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CAPÍTULO VI



 

Era sexta-feira à noite, e Vanessa estava deitada no quarto, ouvin­do os grilos e as cigarras. Os sons a levavam de volta a Ordaz, onde tinha sido livre e feliz. Virou-se na cama e tentou encontrar o sono que vinha fugindo nos ú ltimos dias. Afofou o travesseiro, fechou os olhos... e o tique-taque do reló gio na mesinha ao lado ecoou dentro de sua cabeç a feito um tambor.

Droga! Jogou longe os lenç ó is, levantou-se e vestiu o robe novo de seda que comprara na cidade. Debruç ou-se na sacada e ficou olhando as estrelas. Sentiu um aperto no coraç ã o quando, instinti­vamente, virou-se na direç ã o de Ordaz. Por que, se sabia que dali hã o dava para avistar a ilha? O que estava procurando? O querido tio que tinha perdido para sempre, os piqueniques à beira do rio, as partidas de tê nis, os jantares tranqü ilos em famí lia, os foxtrotes que danç ava com Jack Conroy, os passeios pelo jardim? Onde estaria o rapaz, agora? Com certeza nã o no hotel no Chile. Escrevera para lá, sem receber resposta. Devia ter partido em outra expediç ã o pela selva, à procura de diamantes ou esmeraldas.

Sorriu e nã o pô de deixar de pensar no homem que a trouxera para Luenda. Desde aquele almoç o no Skylight, havia entre eles uma tensã o latente, e odiava aquela sensaç ã o. Era como se seu temperamento rebelde tivesse sido temporariamente subjugado pela vontade mais forte dele. Don Rafael tinha poder, e contra isso ela nã o podia lutar.

Barras de ferro invisí veis a mantinham prisioneira numa torre que ela mesma construí ra. Na verdade, o señ or se oferecera para pagar sua passagem para a Inglaterra e foi ela quem nã o quis. E tinha escolha? Voltar para casa e continuar dependente do dinheiro dele nã o seria muito diferente de ficar ali. Pelo menos agora, como sua empre­gada, nã o lhe devia favores.

Alé m do mais, chegava a entrar em pâ nico, à simples idé ia de nunca mais ver aquela paisagem tropical. Cinco anos antes, quando chegou ao Caribe, sentiu alguma coisa vital nascer dentro de si.. . que morreria, se deixasse o sol e o mar, o feitiç o das noites estreladas. Seu coraç ã o bateu violentamente, feito um pá ssaro tentando se libertar da gaiola. Um vaga-lume cortou a escuridã o do pá tio. Nã o, nã o era um vaga-lume, mas a ponta de um cigarro. Uma figura alta estava parada lá embaixo, escondida nas sombras: um senhor medieval em seus domí nios. Don Rafael de Domerique, cujos olhos haviam brilhado tanto, ao falar em seu ancestral, El Conquistador, que trou­xera uma noiva inglesa para a ilha, a peso de ouro.

Seria mesmo possí vel que a moç a se apaixonasse por tal homem? Nã o podia acreditar que aquele coraç ã o orgulhoso pudesse ser tocado por uma garota indefesa, raptada por piratas e levada para o mercado de escravos em Tâ nger. Era uma histó ria bá rbara, o tipo de coisa que don Rafael devia achar excitante. Nã o havia piedade nele pela mulher à mercê de bandidos inescrupulosos. Esse don Rafael nã o se parecia apenas fisicamente com o outro, mas de muitas outras ma­neiras també m.

Afastou-se do balcã o, com raiva, e ouviu o barulho de alguma coisa quebrando atrá s dela. Tinha derrubado no chã o o vaso de flores que estava em cima da mesa da varanda. O espanhol, fumando no pá tio, devia ter ouvido. Agora sabia que ela estava lá, compartilhando com ele a beleza da noite.

Ficou parada por um momento, tensa, quase amedrontada. Entã o, correu para a cama. Como uma crianç a, escondeu-se sob os lenç ó is, tremendo da cabeç a aos pé s. Sentiu um arrepio na nuca e teve a impressã o de ver o rosto moreno na escuridã o do quarto... O amor é lindo e cruel... e profundo como o mar... Qual era a canç ã o que dizia isso?

