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—Eu já lhe disse. Sim! 1 страница
Sexta-feira, 13! Aquele nã o poderia ser um dia de sorte para Jú lia. Ao voltar para sua casa com o marido Ross, aconteceu o terrí vel acidente, que apagou de sua mente qualquer lembranç a do passado. Jú lia perdera completamente a memó ria, mergulhando num abismo tã o profundo, que todas as lembranç as fugiram e o passado se apagou. Depois de algum tempo no hospital, Jú lia acorda para uma outra vida e descobre que a sua existê ncia estava dividida em duas etapas: um passado transformado em cinzas e um futuro incerto, duvidoso e nebuloso nos braç os daquele homem arrogante que se dizia seu marido! E Jú lia nã o podia acreditar que, no passado, tivesse se apaixonado por aquele homem sem alma. Ou seria tudo aquilo uma mentira para envolvê -la numa trama cruel, onde ela nã o passava de um brinquedo?
As duas faces da felicidade “Remember this stranger” Kay Thorpe
CAPITULO I
A mancha de luz tremeluziu durante alguns momentos, voltou a esmaecer, em seguida começ ou a definir seus contornos e finalmente materializou-se em um rosto emoldurado por um gorro branco. Um rosto encorajador, bom, sorridente. — É isso mesmo — repetiu a voz, dessa vez mais pró xima. — Você vai ficar boa. Boa de verdade! A voz e o rosto nã o combinavam. Jú lia fechou os olhos por alguns segundos, abriu-os novamente e focalizou-os no homem de avental branco, de pé ao lado da cama. Era baixo e magro, e seu cabelo grisalho e fino apresentava-se cuidadosamente penteado. Seus dedos seguravam o pulso dela, e os olhos estavam presos no reló gio. Sacudiu a cabeç a, olhou para ela e sorriu com ar de satisfaç ã o. — Você nos deixou preocupados por algumas horas, minha jovem, mas parece que agora já está bem melhor. Você vai ficar boa em um abrir e fechar de olhos. Como está se sentindo? — Esquisita — falou em um murmú rio. — Acho que eu nã o... — A voz sumiu, e a fronte contraiu-se ligeiramente. — On... onde é que estou? — No Hospital Otterbidge — ele respondeu prontamente. — Você foi trazida para cá depois do desastre. — O... desastre? — Você nã o se lembra? Bem, isso é comum nesses casos. Você recebeu uma pancada na cabeç a. — Minha cabeç a? — A mã o levantou-se devagarinho e tocou a atadura na tê mpora, em seguida voltou a apoiar-se sobre a colcha. — Está doendo um pouquinho. — Falava hesitante e aquela mancha branca como algodã o em sua mente recusava-se a desvanecer-se. — Há quanto tempo estou aqui? — Há quase sete horas — ele disse. — Agora chega de conversa, já falamos bastante, sra. Mannering. Mais tarde haverá tempo de sobra, depois que a senhora tiver descansado. Seu... Ela ouvia confusamente. Sra. Mannering? Quem era sra. Mannering? Devia haver algum engano. O nevoeiro começ ava a dissipar-se, apesar de ela nã o conseguir recordar nenhum detalhe do acidente. — Meu nome é Gardner — disse, tornando-se cada vez mais consciente da rigidez maxilar — Jú lia Gardner. E sou senhorita, nã o senhora. O mé dico e a enfermeira trocaram um olhar furtivo antes de assumirem uma postura profissional. Foram rá pidos, mas nã o suficientemente para disfarç ar seu embaraç o. Para Jú lia, mesmo naquele estado de semiconfusã o, o que acontecera era bastante ó bvio. Acontecera um desastre envolvendo vá rias pessoas e as identidades tinham se misturado. A culpa era dela, claro. Quantas vezes seu pai lhe havia recomendado levar alguma prova de identidade toda vez que saí sse? Seu pai. Lentamente, mas com seguranç a, sua mente começ ava a funcionar novamente. Seu pai tinha morrido havia quase dois anos, em consequê ncia de ataque cardí aco, alguns dias depois que ela fizera