo. — Você olha para mim como se eu fosse devorá -la... — falou, com um sorriso, apó s um instante. — Por que nã o vestiu a roupa que lhe dei? Iria se sentir mais à vontade se tirasse essa calç a e essas botas grosseiras dos pé s! — Prefiro usar minhas roupas — murmurou Lorna, enfiando as mã os nos bolsos da calç a, com um ar aparente de seguranç a. — Nã o sou mulher de haré m, prí ncipe Kasim! — Quando estou acompanhado, prefiro usar o tí tulo de sheik. — informou, com ironia. — Quantos tí tulos você tem, afinal? — ela perguntou, com insolê ncia. — Para mim, é pior do que aquele ladrã o de cavalos. Ele, pelo menos, era pobre e só queria dinheiro... — Como sabe? — Kasim questionou, comendo outra amê ndoa. — Sou muito branca e muito magra para agradar a um beduí no — respondeu Lorna, com sarcasmo. — Nã o tenho as curvas que os á rabes admiram nem os olhos de gazela... Ele deu um sorriso abafado. — Quanta modé stia! Preferiria, naturalmente, que eu a julgasse branca e magra. — Os olhos castanhos a percorreram de alto a baixo, insolentes. — É uma pena você ter vestido essas roupas de homem. Os trajes orientais combinam muito melhor com seu corpo esguio... Ao ouvir o comentá rio, dito em voz baixa, Lorna teve a impressã o de estar completamente nua diante dele. Respirou, aliviada, quando o criado entrou na tenda, com uma bandeja na mã o, contendo diversas travessas cobertas. O criado arrumou os pratos sobre a mesa e serviu uma bebida esverdeada em dois copos compridos, com frisos de prata. Nã o olhou nenhuma vez para Lorna. Os olhos dele estavam discretamente abaixados no momento em que inclinou a cabeç a e saiu da tenda, deixando-a sozinha na companhia de Kasim. — Sente-se, por favor — disse ele, apontando para o sofá. — Nã o estou com fome. — Nã o é possí vel. Você tem de estar, mon enfant! — Levantou-a no colo como uma crianç a e sentou-a entre as almofadas do sofá. Ajeitou-se a seu lado e estendeu-lhe um dos copos compridos. — Isto é limoon, uma bebida feita com limã o, hortelã e uma gota de mel. Prove, vai gostar! — Nã o conhece meus gostos, prí ncipe Kasim. Para você, sou apenas um objeto... — Muito decorativo, por sinal. — Levou o copo aos lá bios dela, e sua voz se tornou mais carinhosa. — Você é rebelde e voluntariosa, como um potro que vê seu reflexo na á gua e foge de sua pró pria imagem. Nã o tem pena de sua beleza? Lorna fitou-o. Os olhos, muito grandes, estavam cor de violeta naquele momento. — Beba — insistiu ele. — Você só sabe mandar! — Lorna exclamou, com raiva. — Seus criados morrem de medo de você! — Por que diz isso? Zahra e Hassan nã o quiseram ajudá -laa fugir? — Deu uma risada, encostando o copo nos lá bios dela, Lorna segurou-o nas mã os e bebeu um gole, com relutâ ncia, enquanto Kasim despedaç ava com a mã o uma perna da codornaassada, que vinha acompanhada de arroz e de legumes. — Se nã o está acostumada a comer com as mã os, há talheres aí — ele disse, apontando para o garfo e a faca com cabos incrustados de pé rolas. — Passou o dia inteiro no deserto e deve estar faminta. Hassan é um excelente cozinheiro e vai ficar triste se você nã o provar as iguarias que preparou para nosso jantar. Nosso jantar! Lorna ferveu de raiva ao ouvir o comentá rio, mas, sob o olhar insistente de Kasim, serviu-se de um pedaç o de cuscuz e forç ou-se a comer. — Prove també m uma perninha de codorna — ele falou, pondo uma coxinha assada em seu prato. — É sua comida favorita? — perguntou Lorna, sabendo que as codornas eram criadas no deserto devido a sua carne tenra e saborosa. — Exatamente! Nã o há carne mais saborosa, digna de um rei. — De um prí ncipe — ela o corrigiu, observando a maneira como Kasim enrolava o cuscuz nos dedos e levava uma pequenabola à boca. Lorna tinha a impressã o de que ele comia com as mã osunicamente para mostrar que era um verdadeiro beduí no do deserto, porque suas maneiras eram absolutamente educadas e finas. Hassan voltou pouco depois com o café, que serviu em duas delicadas xí caras de porcelana. A bebida fora preparada à francesa, e Lorna a teria apreciado devidamente se nã o estivesse tensa e apreensiva. Kasim disse alguma coisa ao criado antes de ele sair, e ela compreendeu com ansiedade que, a partir daquele instante, estariam sozinhos e nã o seriam perturbados por ningué m. Ficou surpresa, portanto, quando o pano da tenda se abriu