Dormiu e acordou com a sensaç ã o de ter tido sonhos estranhos, de que nã o conseguia se lembrar. A bandeja do chá já estava pronta, na mesinha ao lado da cama. Serviu-se e ficou se olhando no espelho em frente, enquanto tomava o chá, preguiç osamente. Sentia-se uma princesa naquela cama enorme, entre lenç ó is de cetim cor-de-rosa, tomando o café da manhã numa xí cara de porcelana finí ssima e ser­viç o de prata.

Precisava tomar cuidado para nã o engordar. Aqueles biscoitinhos eram uma tentaç ã o. Toda manhã, um tipo diferente, feito em casa. E o mais delicioso era exatamente o de coco, coberto com uma fina cama­da de aç ú car cristalizado. O biscoito dos sá bados.

Sá bado! Tinha esquecido completamente. Era hoje que Gary Elsing viria buscá -la.

Ficou ao mesmo tempo excitada e apreensiva. Gary, com certeza, ia protestar novamente contra aquela ordem absurda de voltarem à s dez horas, mas sabia que nada faria o señ or mudar de idé ia. O homem fazia suas pró prias regras, e nã o seria agora, por causa de uma ingle­sa e de um americano, que as coisas deixariam de ser como sempre tinham sido.

Quando enfiava uma coisa na cabeç a, nã o havia quem o fizesse voltar atrá s. E, para ele, Gary Elsing era um outro Jack Conroy. Devia imaginar que seu tio nã o aprovaria sua amizade com ele, da mesma maneira como nã o via com bons olhos o namoro dela com o geó logo.

Saiu da cama. Era revoltante ter que se submeter à vontade de don Rafael, mas nã o podia arriscar o emprego de Gary só pelo prazer de contrariar seu " guardiã o". " Pode comprar as roupas que quiser, Srta. Carrol", " Pode ter os amigos que quiser, Srta. Carrol". O cí ni­co! E como tinha enfatizado a palavra " amigo". O que será que tinha em mente? Só faltava agora pretender arranjar, para ela tam­bé m, um marido... conveniente. Ele que nã o se atrevesse a levar tã o a sé rio o papel de tio substituto!

Abriu o guarda-roupa, onde Concepció n tinha pendurado os vesti­dos novos. Começ ou a examinar cabide por cabide, procurando o chiffon negro, de alç as, que queria usar naquela noite. Entã o, viu o que nã o esperava ver: lá estava o modelo de noite, em seda e renda. Aquele que nã o tinha comprado porque era caro demais.

Tirou o vestido do cabide. Nã o havia dú vida: aquele modelo era inconfundí vel. Mas tinha dito claramente à gerente da loja que nã o ia ficar com ele! Sentiu-se perturbada. De repente, possuí a uma coisa que desejava tanto, mas que havia rejeitado porque... porque nã o queria ganhá -la de don Rafael de Domerique.

A loja nunca mandaria o vestido, se nã o recebesse ordem dele. Provavelmente Bá rbara, que nã o sabia ficar com a boca fechada, tinha falado com o padrinho. Furiosa, guardou-o no fundo do armá ­rio. Nã o o usaria! Preferia morrer a ter que agradecer por mais aquele presente.

Fechou a porta do guarda-roupa com violê ncia, os olhos cheios de lá grimas. Detestava cada vez mais aquele homem que interferia em sua vida, invadia sua privacidade e tentava, à forç a, fazê -la aceitar algo que podia ter adorado. . . e agora odiava.

A arrogâ ncia dele já estava passando dos limites, mas nã o ia deixar que se divertisse à s suas custas, vendo-a trê mula de revolta, impotente... e amedrontada. Foi para o banheiro e tomou uma ducha gelada. Depois de remover do rosto o ú ltimo vestí gio das lá grimas, sentiu-se pronta para enfrentar mais um dia no Castelo de Ouro.

Os sinos da capela particular do castelo tocavam quando Vanessa saiu para o pá tio, onde a famí lia costumava tomar a primeira refeiç ã o do dia. Era quase um ritual, com uma variedade incrí vel de pratos trazidos num carrinho por um criado de uniforme imaculadamente branco.

Entrava-se no pá tio passando sob uma arcada de cedro coberta de cravos vermelhos e rosados. A mesa redonda ficava no centro de um canteiro de tulipas. Geralmente don Rafael já tinha saí do quando Vanessa e Bá rbara desciam. Mas naquela manhã, por ser sá bado e ainda cedo, ele estava lá, lendo o jornal.