o vigé simo segundo aniversá rio. Eram somente os dois, desde que ela completara doze anos. Mesmo dois anos nã o eram suficientes para amortecer a dor daquela recordaç ã o que voltava. — Nã o se deixe abater — disse o mé dico, enquanto as emoç õ es perpassavam em seu rosto. — Depois de passar tantas horas em estado de inconsciê ncia é de esperar que vá levar algum tempo até recuperar seu pleno controle. Relaxe, e tudo voltará ao devido lugar. — Fez um sinal à enfermeira. — Vou dar um remé dio para fazê -la dormir. Quando acordar novamente vai estar se sentindo muito melhor. Jú lia torceu para que isso desse certo. Naquele momento se sentia um bocado tonta. — Meu rosto está dolorido — disse lentamente. — Estou... Ficarei com cicatrizes? O sorriso dele foi tranquilizador. — Nã o —respondeu com firmeza. —A dor vem da batida. Traga um espelho, enfermeira. Vamos resolver esse assunto já, já. O espelho foi trazido e ela pô de contemplar-se nele. O rosto alirefletido era pá lido e dele ressaltava uma á rea escura que se estendia da orelha e seguia ao longo do maxilar inferior, no lado esquerdo. Havia um arranhã o superficial no queixo, e uma atadura muito branca cobria-lhe a fronte, acima da qual elevava-se um tufo de cabelo claro. O resto lhe era bastante familiar: olhos azuis, nariz pequeno e reto, a boca naquele exato momento parecia um tanto trê mula, e o queixo se mantinha firme. Aliviada, sobretudo ao constatar que as palavras de conforto do mé dico nã o eram vã s, bebeu obedientemente a poç ã o que a enfermeira havia preparado e deixou-se afundar novamente nos travesseiros. Havia uma dezena de perguntas que ela queria fazer, mas naquele momento isso lhe pareceu um esforç o excessivo. Como dissera o mé dico, mais tarde haveria tempo de sobra. Deixou-se ficar muito quieta e mergulhou no sono. A luz do sol que se punha invadia o quarto quando ela voltou a acordar, e ocorreu um outro breve momento de tomada de consciê ncia. Tinha aberto os olhos havia alguns segundos até que se deu conta da presenç a de mais algué m. Virando cautelosamente a cabeç a, viu um homem de pé diante da janela. Dessa vez nã o era o mé dico. Ele usava terno cinza, e seus cabelos abundantes refle-tiam um tom castanho quando a luz do sol neles incidia. No momento em que o olhou, ele moveu a cabeç a, e em seu rosto surgiu uma expressã o estranhamente atenta. — Alô, Jú lia — ele disse calmamente. Insegura, ela o fitou. Tanto quanto se lembrava, jamais o tinha visto antes, e no entanto ele se dirigira a ela em termos de familiaridade, que deixavam pouca dú vida de que a conhecia. Nã o era um homem bonito, pensou, o rosto era forte demais para isso. També m nã o era nem um pouco terno, a julgar pela expressã o da boca. Denotava uma firmeza e uma determinaç ã o que chegavam quase à falta de compaixã o. Um ligeiro tremor apossou-se dela. — Desculpe-me — disse com hesitaç ã o. — Nã o consigo me lembrar... Eu o conheç o? Os olhos cinzentos se estreitaram, e por um longo momento ele permaneceu contemplando-a, — Você nã o consegue se lembrar de nada? — perguntou ele finalmente. — Em relaç ã o ao desastre, nã o, se é a isso que você se refere. Você també m foi atingido? — Pode-se dizer que sim. — Ele dizia isso de um modo estranho. — Ah, entã o você talvez possa me contar o que aconteceu. Ainda nã o tive muitas oportunidades de perguntar a algué m daqui. Seguiu-se uma outra pausa bastante longa antes que ele dissesse: — Você caiu do carro. Por sorte eu ia devagar, caso contrá rio você com toda certeza teria morrido. — Ele a olhava detidamente. — O carro é novo. Você provavelmente pretendia abrir a janela e mexeu na maç aneta errada. Isso já