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CAPÍTULO III
Lorna galopou na frente de Kasim por mais de umquilô metro. Entã o, com uma facilidade estupenda, ele se aproximou, enlaç ou-a pela cintura e depositou-a na frente de sua sela. Ao ouvir a gargalhada de Kasim, Lorna começ ou a lutar com um desespero quase primitivo, dando socos em seus ombros. Os dentes dele, muito brancos, destacavam-se na pele bronzeada, e, somente com as pernas, ele dominava e guiava o cavalo adestrado, enquanto a envolvia com a capa ampla. Ela estava ofegante, zonza e irritada diante de sua fraqueza. — Seu bruto! — exclamou Lorna, com fú ria. — O que está fazendo? — Adivinhe — ele murmurou, estalando a lí ngua para sossegar o cavalo, que estava inquieto com a luta que se travara em seu lombo. — Sossegue, Califa... estamos levando uma gata selvagem para casa... Pois é, menina, teria arrancado meus olhos se pudesse... Tornou a dar uma sonora gargalhada e dominou-a com tanta facilidade como se ela fosse uma crianç a indefesa. — Sua bobinha, está se cansando à toa... ou acha que Kasim ben Hussayn pode ser vencido por uma pirralha como você? Tirou-lhe uma mecha de cabelos loiros de cima dos olhos e fitou-a de modo tã o intenso que ela ficou repentinamente pá lida e imó vel. — Seus cabelos sã o realmente desta cor? — ele perguntou, com um olhar que nã o era apenas de admiraç ã o, como Lorna estava habituada a receber, mas de um homem que apanha o que deseja sem pedir licenç a. — Seda selvagem — murmurou, fascinado pelos fios cor de ouro, enrolados entre os dedos compridos. — Seda natural. Dourada como o deserto. Lorna procurava evitar ao má ximo o contato com o peito má sculo. — Você... aç oitou aquele homem por ter roubado um cavalo! Os olhos azuis refletiam um terror que nunca experimentara antes. Kasim a assustava ainda mais que o á rabe mal-encarado que a sequestrara no oá sis. Nã o fazia diferenç a que a capa dele fosse limpa como o ar do deserto e que tivesse um leve aroma de tabaco turco, cheiro que ela reconheceu no primeiro instante, porque seu pai fumava cigarros turcos. Nã o fazia diferenç a que as mã os compridas que a cingiam fossem limpas como suas roupas. A pró pria beleza dele gelava seu coraç ã o. — Meus cavalos sã o de estimaç ã o e nã o admito que sejam maltratados! — Fitou-a nos olhos, e ela se lembrou de um leopardo, arrogante e seguro do temor que inspira aos outros. — Nã o me canso nunca de meus cavalos. Sã o belos, submissos e leais. Nã o posso dizer o mesmo de muitas mulheres... Enquanto o cavalo dele galopava sob a luz ofuscante que dominava o deserto, os outros cavaleiros seguiam em fileiras atrá s. Lorna fechou os olhos para nã o ver o rosto de Kasim, depois tornou a abri-los e procurou na fisionomia severa algum sinal de compaixã o... mas nã o havia nenhum. Aquilo era real, e nã o um pesadelo. Estava presa pela capa e pelo braç o forte daquele homem, duplamente imobilizada. Sentia os movimentos do cavalo, mas, exausta e sem forç a, tinha apenas uma leve consciê ncia da situaç ã o quando o sol desapareceu, e a noite rapidamente se apossou das primeiras estrelas que brilhavam no cé u da Ará bia. O tilintar do freio e das argolas de prata que enfeitavam o arreio do cavalo acabou por adormecê -la. Algum tempo depois, no entanto, o ritmo dos passos do animal se alterou, e Lorna acordou do estranho sono que tivera. Era noite avanç ada. Estava embrulhada confortavelmente na grande capa de montaria quando os cavaleiros chegaram a um acampamento de tendas pretas, iluminadas pelo luar. Ela viu as formas ajoelhadas dos camelos e a chama da lenha que ardia nas fogueiras. Ouviu vozes e ordens ditas em á rabe, enquanto era levantada da sela e colocada no chã o. Estava com os braç os e as pernas dormentes e tinha apenas uma vaga consciê ncia da beleza exó tica do ambiente e da agitaç ã o de homens e mulheres em sua volta. Estremeceu, mas nã o de frio. A lua, bem no alto, era umafoice prateada, e o perfil do chefe dos cavaleiros estava delineado no cé u enquanto dava ordens a seus homens. Em seguida, voltou-se bruscamente para Lorna. Ela percebeu o sorriso arrogante nos lá bios finos. Dividida entre a fú ria e o