Vestia uma camisa cor de vinho, de mangas curtas, e calç a branca. Sorriu quando Vanessa se aproximou, e a imagem do corsá rio lhe voltou à cabeç a. É muito atraente, o bandido, pensou, com o coraç ã o cheio de ressentimento.

Ele se levantou e puxou para ela uma das cadeiras de ferro.

Muy buenos dias, señ orita.

Deu um olhar avaliador para o vestido verde sem mangas, as san­dá lias de salto, o cordã ozinho simples, todo de conchas, que Bá rbara comprara para ela no dia em que foram à cidade.

— Dormiu bem? — E acrescentou, com um sorriso: — Responda em espanhol.

Ultimamente ele levava muito a sé rio a promessa de lhe ensinar sua lí ngua. Vanessa estava fazendo alguns progressos, embora ainda bem modestos.

Muy bien, grá cias, señ or.

Assustou-se quando ele a impediu de se sentar, puxando-a pelo braç o, num movimento rá pido. Tantas tolices lhe passaram pela ca­beç a... até ver o motivo do gesto que a perturbara tanto: uma ara­nha descia do pé de magnó lia, bem na direç ã o de sua cadeira. Ele esmagou o inseto negro e repelente. Depois, sorriu.

— Parece que está se tornando um há bito para mim salvá -la de todo o tipo de perigo.

Sempre desconfiava de um duplo sentido em tudo o que dizia, mas nã o fez nenhum comentá rio; limitou-se a retribuir o sorriso e aceitar a xí cara que lhe oferecia. Tirou o guardanapo de linho da argola de prata, com as mã os ainda trê mulas, desejando que Bá rbara descesse logo.

— Havia muitas aranhas em Ordaz. Nã o gosto delas, mas nã o me apavoram a ponto de sair correndo atrá s do primeiro homem cora­joso que aparecer.

— Porque é uma inglesa, claro, e precisa manter a pose. — Virou-se para o carrinho. — Prefere café com leite ou vai me dar o prazer de tomar chocolate, à moda espanhola?

Ficou tentada a pedir café, mas mudou de idé ia, nã o para lhe dar um prazer, mas para evitar outra discussã o inú til. Só que, para ele, discussã o e prazer eram coisas muito parecidas.

— Vamos, diga logo que nã o gosta nem um pouco de nada que é espanhol, a começ ar por mim.

Ele sabia! Sabia que tinha medo dele, que nã o gostava dele e, por causa da indiscriç ã o de Bá rbara, sabia até que ela nã o era sempre uma fria e reservada mocinha inglesa. Sabia que os beijos de um homem a deixavam excitada.

Nã o aceitou a provocaç ã o. Preferiu o chocolate com churros. Seria uma tolice recusar uma delí cia daquelas, só para irritá -lo. Comeu com apetite, apesar de todos os biscoitinhos que tinha devorado, nã o fazia nem quinze minutos.

Don Rafael parecia satisfeito com a pequena batalha e voltou à leitura do jornal, como se ela nã o estivesse ali.

Que homem estranho e complicado! Algum dia teria permitido que algué m se aproximasse o bastante para conhecê -lo bem? Talvez sua linda mã e, agora afastada do mundo, trancafiada num convento da Segó via? Ou a velha senhora, dona Manuela? Será que revelava seu outro lado, o lado bom, para as pessoas que amava... especialmente para Lú cia Montez?

— Quer um pouco de peixe ou omelete? — ele perguntou, ban­cando o perfeito anfitriã o, apesar de seus olhos mostrarem que se divertia com o ar carregado entre eles.

A omelete 'parecia tentadora. Vanessa nã o resistiu a provar pelo menos um pedacinho. Don Rafael serviu uma porç ã o maior do que ela queria, mas já estava acostumada a aceitar as coisas à moda dele. Passou-lhe o prato e, ao fazer isso, derrubou o saleiro.

Mala suerte! — exclamou e, rapidamente, jogou trê s punhadinhos de sal por sobre o ombro. — Quem foi o desastrado, señ orita, eu ou você?

O olhar que lhe deu ao dizer isso confirmou a suspeita de que tinha ouvido o vaso se quebrar, na noite anterior.

— Deixo você nervosa? — perguntou, pegando o saleiro, depois que ela se serviu. — É difí cil entender por que se sente nervosa comigo, se já nos conhecemos há cinco anos.

— O senhor era amigo de meu tio e um convidado em nossa casa. Agora, a situaç ã o se inverteu.