aconteceu antes. A perplexidade apoderou-se dela. — Eu estava no carro com você? — Sim. — Ao que tudo indicava, ele estava procurando as palavras exatas, apesar de nã o lhe parecer um homem que se perturbasse com muita frequê ncia. — Tí nhamos saí do de uma festa e í amos para casa. Era tarde, e você estava cansada. Eu estava... — Eu... nã o compreendo. — Levantou a mã o trê mula e passou-a pelos lá bios que tinham ressecado subitamente. Percebeu um brilho dourado e permaneceu imó vel, sem acreditar no que via. No seu terceiro dedo havia um anel, uma alianç a larga de ouro na qual estavam cinzelados pequenos lí rios. Ela a contemplou, com os olhos muito arregalados, — Eu a coloquei no seu dedo há trê s meses. — Havia um ligeiro tremor em sua voz. — Sou Ross Mannering, Jú lia. Seu marido. — Nã o! — A exclamaç ã o era apenas um murmú rio. — Nã o, ná o pode ser. Eu nã o tenho marido. — Seus olhos dirigiram-se do anel a seu rosto, revelando o pâ nico que ia por dentro dela. — Meu nome é Jú lia Gardner. Eu nunca o vi antes! — Gardner era seu nome de solteira — ele disse. — Nó s nos casamos em Caxton Hall, passamos a lua-de-mel na Á ustria e de lá viemos para Hampshire. Você nã o se recorda de como estava entusiasmada com a casa? Trê s chalé s encostados um ao outro, no meio de uma vastidã o sem fim. Você disse que ela lhe recordava aquela casinha de chocolate, na histó ria de Joã ozinho e Maria, dava até vontade de comer. Você até mesmo... — Pare com isso! — Comprimia os lá bios com os dedos e cerrava os olhos. — Nã o é verdade! Nã o pode ser verdade! Meu nome é Gardner. Nunca estive na Á ustria. O que é que você está tentando fazer? — Acalme-se. — Ele estava na cabeceira, tentando alcanç ar suas mã os e fechando-as nas dele — Acalme-se. — Sentou-se na beirada da cama. — Olhe para mim, Jú lia. Abra os olhos e olhe para mim! Foi o que ela fez, lutando contra o desejo de retirar suas mã os das dele e gritar-lhe para que se afastasse dela. Seria possí vel que estivesse sonhando com tudo isso?, pô s-se a imaginar, perturbada. Aquilo tudo nã o podia ser real. Simplesmente nã o podia! Mas ao mesmo tempo que pensava naquilo sabia que nã o era um sonho. Ele nã o era do mesmo estofo de que sã o feitos os sonhos. Ele, portanto, estava mentindo. Ela nã o conseguia imaginar quais as razõ es para tal, mas ele tinha de estar mentindo. Que mulher poderia esquecer seu pró prio esposo, seu pró prio casamento? — Que dia é hoje? — perguntou ele, e o cenho dela franziu-se, novamente tomada pela confusã o. Data? Que importâ ncia poderia ter uma data naquela situaç ã o maluca? Ela tentou pensar, O desastre devia ter acontecido na vé spera, quando ela se dirigia do escritó rio para casa, e era uma sexta-feira... sim, dia treze, sexta-feira. Com toda certeza nã o era difí cil lembrar-se desse detalhe. — Hoje é dia catorze — disse ela, e notou uma expressã o estranha nos olhos dele. — Sá bado, dia catorze de junho. Ele a contemplou detidamente, por um longo momento, e quando voltou a falar sua voz era um tanto diferente. — Catorze de junho foi o dia seguinte ao nosso primeiro encontro — disse. — Ambos concordamos com o fato de que nã o sermos supersticiosos é uma boa coisa. — Dessa vez a pausa foi breve. — Hoje é vinte e seis de setembro. Nos segundos que se seguiram a batida de seu coraç ã o parecia encher o quarto. Disse com a voz embargada: — Nã o acredito. — Você tem de acreditar. Olhe... — Largou uma das mã os e, na cadeira ao lado da cama, pegou um jornal dobrado em dois e abriu-o, mostrando a primeira pá gina. — Aqui está, com todas as letras e nú meros. Lá estava, de fato, e nã o havia como escapar disso. Tonta, tentou