medo, acordou de sua sonolê ncia, ergueu a mã o e lhe deu um tapa no rosto. Uma vez... duas vezes... como se necessitasse extravasar o terror que sentia por ele. Kasim deu uma gargalhada e levantou-a nos braç os. Os outros observaram a cena em silê ncio, os rostos semelhantes a má scaras douradas à luz da fogueira. Viram o chefe carregá -la no colo para a grande tenda dupla que estava armada num ponto isolado do acampamento, alé m do cí rculo das fogueiras. Com um movimento do ombro, Kasim levantou o pano caí do na porta da tenda e entrou, carregando-a nos braç os, O ruí do das botas foi silenciado pelos tapetes espessos que cobriam o chã o. — Selvagem! — exclamou Lorna, com raiva, encarando o olhar arrogante do á rabe, embora se sentisse mole e assustada. — Se pensa que pode me manter prisioneira aqui, está muito enganado. Sou uma cidadã inglesa! — Sei disso — respondeu Kasim, com indiferenç a. — Estou em meu territó rio e nã o sou sujeito a nenhuma autoridade. O que acha que vou fazer com você? O olhar dele era de uma ironia cruel, e ela notou cada detalhe do rosto moreno à luz das lâ mpadas de cobre, que exalavam um cheiro forte de sâ ndalo. O desenho das sobrancelhas e do nariz era reto, impecá vel. As narinas eram finas e estreitas, e a linha do queixo tinha uma curva dura e acentuada. Olhou para a boca... que esboç ava imperiosamente um sorriso que nã o levava em consideraç ã o os sentimentos de Lorna. — Tenho dinheiro — ela sussurrou. — Prometo pagar bemse me libertar. — Nã o preciso de seu dinheiro — Kasim falou, com uma risada desdenhosa, e colocou-a no chã o. — Nã o é com seu dinheiro que vai comprar sua liberdade. Só há uma maneira de obter isso... e você sabe qual é. — Nã o sei qual é — disse Lorna, com os olhos vermelhose inchados. — Jura? — perguntou Kasim, observando-a de alto a baixo. — O que um homem pode querer quando leva uma bela mulhercomo você para sua tenda? Tenho certeza de que sabe! Nã o se faç a de ingê nua... Quando o sentido das palavras penetrou em sua cabeç a, ela recuou instintivamente alguns passos e esbarrou no sofá. Apertou a capa ampla contra o corpo e olhou em volta, assustada, à procura de algum meio de escapar de seu seqü estrador. Avistou a cortina de contas que levava a outra parte da tenda dupla, mas, no momento em que examinou com atenç ã o aquele aposento, percebeu, alarmada, que era ali o haré m do sheik. Voltou bruscamente a cabeç a e encontrou os olhos dele fixos nos seus. — Nã o sou uma mulher da vida! — exclamou, furiosa. — Vim passar as fé rias aqui, e meus conhecidos vã o me procurar... Será punido se me acontecer alguma coisa! — Nã o diga! Kasim deu um passo à frente e arrancou a capa que a cobria, deixando-a apenas com a camisa leve de verã o e a calç a comprida justa no corpo. Nunca ningué m a olhara com tanta avidez. Nunca se sentira tã o consciente de ser uma mulher desejá vel. — Uma moç a como você nã o deveria circular sozinha por ai, como uma cigana... É uma loucura ser jovem, nã o? Seguir os impulsos do momento, em vez de ouvir os conselhos dos mais experientes. Tenho certeza de que foi advertida sobre os perigos do deserto. Mas nã o ouviu os avisos... Foi muito imprudente, mocinha! Um tremor percorreu o corpo indefeso. Cada palavra dele era uma chicotada em seu coraç ã o.. Recuou no momento em que Kasim pô s a mã o em sua nuca e forç ou-a. a encará -lo. — Você é bela como uma rosa selvagem... e tem espinhos que ferem as mã os — ele acrescentou, agora acariciando, a linha sinuosa do pescoç o de Lorna. — Nã o gosta de ser tocada por um homem... Onde adquiriu esse comportamento frio e distante... num convento? — E você, onde adquiriu sua crueldade? — ela replicou, com voz fria. — É um monstro! — Sou apenas um homem. — Havia um sorriso perigoso em seus lá bios. — Acredito que tudo depende do destino, e foi ele que nos aproximou... comprenez-vous? — O destino nã o justifica os crimes — Lorna respondeu, com o coraç ã o batendo aceleradamente no peito, enquanto encarava o rosto belo. — Há o respeito pelos outros... — Sua sú plica nã o me comove, minha cara. — A mã o desceu pelo ombro, e ela sentiu o contato por cima do tecido leve da camisa. — O que o respeito