— Acho que o problema é falta de diá logo. Quando duas pessoas nã o conversam, é difí cil simpatizarem uma com a outra.

— Concordo. Mas acho impossí vel um diá logo, quando o senhor espera que eu sinta e reaja como uma espanhola e se enfurece porque nã o sou capaz disso.

— Como disse o sr. Elsing, você é uma inglesa e nã o está acos­tumada a que controlem sua vida, nã o é? Ora, pode dizer, com toda a sinceridade, que trato Bá rbara como a uma prisioneira? Sou tã o ruim assim, sita. Carrol?

— Bem, o senhor criou um caso danado e desnecessá rio por causa do convite de Gary. Garanto que nã o pretendo fugir com ele, por mais atraente que o ache.

— Entã o, acha o sr. Elsing atraente? Será que isso já nã o é amor?

— Amor! — Vanessa riu. — Acha que sou alguma tola para me apaixonar pelo primeiro homem que me faz a corte? Meu Deus! Que pé ssimo juí zo faz de mim!

— Acho apenas que ainda nã o amadureceu emocionalmente.

Ele empurrou o prato vazio e, calmamente — talvez só para irritá -la —, escolheu uma laranja numa salva de prata. Parecia um deus pagã o... e, sem dú vida, se considerava mesmo uma espé cie de deus naquela ilha. Incrí vel como a simples presenç a dele sempre a fazia fantasiar.

— Gostou da omelete?

Vanessa teve um sobressalto com a pergunta inesperada: com que facilidade ele mudava de um assunto sé rio para banalidades!

— Estava uma delí cia. Tinha alguma coisa diferente, nã o sei exa­tamente o quê.

— Era o azeite de oliva, um dos melhores do mundo. Temos até um ditado que diz que uma esposa deve ter a suavidade do ó leo, e o marido, o calor do vinho. Uma comparaç ã o bem espanhola, nã o acha?

— Demais.

Riu, imaginando se as espanholas de vez em quando nã o se atra­palhavam e esqueciam de usar seu verdadeiro arsenal de artimanhas para provar a superioridade masculina.

— Seus olhos falam. Sabia disso, Srta. Carrol? As espanholas co­meç am a ganhar a sua simpatia, hein? No í ntimo, o espanhol é um primitivo, que considera a esposa uma propriedade dele. Dele, enten­de? Ela sabe disso e'nã o espera que o homem seja um anjo. Aliá s, uma mulher de verdade nã o quer isso. Claro que nã o espero que uma inglesa fria compreenda esse tipo de coisa, mas tem a minha palavra de que o fogo que existe no amor dos latinos destró i todos os proble­mas. Nã o precisa ter pena de nossas mulheres.

— Tenho certeza de que tudo o que disse se aplica ao tempera­mento de você s, don Rafael.

Por que Bá rbara estava demorando tanto? Queria arranjar uma des­culpa qualquer e sair dali, mas nã o podia dar o braç o a torcer. Ele ia achar que ela estava fugindo da absurda intimidade daquela con­versa. E nã o seria mesmo uma fuga? Resolveu ficar e enfrentar a situaç ã o.

— Sempre pensei que você s tinham uma maneira excessivamente româ ntica de encarar o amor, mas parece que me enganei.

— Ao contrá rio. A linguagem amorosa espanhola é, talvez, a mais excitante do mundo. Acho que nã o deve estar é acostumada a falar, como nó s, dos aspectos mais í ntimos do romance. Separa sexo de amor, como se sexo també m nã o fosse uma coisa bonita. . . Choquei você?

Vanessa estava corada até a raiz do cabelo. Por que ele falava daquele jeito com ela? Nã o era uma adolescente pudica, mas nunca o ouvira dizer tã o abertamente coisas tã o í ntimas, e com aquela voz estranha. . . a voz de um homem apaixonado que antecipa o prazer da posse.

— Nã o estou chocada, señ or. Só nã o concordo, quando diz que o amor é uma emoç ã o mais fí sica do que espiritual.