encarar o que aquilo significava. Em algum lugar e de algum modo ela havia perdido trê s meses inteiros de sua vida. Trê s meses, durante os quais ela tinha conhecido e desposado o homem que naquele momento a encarava. Trê s meses, durante os quais tinham vivido juntos, como marido e mulher. Perturbada, olhou para aquela mã o que ainda segurava a sua, para aqueles dedos alongados, dos quais emanavam forç a e agilidade. Marido e mulher. Ele nã o fez a menor tentativa para detê -la enquanto retirava a mã o e a escondia por debaixo da coberta. Nã o houve mudanç a alguma em sua expressã o, alé m de uma ligeira contraç ã o do mú sculo do maxilar. — Desculpe-me — disse ela, em tom de desespero. — Nã o posso... Nã o é fá cil compreender. — Fez um esforç o sobre-humano para controlar o tremor das pernas e pô r alguma ordem em sua mente perturbada. — Você disse que nos casamos há mais de trê s meses. Mas se nos conhecemos apenas no dia treze de junho... — Foi o que se pode chamar de amor à primeira vista. — Tirou do bolso uma cigarreira de aç o inoxidá vel, abriu-a, fez uma pausa e fechou-a novamente, sem tirar nenhum cigarro. — Eu estava na cidade a negó cios e fui até a firma em que você trabalhava. Havia uma festa no escritó rio, em homenagem a uma das garotas que se despedia para se casar. Convidei você para jantar fora naquela noite. Casamo-nos seis dias depois. O resto já lhe contei. Fizera-o, com efeito, e no entanto nã o lhe ocorria a menor lembranç a do que se passara. A sexta-feira tinha sido um dia rotineiro de trabalho na agê ncia de seguros, onde desempenhava a funç ã o de secretá ria. De fato, nã o sabia precisar a hora exata em que tinha deixado o escritó rio, mas isso podia ser devido à pancada na cabeç a. Ela a moveu confusamente no travesseiro. A noite passada, ou o que lhe parecia ser a noite passada, ficara trê s meses atrá s. Ela devia se forç ar a entender isso. E começ ar de novo. Uma festa no escritó rio para uma das garotas que se despedia a fim de se casar, ele tinha dito. Isso nã o significava absolutamente nada. Duas das datiló grafas eram noivas, mas tanto quanto ela sabia nã o havia nenhuma conversa relativa a casamento em um futuro pró ximo, apesar de que ambas estavam economizando loucamente para poder alugar uma casa. Estavam mesmo? Concentre-se, ela disse a si mesma desesperadamente, concentre-se! Quando a porta se abriu foi um alí vio. Ver novamente o mé dico era quase como ver um velho amigo. Ela o conhecia. Sabia quem ele era, ou pelo menos o que ele era. Viu seus olhos dirigirem-se de seu rosto para o de seu companheiro, sentiu a mensagem nã oenunciada que passava entre os dois homens. Entã o ele aproximou-se e tomou-lhe o pulso. Seus modos eram ené rgicos e inspiravam confianç a. — Nã o deve deixar que isso a preocupe, sra. Mannering. A amné sia temporá ria apó s uma pancada na cabeç a é bastante comum. Algumas vezes é apenas uma questã o de horas, e sabe-se de casos que levam dois dias. — Existe gente que nunca se recupera? — ela indagou em tom neutro, e o mé dico hesitou. — Talvez, mas é muito raro. Está com fome? — Nã o — ela respondeu com sinceridade. — Pois vai estar, assim que sentir o cheiro do supremo de galinha. Foi preparado especialmente para a senhora. Dentro de alguns dias sairá daqui novinha em folha, pode crer. — Olhou para o homem. — Acho que seria uma boa idé ia se sua senhora repousasse um pouco, sr. Mannering. Se o senhor puder voltar novamente amanhã de manhã. — Claro. — Pegou a capa de chuva no encosto da cadeira e voltou até a cama. Seu sorriso denotava um certo cansaç o. — Tudo vai dar certo — disse. — Nã o se preocupe. Boa noite, Jú lia. Ela ficou tensa