mais uma vez, e um cachorro grande, de pê los castanhos, entrou correndo e colocou as patas nos ombros de seu dono. Kasim alisou a cabeç a do animal e olhou de relance para Lorna. — Gosta de cachorros? Os ingleses, pelo que sei, adoram animais... — Sim, gosto muito. — ela respondeu, embora observasse o cã o com a mesma desconfianç a que nutria pelo dono. O cachorro examinou-a com atenç ã o e aproximou-se dela, abanando o rabo. — Ele é manso — Kasim informou, reclinando-se nas almofadas do sofá. — E é muito carinhoso, sendo um verdadeiro filho do deserto. Lorna nã o entendeu o significado daquelas palavras. Em sua opiniã o, Kasim simbolizava o deserto melhor do que ningué m, no que tinha de rude e perigoso. Tomando coragem, ela estendeu a mã o e alisou o focinho macio do animal. O cachorro cheirou os dedos e apoiou a cabeç a nos joelhos dela, com os olhos muito meigos voltados em sua direç ã o. — Você é novidade na casa — Kasim falou, inclinando-se para apanhar um cigarro na mesinha. — Quer fumar, Lorna? Ela ficou furiosa ao ouvir seu nome ser pronunciado com tanta intimidade. — Nã o, muito obrigada! Nã o estou acostumada com esses cigarros turcos! — Com o tempo a gente se habitua a tudo — ele disse, observando-a fixamente, enquanto acendia o fó sforo e aproximava a chama do cigarro. Ele deu uma tragada e contemplou-a com indolê ncia. Lorna continuava tensa como antes. O fascí nio daquele homem estranho, sentado nas almofadas do sofá, estava mais presente do que nunca. — No que está pensando? — Kasim indagou. — Num amigo que deixei em Yraa — respondeu, com a voz trê mula, e os cí lios compridos projetando sombras sobre a palidez do rosto. — Ele deve estar preocupado com meu paradeiro... — Um rapaz? — Sim. — Levantou a cabeç a e encontrou os olhos castanhos fixos nos seus. — Provavelmente, ele organizará uma expediç ã o para me procurar... Sabia que eu ia ao oá sis de Fadna e certamente vai contratar alguns á rabes para me localizar. — Precisam ter olhos de lince para encontrá -la aqui — disse Kasim, com um bocejo. — Todas as manhã s, depois que o vento sopra, as areias do deserto sã o lisas como a pele de um bebê! — Pois tenho certeza de que Rodney vai me encontrar! — Ele gosta de você? — A fumaç a do cigarro formava rolos azulados em volta dos olhos castanhos, indolentes como os de um leopardo. — Sim... ele gosta muito de mim. Você nã o tem o direito de tirar a mulher que pertence a outro homem. — Um homem que a deixou sair sozinha no deserto? — Kasim fitou longamente os cabelos compridos e o rosto claro, ligeiramente pá lido. — O deserto é um lugar fascinante, e, pelo visto, você nã o queria dividir seu encanto com esse homem... — Tivemos uma pequena discussã o, e eu saí sem falar nada a ele... — E ele nã o correu a seu encalç o? — Ele nã o é como você! Nã o sai galopando atrá s das mulheres e nã o as arrasta à forç a para seu quarto! — Que homem frouxo deve ser esse seu amigo! É por issoque nã o o ama... — Nã o? Pois eu daria tudo para estar com ele agora! — Por que ele é pacato? Mas eu també m tenho sangue civilizado nas veias... Minha mã e nasceu em Cadiz, na Espanha. Ela tinha a pele branca e os olhos negros. Lorna respirou, aliviada, ao saber que a mã e dele era espanhola, como se esse traç o no sangue abrandasse a ferocidadedo temperamento á rabe. — Ela també m foi seqü estrada e levada para um haré m? — Nã o, minha querida. Ela era enfermeira num hospitaldo Marrocos. O homem que tenho a honra de chamar de pai a conheceu ali e pediu-a em casamento. — Casou-se com ela? — Lorna perguntou, surpresa. — Ele gostava muito dela. — Uma pequena chama ardeu nos olhos castanhos. — O amor do deserto surpreende uma jovem criada na Inglaterra? — Morei um ano em Paris. — Ah, sim? O que achou daquela cidade? Fascinante, nã o? — Já esteve lá? — Fui criado em Paris. Os olhos dela se arregalaram de curiosidade. — Ah, entã o é por isso que fala francê s perfeitamente! — Você també m fala muito bem, ma petite blonde. Lorna encostou-se nas almofadas, numa atitude de defesa, ao ouvir a inflexã o possessiva desse homem chamado prí ncipe Kasim, belo, que vivia no deserto e que se apoderava das coisas de que gostava. O teto parecia rodar lentamente sobre a cabeç a de Lorna quando o cachorro pulou do sofá e correu para fora da tenda. O acampamento recolhera-se para a noite, e os ú nicos