— O amor é uma reaç ã o quí mica, señ orita. — Sorriu, com indul­gê ncia, de sua fantasia juvenil. — O corpo responde à tentaç ã o de outro corpo, antes que a cabeç a possa evitar. É por isso que as pes­soas cometem tantos erros e é por isso també m que é um costume em meu paí s orientar uma moç a na escolha do companheiro. As jovens podem se deixar cegar por sua â nsia de encontrar o amor e entregar o coraç ã o ao primeiro homem que as faç a se sentirem mulheres. Uma mulher conhece o poder do pró prio corpo, mas uma garota, que acaba de descobrir que é capaz de vencer o homem mais forte com esse poder, tem a perigosa tendê ncia de se afirmar, procurando justa­mente os fracos de cará ter. Talvez porque seu instinto maternal des­perte quase ao mesmo tempo que o impulso sexual. O fato é que é muito comum confundirem as duas coisas. E há uma grande dife­renç a entre uma mã e e uma amante. Será que fui bem claro agora, señ orita?

Oh, sim, claro como o dia!

— Todo esse discurso foi um recado com endereç o certo, nã o? Está me prevenindo para nã o me deixar levar pelo instinto maternal, quando... e se... Gary Elsing me abraç ar e beijar. Nã o imaginava que eu parecesse tã o carente de amor!

— Muitas pessoas sã o carentes. Mas o seu caso é especialmente perigoso; sente-se solitá ria e insegura. Pode ser uma presa fá cil para homens como o sr. Elsing.

— Mas já estou apaixonada! — As palavras escaparam, antes que Vanessa pensasse no que estava dizendo. E nã o pô de parar. — Esque­ceu-se de Jack Conroy, señ or. Meu tio nã o lhe contou que estamos praticamente comprometidos? Pô de ver por si mesmo, quando esteve em Ordaz, o que sentimos um pelo outro.

Ele olhou para ela, impaciente.

— O que vi foi uma garota e um rapazinho brincando de gente grande. Mas se quer acreditar que aquilo era amor, vá em frente. Talvez essa crenç a absurda sirva, pelo menos, para impedir que o sr. Elsing faç a você de boba.

— Como se atreve? — Vanessa levantou-se, os punhos apertados de raiva. — Acha que, só porque é o senhor de Luenda, pode dizer e fazer o que bem entende, sem se importar com os sentimentos dos outros? É o homem mais arrogante e vaidoso que tive o desprazer de conhecer em toda a minha vida!

Ele també m se levantou, com os olhos brilhando. Vanessa sentiu suas mã os como garras de aç o nos ombros.

— E você, Srta. Carrol, é a mulherzinha mais temperamental que já tive o desprazer de conhecer. Precisa aprender a controlar suas emoç õ es. Essas explosõ es de gê nio sã o a maior prova de sua total imaturidade.

— Sinto muito se nã o posso satisfazer o seu ego, comportando-me como uma submissa señ orita, que abaixa a cabeç a quando o dono fala. Nã o tenho nenhuma das qualidades que admira. Sei muito bem disso e nã o me importo a mí nima.

Ele apertou com mais forç a os ombros dela, deixando marcas ver­melhas na pele muito clara.

— Quanta criancice! Sabe o que acho? Que está querendo exata­mente o contrá rio. Quer que eu diga que admiro o seu cabelo, seus olhos, seu... corpo. — Com um sorrisinho malicioso, olhou para o decote do vestido. — Ficou ofendida porque nunca a convidei para passeios ao luar, nem tentei beijá -la?

Um beijo de Rafael de Domerique! Seria o inferno. . . e també m o cé u, pareceu murmurar em seu ouvido uma vozinha zombeteira. Um beijo dele seria capaz de atormentá -la pelo resto da vida, se tives­se que viver com outro homem.

— Entã o, Srta. Carrol, nã o tem nada a dizer? Seria a primeira vez.

Pensava que eu era feito de pedra? Que nã o tinha desejos como os outros homens?

Estava tã o perto dela, que podia sentir seu há lito. Viu os lá bios dele tremerem, o que mostrava sua vulnerabilidade mais do que qualquer palavra. O poderoso e controlado senhor de Luenda perdera a má s­cara. Era um ser humano de sangue quente e passional, que sabia o que o luar faz com os amantes.

— Eu. . . eu nã o acho que seja feito de pedra. Salvou minha vida em Ordaz. Um homem sem coraç ã o nã o teria feito isso. Alé m do mais, nã o é segredo que o senhor e. . . — Parou, porque estava inva­dindo territó rio proibido.

— O que estava dizendo? — Como ela continuasse calada, ele completou a frase interrompida: — Nã o é segredo que estou pensando em me casar, nã o é isso?

Fez que sim.