no momento em que ele se debruç ou sobre ela, poré m ele apenas pousou os lá bios em seu rosto e endireitou-se novamente. O mé dico acompanhou-o até o corredor, mas nã o fechou completamente a porta do quarto. Podia ouvir o murmú rio das vozes e conseguia distinguir a do homem que se dissera seu marido, devido ao tom grave. Nã o conseguia ouvir o que estava sendo dito, mas isso també m era fá cil adivinhar. Ficou lá, olhando desamparada para as paredes de um branco imaculado até que o mé dico voltou ao quarto. — A coisa importante — disse ele com firmeza — é nã o se preocupar. A mente costuma agir desse modo estranho. Frequentemente ela se recusa a liberar uma lembranç a, e as coisas só acontecem a partir do momento em que ela deixa de ser pressionada. — Mas nã o se trata apenas de uma lembranç a — ela disse. Trata-se de uma sé rie de acontecimentos. Como é que eu consigo me recordar do dia em que ele disse que nos conhecemos e no entanto nã o me lembro dele? Nã o faz o menor sentido! Ele balanç ou a cabeç a. — E uma pergunta que nã o posso responder, porque nã o conheç o 141 As Duas Faces da Felicidade a resposta, nã o completamente. Tudo que sabemos é que no momento sua mente se recusa a admitir certas lembranç as que se ligam umas à s outras. — Fez uma pausa, sorriu e disse com decisã o; — Precisamos dar tempo. Quero que a senhora tente comer um pouco quando a enfermeira lhe trouxer a refeiç ã o. Em seguida ela lhe dará um sedativo e a senhora irá dormir. — Voltou a cabeç a de leve para distinguir os sons que vinham do corredor. — Ela vem vindo, a menos que eu me engane. Prometa que vai tentar relaxar. — Sim. — Havia pouca coisa mais que ela pudesse dizer, e nada que pudesse fazer enquanto permanecesse naquele leito de hospital. — Quando é que vou poder me levantar? — Nã o vamos pô r os carros diante dos bois. Vamos ver como a senhora se sente amanhã de manhã. Eu virei logo cedo vê -la, sra. Mannering. Sra. Mannering. Sra. Ross Mannering. Era melhor que ela começ asse a se acostumar, porque era assim que ela se chamava. Mas ela nã o queria ser quem ela era, pensou incoerentemente. Nã o queria ser uma mulher casada com um homem tã o completa e totalmente estranho. A noite foi agitada, e a manhã desagradá vel, pois seu estado nã o havia melhorado. Jú lia acordou à s sete e passou umas duas horas imaginando o que ia fazer. As enfermeiras eram a pró pria bondade, mas havia muito pouco que elas pudessem fazer para ajudá -la em seu problema bá sico. Dependia de si mesma. Quando o dr. Stewart chegou, lá pelas nove horas, ela conseguira adquirir uma boa dose de controle sobre suas emoç õ es. Ficar nervosa nã o adiantaria nada. Esboç ou um sorriso em resposta à sua saudaç ã o, e ele balanç ou a cabeç a em sinal de aprovaç ã o. — Assim é que se reage! De nada adianta deixar que as coisas a deprimam. Vamos dar uma olhada em sua cabeç a antes de irmos mais adiante. A atadura saiu com facilidade, e com ela o curativo que cobria a á rea da pancada na tê mpora. Ele apalpou a á rea com todo cuidado, mostrou-se satisfeito ao constatar que nã o havia nenhum ferimento sé rio e disse que retiraria o curativo. — A senhora vai ficar com uma ligeira cicatriz durante algumas semanas — acrescentou. — E logo será coberta pelo cabelo. Gostaria de sentar-se ao lado da janela por uma ou duas horas? — Gostaria muito — ela replicou, ansiosa por qualquer mudanç a AS Duas Faces da Felicidade que a fizesse sair daquela cama e lhe possibilitasse escapar do cí rculo de seus pensamentos confusos. Fez uma pausa e esforç ou-se para prosseguir. — Sabe a que horas o sr. Mannering virá? — Disse que à s dez, quando telefonou agora de