tem a ver com o sentimento de um homem por uma mulher? — Deu uma risada, inclinou a cabeç a e beijou-a na curva do pescoç o. — Como sua pulsaç ã o está rá pida! Tem medo de mim? — Você é odioso! O beijo fora bem leve, mas, mesmo assim, ardia como fogo. — Pois eu a acho terrivelmente excitante. —Enlaç ou-a como se fosse uma planta inclinada para trá s sob um golpe de vento. — Seus cabelos sã o dourados como o sol do deserto, seus olhos sã o da cor de jasmim-azul e sua pele é clara como a madrugada. Eu a desejo e prefiro possuir as coisas à forç a a recebê -las espontaneamente. — Nã o pode fazer isso. As palavras morreram nos lá bios de Lorna e deixaram apenas a sú plica muda dos olhos. — Você sabe que sim. As mulheres sã o instintivas por natureza... Seu instinto nã o lhe disse ainda por que a trouxe a minha tenda? Kasim tocou os cabelos compridos, passou os dedos sobre o pescoç o delicado, que se perdia na gola aberta da camisa, e, quando ela tentou defender-se, quando lutou desesperadamente contra seus braç os fortes, agarrou-a com brutalidade e apertou-a contra si com uma violê ncia que podia tê -la sufocado, — Bela e rebelde! Um filhote de pantera que nã o foi domesticado pelo homem. Muito bem, vamos brigar primeiro... e depois fazer as pazes! Ao dizer essas palavras, soltou-a e saiu rapidamente da tenda. Quando o pano da entrada voltou a seu lugar, Lorna caiu, exausta, no sofá e pô s a cabeç a entre as mã os. Estava trê mula e sem ar, mas o alí vio das lá grimas lhe foi negado. Aliá s, de que adiantava chorar? Nã o poderia esquecer que estava nas mã os de um homem brutal, impiedoso e cruel, como nunca imaginara encontrar no Oriente. Os á rabes que avistara na cidade eram homens pacatos e obesos, Kasim, no entanto, tinha a aparê ncia de um prí ncipe... que saí ra diretamente de algum conto á rabe da é poca do califa Harun al-Rachid. Lorna arrependeu-se amargamente de nã o ter ouvido os conselhos de Rodney para nã o passear sozinha no deserto. Rodney a avisara... O adivinho vira seu destino traç ado na areia... Caprichosa, teimosa e imprudente, ela nã o ouvira os conselhos de ningué m e deixara-se seduzir pelo encanto do deserto. Estremeceu ao sentir a presenç a de algué m na tenda. Levantou a cabeç a, assustada, com o rosto muito pá lido, e avistou um criado. Ele tocou na testa, nos olhos e nos lá bios, com a ponta dos dedos, para indicar que todos os trê s estavam a seu serviç o. — Trouxe á gua para a lella tomar banho — o criado disse, em francê s. — Trouxe roupas també m para a lella vestir. Meu senhor vai jantar com sua convidada. Lorna corou repentinamente com a inflexã o do homem. Ficou de pé e exclamou, com desespero na voz: — Preciso sair daqui! Se me arrumar um cavalo, eu lhe pagarei generosamente! — O dinheiro nã o tem valor para mim, lella. Eu seria punido com a morte se fizesse o que pede. Retirou-se da tenda com uma inclinaç ã o de cabeç a, e Lorna compreendeu amargamente que nã o teria nenhum aliado no acampamento, pois ningué m correria o risco de desobedecer as ordens do sheik. Levou a mã o ao pescoç o, tocando o ponto onde fora beijada por Kasim. A lembranç a do beijo, tã o recente e ardente, fez com que saí sse correndo em direç ã o à outra parte da tenda dupla... o haré m. Olhou em volta e reconheceu que o local era mobiliado com incrí vel bom gosto. Havia um sofá coberto por uma colcha bordada com fios de ouro. Os motivos eram ramagens e flores de jasmim-azul. Ao lado do sofá, havia uma mesinha com uma lâ mpada de cobre e uma caixinha de madeira entalhada contendo cigarros e alguns fó sforos. Lorna passou a lí ngua sobre os lá bios secos. Os nervos suplicavam o gosto de fumo na boca e, esquecendo-se momentaneamente de que eram de Kasim, ajoelhou-se no sofá e apanhou sofregamente um cigarro. Os cigarros eram turcos e tinham gosto forte e á spero. A primeira tragada causou-lhe uma tosse instantâ nea, mas em seguida a sensaç ã o de ardor passou. Lorna acomodou-se no sofá, cansada e ao mesmo tempo tensa, prestando atenç ã o nos ruí dos que vinham de fora. Uma pele de leopardo estava estendida em cima do tapete. As lâ mpadas de cobre exalavam um perfume delicado, e havia uma mesinha esmaltada