— E a idé ia de um casamento planejado perturba você? Como toda româ ntica, acha que o amor deve, simplesmente, acontecer?

— Para mim, sim, mas nã o para o senhor. — Havia uma inespe­rada ternura nos olhos dele, que a desconcertava e amedrontava. — O amor espontâ neo nã o combina com o velho costume de escolher esposas e maridos " convenientes".

— Você olha para mim e vê apenas o senhor de uma ilha do Ca­ribe, quando, na verdade, sou um homem como todos os outros e posso també m me queimar no fogo do amor. E uma queimadura sem­pre provoca sofrimento.

— Nã o acredito que, algum dia, sofra por amor — Vanessa disse, com seguranç a. Nã o tinha a menor dú vida de que Lú cia Montez estava apaixonada e tudo indicava que o amor chegara para ele tam­bé m. A elegante señ ora era viú va e, como Bá rbara dissera, don Rafael nunca escolheria para esposa uma mulher que já havia pertencido a outro. A menos... a menos que estivesse apaixonado de verdade. O amor nã o respeita as crenç as e a vontade de ningué m.

Os nervos de Vanessa estavam em frangalhos. Tudo o que queria era se libertar daquelas mã os de aç o. Como se lesse seu pensamento, ele a soltou. Voltou à leitura do jornal e tocou um sininho de prata para chamar um criado.

— Bá rbara está demorando a descer — ela disse, mais para que­brar o pesado silê ncio. Até os pá ssaros tinham parado de cantar. Olhando para o cé u, percebeu por quê: estava carregado de nuvens cinzentas, ameaç ando chuva.

— Oh, esqueci de avisar. — Don Rafael afastou rapidamente os olhos do jornal. — Bá rbara sentiu-se mal, ontem à noite. Alguma coisa que comeu, acho. Concepció n cuidou dela e agora está dormin­do. Costuma ter esses probleminhas de fí gado, mas sempre passam, depois de algumas horas de sono. De modo que nã o precisa fazer essa cara ansiosa, Srta. Carrol.

Nã o era ansiedade, era remorso. Na noite anterior, quando Bá rbara interrompeu o jogo de cartas com ela e Ruy Alvadaas, dizendo que nã o se sentia bem, pensou que era só um pretexto para escapar do salã o e do olhar vigilante do padrinho. Imaginou que tinha combi­nado se encontrar com Ruy em algum de seus esconderijos, no imenso castelo.

— Oh, sinto muito — disse, dirigindo-se para a arcada coberta de cravos.

— Srta. Carrol?

— Sim, señ or?

— Nã o sou cego, sabe?

— Acho... acho que nã o entendi.

— Parece que há uma epidemia de febre de amor nesta ilha. Bá rbara també m acredita que encontrou o homem da vida dela, nã o é? Nada menos do que o meu querido primo.

Vanessa estremeceu. Ele sabia sobre Bá rbara e Ruy!

— Pensei que o eleito fosse um dos muchachos locais, mas você ficava tã o preocupada em nã o deixar minha afilhada sozinha, quando Ruy estava por perto, que nã o foi difí cil descobrir a verdade.

Señ or, eu nã o sei... o que dizer. — Nã o adiantava negar. — Só posso garantir que a coisa toda nã o passa de um flerte. Ele nã o está pretendendo mais do que isso.

— Mesmo assim, vou dar um jeito de mandá -lo de volta para a Espanha. Nã o conte nada à garota.

— Claro que nã o.

A criada chegou para tirar a mesa. Don Rafael pegou Vanessa pelo braç o e voltaram juntos para o castelo. Ao entrarem no hall, disse:

— Bá rbara está dormindo e você tem a manhã livre. Pode passar uma hora ou duas na suí te de minha avó? Ela parece gostar muito da sua companhia e estava me dizendo, ontem à noite, que ainda nã o teve uma boa chance de conversar com você.

Vanessa sempre tinha achado a imponente dona Manuela um pouquinho amedrontadora. Olhou para don Rafael, em dú vida. Ele riu.

— Aquela imponê ncia toda é só pose. No fundo, madrecita é muito humana e adora conversar sobre futilidades, como toda mulher velha que nã o tem o que fazer. Conte a ela sobre os vestidos novos que comprou.

Embora soubesse que ele só queria ajudar, aquela sugestã o fez com que lembrasse o ó dio que sentira por ele, menos de meia hora atrá s, ao descobrir o vestido de seda e renda no guarda-roupa.