manhã. — Sua voz era propositadamente desprovida de expressã o. — Tenho certeza de que ele vai ficar muito contente por vê -la de pé e com a aparê ncia tã o melhor. — Ele a contemplou e acrescentou suavemente: — També m para seu marido nã o deve estar sendo fá cil, sra. Mannering. Ele deve estar se sentindo como algué m diante de um muro intransponí vel. Mas nã o tã o intransponí vel quanto seu pró prio muro, pensou, — Tenho de vê -lo a só s? — perguntou desesperada. — O senhor nã o pode ficar comigo? — Sinto muito — respondeu. — Nã o seria sensato. Ele é seu marido. Há coisas a ser discutidas que dizem respeito unicamente a você s dois. — Havia solidariedade em seu olhar. — Acredite em mim, posso muito bem entender como a senhora se sente, mas é preciso tentar voltar a confiar nele. Talvez, ao conversarem, sua memó ria comece a voltar. — Sim. — Ela nã o acreditava nisso e tinha certeza de que ele també m nã o. Se a amné sia tivesse sido meramente temporá ria, ela teria voltado ao estado normal apó s uma noite de sono. Mas ele tinha razã o. Devia obrigar-se a pensar em Ross Mannering como seu marido. Devia! Assim que o mé dico saiu, a enfermeira ajudou-a a levantar-se da cama e a pô r um roupã o azul que combinava com a camisola azul-clara que usava. O tecido era caro, e o corte perfeito. Jú lia viu a etiqueta e se deu conta de que nã o poderia comprar um roupã o de alto preç o. A nã o ser por um certo tremor nas pernas e a dor no maxilar, sentiu-se razoavelmente bem. E ela precisava estar bem, pensou, olhando os ponteiros do reló gio de parede. Havia muitas coisas que ela tinha de saber. A vista da janela era muito pouco inspiradora. Um pequeno pá tio dois andares abaixo, um muro alto de pedra e alé m dele os tetos de uma cidade, no qual a torre de uma igreja era o ú nico ponto de interesse imediato. Otterbridge, era o nome que o dr. Stewart tinha dado ao lugar, e era em algum ponto de Hampshire. Ela tinha certeza unicamentedisto, e hesitou em pedir à enfermeira maiores detalhes. Com quanto menos gente ela tivesse de discutir sua situaç ã o, melhor. Ficando a só s por alguns minutos, foi até a mesinha ao lado da cama, sentindo-se quase culpada enquanto abria a gaveta e examinava o conteú do. Havia uma pequena bolsa de cosmé ticos, os quais ela reconheceu: um vaporizador com um perfume que com quase toda certeza era francê s, e inteiramente a seu gosto, poré m fora de suas possibilidades, como constatou, um lenç o, muito limpo e bem passado, com a inicial J em um dos cantos, e outra bolsa para objetos de toalete. Nada havia ali que a esclarecesse. Nada que evocasse a recordaç ã o daquelas semanas que haviam ficado para trá s. Era difí cil acreditar que aquela situaç ã o realmente existisse, mas no entanto ela tinha de obrigar-se a aceitá -la como um fato. O anel em seu dedo, as coisas que usava, o perfume francê s, tudo isso fazia parte daqueles trê s meses perdidos. Se ao menos pudesse se recordar de alguma coisa entre aquela sexta-feira de junho e o momento em que havia recobrado a consciê ncia naquele quarto vinte e quatro horas atrá s... Alguma coisa que fosse! Uma breve pancada na porta a fez estremecer. Fechou a gaveta rapidamente e tentou dominar o nervosismo que se apoderava dela enquanto Ross Mannering entrava no quarto. Ela notou a largura dos ombros sob o paletó que lhe caí a tã o bem, assim como a economia controlada dos movimentos que denotavam saú de e apuro perfeitos. Sua idade era indeterminada. Trinta e quatro? Trinta e cinco? Ela nã o sabia. — Como é que você se sente? — perguntou ele, junto aos pé s da cama. — Estou vendo que retiraram a atadura. — Sim. — Ela estava perdida, sem saber