ruí dos que escutava, de tempos em tempos, eram os gritos dos camelos, o tilintar dos sinos pendurados no pescoç o dos animais ou o latido distante de um cachorro. Ela sentiu um arrepio de frio quando um golpe de vento balanç ou o pano da entrada e fez tremer as chamas das lâ mpadas. Sombras movimentavam-se atrá s das tapeç arias, e a cortina de contas se movia, como se fosse tocada por dedos invisí veis. Lorna olhou fixamente para a cortina e, com uma exclamaç ã o repentina de susto, levantou-se e correu para fora da tenda, no meio da noite. Mã os impiedosas a seguraram com forç a. Foi erguida pelos braç os de Kasim e levada para o aposento separado pela cortina de contas. Ali, à luz tê nue da lâ mpada de ó leo, avistou os olhos castanhos que a observavam com intensidade. — Está se cansando à toa, sua bobinha — ele disse, apertando-a nos braç os. Os lá bios quentes enxugaram as lá grimas que rolavam pela face dela, — Para que resistir? Sabe que nã o pode fugir de mim. — Eu te odeio! — ela exclamou, com raiva. — Eu te desprezo! — Pois eu gosto de seu temperamento. — A voz era baixa, quase um sussurro, como se zombasse dela. — Você é rebelde, excitante... Você me mataria se pudesse, nã o é verdade? No momento em que foi deitada na cama e coberta com uma colcha de seda, Lorna queria se esquecer de tudo, morrer... Kasim ajoelhou-se para tirar as botas de seus pé s, e ela ficou paralisada de medo. Os braç os e as pernas pareciam entorpecidos. Ele tirou primeiro um pé, depois o outro, e atirou as duas botas para o lado. — Nã o precisa de um criado para despir-se. Vou apagar a lâ mpada. Ela continuou imó vel, mordendo os dedos, como se quisesse abafar o grito que lhe subia na garganta, e viu Kasim atravessar a cortina de contas, que balanç ou e tilintou levemente durante alguns segundos. Entã o, Lorna avistou a faca que estava ao lado da fruteira, sobre a mesinha-de-cabeceira. Um punhal ricamente trabalhado, com uma lâ mina curva. Ela o segurou pelo cabo, sem hesitaç ã o. No momento em que Kasim voltou, Lorna saltou sobre ele, rá pida como um felino, tentando atingi-lo no coraç ã o, mas rasgou apenas a tú nica fina de linho, antes de ser dominada. Ele quase quebrou seus dedos, quando a forç ou a soltar o punhal. A faca caiu em cima do tapete, e ela deu um grito quando ele a inclinou para trá s sobre seu braç o. Fitou-a, com os olhos ardendo de ó dio, enquanto o sangue do pequeno corte manchava a tú nica branca. — Agora você me deixou com raiva — Kasim murmurou, com os dentes cerrados. — Por favor, nã o... As lá grimas rolavam dos olhos que pareciam flores regadas pela chuva. — Nã o vou bater em você — zombou, afundando os lá bios na cavidade do pescoç o dela. Lorna debateu-se para se soltar dos braç os dele e, de repente, caiu do bolso da camisa a flor branca que colhera naquela manhã no oá sis de Fadna, na parede da casa em ruí na onde seu pai morara. Sem soltá -la, Kasim agachou-se para apanhar a flor caí da no chã o. As pé talas estavam amassadas, mas ainda exalavam o perfume forte de flor silvestre. — Por que estava com esta flor no peito? — É minha! — exclamou, tentando tirá -la dele. — Quem lhe deu esta flor? — perguntou Kasim, estreitando os olhos. — Aquele mesmo idiota que a deixou andar sozinha pelo deserto? — Sim, ganhei esta flor do homem que amo — respondeu, com firmeza. — Você nã o pode me obrigar a dizer o nome dele. — Pensei que ele se chamasse Rodney. — Ah, é? Ela tirou a flor da mã o de Kasim, com um gesto brusco. — Seus segredos nã o me interessam. — Soltou-a e levou a mã o ao peito, como se o corte o incomodasse. Apontou para a cama. — Você precisa dormir bem, depois de um dia passado no deserto. Boa noite, minha bela prisioneira. Ele parou junto à cortina e afastou com a mã o as fileiras de contas que desciam até o chã o. — Vou dormir na sala. Lembre-se de que estou sempre de prontidã o, mesmo dormindo. Lorna deu um suspiro quando ele saiu finalmente do quarto. Em algum lugar do deserto, um chacal uivou. Vencida pelo cansaç o e pelas emoç õ es do dia, ela se deitou na cama e afundou o rosto no travesseiro. A flor branca estava apertada contra seu rosto, e uma lá grima escorria lentamente sobre ela no momento em que Lorna mergulhou no sono profundo, momentaneamente esquecida de suas preocupaç õ es.
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