Sua expressã o se alterou e os olhos atentos de don Rafael perce­beram a mudanç a. E o motivo.

— Será que nada que faç o agrada você? Quer que acredite que realmente prefere roupas que nã o combinam com você, como esse vestido que está usando? — Deu uma gargalhada. — Será que é esse cabelo claro, quase da cor do fogo, o responsá vel por seu gê nio infernal?

— Minha mã e era irlandesa, señ or. Talvez isso explique o cabe­lo. . . e o mau gê nio.

— E també m a maneira de falar, um pouco cantada. Crianç as costumam imitar essas coisas. Sua mã e morreu quando ainda era uma adolescente, nã o?

— Meus pais iam a uma festa de Natal na minha escola. Tinha nevado muito na vé spera e o carro derrapou numa ponte. Os dois morreram instantaneamente.

— Pobrezinha! Deve ter sido um choque terrí vel. E, desde que seu tio també m morreu, você ergueu uma barreira contra o amor... e nã o estou falando da emoç ã o que diz sentir pelo jovem Conroy.

Era incrí vel aquela insistê ncia em falar de amor. Os homens latinos achavam que o amor era tudo na vida de uma mulher? Vanessa qua­se perguntou, mas don Rafael nã o lhe deu tempo. Segurando-a pelo braç o, agora com muita delicadeza, guiou-a até a ala onde ficavam os aposentos de dona Manuela.

Era a primeira vez que entrava ali. Portas duplas davam para um pequeno vestí bulo, que mais parecia um jardim tropical e tinha até um tanque de má rmore com peixinhos dourados e um chafariz em forma de um menino e um delfim.

Uma mulher toda de preto surgiu de trá s de um cortinado de bre­cado. Era Luiza, governanta da velha señ ora. Levou-os até o suntuoso salã o, mobiliado no mais puro estilo espanhol. Nas paredes forradas de mogno, toda a longa linhagem dos Domerique estava retratada: homens e mulheres de porte aristocrá tico e fogo nos olhos negros.

Num braseiro de bronze queimava um incenso aromá tico. Vanessa respirou fundo, nervosa, e nesse momento seu olhar encontrou o da velha. Estava sentada no fundo da sala, numa poltrona forrada de tapeç aria, com os pé s apoiados numa banqueta. Era a imagem da dignidade. Uma mantilha de renda negra, presa por um pente espa­nhol, cobria o cabelo todo branco; usava um xale rendado, um vestido de seda preto, um grosso cordã o de ouro, ané is de rubis e brincos pingentes de enormes diamantes.

Don Rafael beijou as mã os magras e muito brancas da velha. A semelhanç a entre os dois era grande: ela també m tinha um queixo arrogante e uma boca obstinada. Vanessa sabia que os membros mais velhos de uma famí lia espanhola eram tratados com todo o respeito e consultados em todas as decisõ es familiares, mais por uma questã o de cavalheirismo e tradiç ã o do que por necessidade ou afeiç ã o. Mas bastava olhar para dona Manuela e don Rafael, para perceber que entre eles havia carinho e amor de verdade.

Bienvenida, señ orita Carrol. — Inclinou a cabeç a, num movi­mento gracioso. — Por favor, sente-se. Na minha frente, sim? — Depois virou-se para o neto, divertida. — Parece que amedronto a jovem inglesa, hijo mio. — Pegou os ó culos de ouro, presos no cordã o, e examinou Vanessa atentamente. — Amedronto você, crianç a?

Vanessa mexeu-se na cadeira, inquieta, sem conseguir pensar numa resposta. Mas a velha já falava de novo com o neto:

La muchacha es bella. Nã o acha, Rafael?

— As inglesas geralmente sã o muito bonitas, madrecita. Nã o era isso o que preocupava tanto você, quando visitei o paí s da Srta. Carrol, há alguns anos? Nã o vivia repetindo que eu nã o devia me esquecer nunca que era um espanhol?

— Sim, eu me lembro. Uma preocupaç ã o inú til, aliá s. O casamento é uma coisa muito sé ria, e tinha medo de que se encantasse por algum rostinho bonito. Mas agora já está com trinta e cinco anos, idade mais do que suficiente para começ ar a pensar em me dar um bisneto.

— Como toda mulher, madrecita, você quer que tudo seja feito da sua maneira.