o que lhe dizer. O que poderia ser dito ao homem com quem tinha vivido e que no entanto falhara completamente em reconhecer? — O dr. Stewart disse que durante algum tempo ficará uma cicatriz, mas que o cabelo a cobrirá. — Seu olhar desviou-se do dele. — Obrigada pelas flores. Sã o lindas. — Fico contente porque você gosta delas. — Estudou-a durante alguns momentos. — Incomoda-se se eu sentar? Ela olhou rapidamente em torno do quarto. — Parece que nã o há nenhuma outra cadeira. — Eu me ajeito na beirada da cama. E o gesto o levou inevitavelmente para mais perto. Se ele a tocasse, ela pensou em pâ nico, gritaria. E no entanto ele tinha pleno direito de tocá -la, segurá -la em seus braç os, beijá -la, se quisesse. Ela lhe tinha concedido aquele direito. Era sua mulher. Talvez, se ela se pusesse a repetir isso para si mesma, a coisa tomasse um aspecto de realidade. — Nã o se preocupe — disse ele, e seus lá bios se contraí ram um pouco —, nã o vou me aproximar mais do que isto. Precisamos conversar, Jú lia. — Eu sei. — Ela esboç ou um pequeno gesto de desamparo e deixou as mã os caí rem sobre o colo. — Por onde começ amos? — Acho melhor eu lhe falar a meu respeito. — Fez urna pausa. — Sou um corretor e tenho escritó rio em Southampton. Nossa casa fica a uns trinta quiló metros daqui. — Ele parecia estar fazendo uma seleç ã o dos assuntos sobre os quais iria falar. — Conheç o seu antigo patrã o, Bill Grieves, já há algum tempo e habitualmente fazemos algum negó cio quando há oportunidade. Foi por isso que apareci no escritó rio naquela sexta-feira. Naquela sexta-feira. Jú lia desejou poder retornar à quele dia que, do modo como ele falava, parecia tã o distante. Nã o que isso lhe fizesse algum bem, a menos que ela conseguisse lembrar-se dos outros detalhes. — Aquela festa — ela disse lentamente. — Acho que você nã o se lembra do nome da garota que ia se casar. Ele franziu o cenho. — Agora você me pergunta, provavelmente eu o ouvi quando você s a brindavam, mas... — Balanç ou a cabeç a — É importante? — Acho que nã o. Só que eu nã o consigo me recordar de que houve uma festa de despedida de algué m naquela semana. — Estavam fazendo uma brincadeira a respeito de algué m chamado Ernie. Pelo que entendi, a garota, ou o noivo, havia ganho um pré mio na loteria. Isso ajuda? — Nã o — admitiu ela, desanimada. — Creio que nã o. Tanto quanto me lembro, nã o houve nada de extraordiná rio naquela semana. — Seus dedos seguraram com forç a a borda do lenç ol, e ela, fazendo um esforç o, perguntou: — Por que você casou comigo? Houve uma breve pausa antes que ele respondesse: — Você tem algo contra as razõ es habituais? — Nã o, mas... — Ela nã o conseguiu enfrentar seu olhar — você nã o age como se estivesse apaixonado por mim. — Nã o ajo? — Havia uma ligeira ponta de ironia no tom com que ele falava. Estranho, mas eu tinha a impressã o de que a ú ltima coisa que você queria era perceber qualquer traç o de emoç ã o da minha parte. Você fica gelada se eu me aproximo dois passos de você. Se pareç o desligado é porque estou fazendo o que me é possí vel para lidar com uma situaç ã o que qualquer homem acharia difí cil aceitar. — Desculpe-me. — Sua voz era insegura. — Eu també m estou fazendo o que posso. Nã o é fá cil. Ele esboç ou um pequeno gesto involuntá rio dirigido a ela, mas corrigiu-se ostensivamente. — Sei que nã o é — disse. — Prossiga e pergunte tudo o que você quiser. Tentarei lhe dar uma resposta honesta. — Está bem. — A pergunta que se seguiu era necessá ria, mas ela precisou de todo seu controle para formulá -la tã o abruptamente. — Nó s... nó s combiná vamos?
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