com espelho e objetos de uso pessoal. O aposento, como seu dono, era imaculadamente limpo e arrumado. As tapeç arias bordadas à mã o e as almofadas enormes nã o apresentavam uma mancha sequer. Num banquinho, ao pé do sofá, ela avistou um roupã o de seda e um pijama. A intimidade do aposento era envolvente. Era ali que Kasim dormia. Era ali que descansava no fim do dia e lia os livros com tí tulos em francê s que estavam enfileirados numa estante no alto da cama. Lorna apagou o cigarro no cinzeiro de cobre, e todos os nervos do corpo se contraí ram quando a cortina de contas se abriu para deixar passar uma jovem com um vé u no rosto. — Sou Zahra — a moç a se apresentou, olhando curiosamente para Lorna, examinando os cabelos compridos, a roupa justa e as botas de cano alto. Zahra retirou o vé u do rosto e desapareceu atrá s da cortina. Voltou no instante seguinte, com duas chaleiras de á gua quente nas mã os. Colocou as vasilhas de cobre em cima da mesinha e, apó s afastar uma cortina de brocado, apontou para um quartinho minú sculo onde havia uma bacia enorme, bastante grande para uma pessoa acomodar-se em seu interior. — A lella quer tomar banho? — a moç a perguntou, em francê s. Lorna meneou a cabeç a afirmativamente. Um banho quente era a coisa que mais desejava no momento. Zahra encheu a bacia de cobre com a á gua das duas chaleiras, apanhou em seguida uma toalha e despejou um ó leo aromá tico na á gua fumegante. O vapor tinha um cheiro forte e cativante, e Lorna respirou, aliviada, quando a jovem saiu pela cortina de contas, dizendo que ia buscar alguma coisa lá fora. Despiu as roupas cobertas de poeira e entrou na bacia, que era suficientemente grande para ajoelhar-se lá dentro. Lavou-se com os sais de banho e embrulhou-se na toalha enorme que lhe batia nos pé s. Estava se enxugando quando Zahra voltou trazendo algumas roupas nos braç os. Mostrou cada uma delas para Lorna. 0 robe era bem fino, quase transparente, as calç as turcas de seda tinham bordados na cintura, a tú nica era de veludo e os chinelos, muito macios e forrados de penas, tinham as pontas levantadas. Lorna olhou, assombrada, para a coleç ã o. Eram trajes tí picos de haré m! —Nã o, isso nã o! — exclamou, balanç ando a cabeç a com firmeza. Zahra observou-a, espantada e sem jeito. — Nã o vou usar isso! — repetiu Lorna, apanhando suas roupas caí das no chã o. Com os dedos trê mulos, Lorna tornou a vestir a camisa e a calç a sujas, que pareciam tã o pouco femininas ao lado das roupagens orientais, leves e esvoaç antes. Ela nã o era mulher de haré m! Por mais apavorada que estivesse, nã o se submeteria ao tal sheik sem primeiro lutar para defender sua liberdade. Levantou o queixo e encontrou os olhos grandes e escuros de Zahra. — Sinto muito, Zahra, mas nã o posso usar as roupas que me trouxe... — O prí ncipe Kasim vai ficar zangado — disse a moç a, assustada. — Diga que fui eu que nã o quis — Lorna falou, decidida. — Nã o me importo nem um pouco com a raiva desse prí ncipe. Mirou-se no espelho em cima da mesinha e notou que os cabelos estavam emaranhados e revoltos. Apanhou com relutâ ncia o pente de tartaruga que encontrou na penteadeira e desembaraç ou os cabelos compridos. Ela levava sempre consigo um estojinho com batom no bolso da calç a e, ao passá -lo nos lá bios, sorriu para si mesma- O batom era a arma predileta das mulheres nos momentos de crise. Ao virar-se, percebeu que Zahra havia saí do do aposento. As roupas de seda e de veludo estavam arrumadas em cima de uma arca, juntamente com os chinelos vermelhos. — Prefiro morrer a usar essas roupas de odalisca — murmurou, com desdé m. Tomou coragem, passou pela cortina de contas e voltou para a parte principal da tenda. A mesinha baixa estava servida para dois, diante do sofá coberto de almofadas. Havia talheres com cabos incrustados de pé rolas e copos com frisos de prata. O homem que morava naquele lugar era um demô nio impiedoso e belo, que vivia como um prí ncipe. Mordeu os lá bios com despeito. Aliá s, era exatamente isso, segundo Zahra. Um prí ncipe arrogante... que logo entraria na tenda, com seu andar imponente de felino.
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