— Ficou solteiro tempo demais. Nã o vou poder embalar um bebê dentro do caixã o.

També m é difí cil imaginar a elegante Lú cia Montez embalando um bebê, pensou Vanessa.

— Está na hora de escolher uma noiva, Rafael — a velha insistiu.

— Está bem, abuelita. Prometo cumprir o meu dever e nã o deixar o nome dos Domerique sem um herdeiro. — Riu. — Claro que sempre há a possibilidade de só ter filhas.

Dió s mio, nem pense nisso! — Brincou com os ané is, pensativa. — Nã o. Terá um filho. Todos os Domerique tiveram filhos homens. Mas se apresse, Rafael.

— Fala como se fosse uma velha doente. Ainda tem muitos anos pela frente para criar uma porç ã o de bisnetos. — Olhou para o reló gio. — E agora, tenho que cuidar dos negó cios.

— Quando tiver uma esposa, talvez pare de se preocupar tanto com as plantaç õ es e todo o resto. Fui informada de que passa a hora da siesta trancado no escritó rio, ditando cartas para Carlitos. É ver­dade?

— Tenho energia demais para perder tempo dormindo.

— Tem agora. — De repente, toda a provocaç ã o e a feminilidade das mulheres espanholas surgiram no sorriso que dona Manuela deu para o neto. — A histó ria seria bem diferente, se usasse sua energia para fazer outra coisa na cama.

— É uma velhinha muito maliciosa — disse, beijando-a no rosto. — Nã o tente meter nenhuma das suas idé ias avanç adas na cabeç a da Srta. Carrol. Ela já tem o bastante, nã o precisa de mais.

— Suma daqui, guapo! E fique sabendo que, se eu quiser contar à señ orita como domesticar esse bicho complicado que é o homem, vou contar, sim, senhor.

— Entã o, é uma pena que eu nã o possa ficar para ouvir. — Sor­riu para Vanessa. — Vai aprender segredos fascinantes, Srta. Carrol, porque, na sua é poca, essa minha avó foi uma das mulheres mais lindas e admiradas da Espanha.

Depois que ele saiu, dona Manuela tocou um sininho de prata, cha­mando Luiza. Pediu chá e bolo. Enquanto esperavam, fez vá rias per­guntas sobre a Inglaterra e, com muito tato, levou Vanessa a falar sobre seu tio e a fazenda.

— Nã o devemos guardar essas coisas, faz bem desabafar. A vida nos dá algumas alegrias e muita dor, mas tudo isso enriquece a nossa vida... ou, pelo menos, deveria enriquecer. Passou anos felizes com seu tio, hã o é?

— Maravilhosos. Tio Len era um grande homem. Tive sorte de conhecê -lo e poder viver com ele, apesar de ter sido por tã o pouco tempo.

— Meu neto tinha um grande respeito e carinho por ele. Ah, aí está o nosso chá. É um há bito de seu paí s que aprecio muito. Mas Rafael nunca me dá o prazer de tomarmos chá juntos, quando vem jogar xadrez. Prefere café ou vinho.

Vanessa sorriu. Só entã o reparou no tabuleiro de marfim ao lado da mesa: o jogo fora interrompido com as pretas quase em xeque. Quem estaria perdendo?

— Eu jogo com as brancas — comentou dona Manuela, seguindo o olhar de Vanessa. — Rafael é bom jogador, mas desta vez está perdido. Tem uma paciê ncia inesperada num homem tã o cheio de energia. — Entã o, como se um assunto puxasse o outro, disse: — Sou­be que ele andou brigando com Barbarita. A garota é muito rebelde. Tem lhe dado muito trabalho, Srta. Carrol?

— Oh, nã o. Gosto muito dela.

Vanessa aceitou uma das xí caras de porcelana chinesa e notou que dona Manuela sorria, satisfeita, quando colocou apenas limã o no chá: era uma infusã o de sabor muito delicado para ser bebida com creme ou aç ú car. Seus olhos se encontraram e trocaram um sorriso caloroso, de compreensã o e amizade.

— Deví amos ter tido esse encontro há muito tempo — disse a velha. — Duas mulheres, um bule de chá e um homem sobre o qual falar sã o uma daquelas pequenas alegrias de que falei há pouco.

Concorda?

— Oh, sim, señ ora.

Um homem sobre o qual falar! Sem dú vida, o autoritá rio homem moreno que saí ra dali, há dez minutos.

 

 



  

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