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— Eu já lhe disse. Sim! 5 страница



— Desculpe-me — disse David, enquanto se acomodavam. — Fomos andando até o porto e esquecemos da hora. Você já pediu?

— Ainda nã o. — Os olhos de Ross pousaram em Jú lia. — Você parece mais alegre. Obviamente a mudanç a de ares lhe fez bem. Vai tomar um drinque antes de comermos?

Ela começ ou a sacudir a cabeç a em sinal de negativa e mudou de idé ia bruscamente.

— Aceito um martí ni seco.

— Para mim, uí sque com á gua. — David sentou-se e olhou à sua volta. — O lugar nã o mudou muito. Espero que a comida seja tã o boa como costumava ser. Vejamos, a ú ltima vez que vim aqui foi em...

— Foi com Lou — atalhou seu irmã o calmamente, no momento em que ele fazia uma pausa. — Daquela vez que você a trouxe aqui para um fim de semana prolongado. Tem tido alguma notí cia dela ultimamente?

— Recebi um cartã o-postal de algum lugar da Itá lia por volta de fins de setembro. Desde entã o, nã o sei de mais nada. — As palavras soavam casuais, mas havia uma ponta de tensã o em sua voz. — Ela foi lá a negó cios.

— Com o marido?

— Nã o, sozinha. Pelo que pude depreender da ú ltima carta, o casamento nã o estava dando muito certo.

— Nã o? Que pena. Está pretendendo vê -la durante estas fé rias? Dois pares de olhos cinza idê nticos se encontraram e se chocaram.

— Pensei nisso. Qualquer pessoa pode cometer um engano.

— Claro. — Havia cinismo no sorriso de Ross. — E é sempre cô modo ter algué m de reserva, caso seja necessá rio.

— O que você está dizendo nã o é justo. Ela nem sequer sugeriu que nos encontrá ssemos.

— Nã o, ela precisa ser persuadida, nã o é mesmo? Nã o seja tolo, Dave. Você já estava fora da jogada quando ela o abandonou por aquele outro homem.

— Foi o que você disse naquela ocasiã o. — Os lá bios de David estavam tensos. — O problema é que você tomou uma implicâ ncia solene com todas as morenas depois do que aconteceu... Ele se de­teve, mudou de cor, olhou para Jú lia e disse pouco à vontade: — Estamos deixando sua mulher perturbada. Que tal falarmos disso mais tarde?

— Vamos deixar este assunto de lado e ponto final. Você tem razã o. Tem idade suficiente para cometer seus pró prios erros. — Ross pegou seu copo e o esvaziou, pousou-o novamente e olhou impacientemente em volta do restaurante. — Mas por onde é que anda esse garç om?

Quando finalmente serviram a comida, acharam-na excelente, poré m Jú lia nã o sentia fome. Ao voltarem para o carro, sugeriu que os dois se sentassem no banco da frente, e acomodou-se no banco de trá s, antes que algué m pudesse esboç ar o menor gesto. Sua cabeç a latejava com tamanha intensidade que ela até franzia as sobrancelhas. Apojou-a no encosto do banco e fingiu dormir, para nã o ter que se esforç ar em conversar.

— Desculpe-me por ter dito aquilo no restaurante — disse David em voz baixa, apó s alguns momentos. — Foi como se eu estivesse dando um golpe baixo.

— Fui eu quem provocou. — Ross mudou de marcha para subir a colina e acrescentou, sem mudar de tom: — Esqueç a.

Eles poderiam esquecer, Jú lia, poré m, nã o. Ross nã o gostara da noiva de seu irmã o, isso ficara bem claro. E por quê? Por que ela lhe recordava algué m a quem ele tinha conhecido outrora? Algué m a quem ele tinha amado e que o abandonara? Seus lá bios estavam frios. Ela queria realmente saber desse assunto?

O fim de semana prosseguiu atravessando diferentes fases. No domingo choveu o dia inteiro, confinando os trê s em casa, deixan­do-os entregues à s suas ocupaç õ es. Imediatamente apó s o almoç o, Ross desapareceu, trancando-se no pequeno quarto que dava para o hall e que ele usava como escritó rio pretextando o fato de que tinha de dar andamento a uma papelada relativa a seu compro­misso da vé spera. Estendida preguiç osamente diante da lenha que ardia, Jú lia conversou despreocupadamente com David por muito tempo, antes de abordar assuntos mais pessoais.

— Você acha que vai continuar no Oriente quando seu contrato expirar? — perguntou. — Ou se trata apenas de um passo na di-reç ã o correta?

Ele sorriu, com as mã os cruzadas por detrá s da cabeç a, em uma atitude de total relaxamento.

— Até agora sou uma peç a relativamente pequena em uma engrenagem muito grande. Eu aceitarei o que vier, quando chegar a hora, mas nã o estou formulando planos ambiciosos.

— Isso é uma maneira um tanto negativa de encarar as coisas.

— Possivelmente. Você pode qualificar isso como a minha ma­neira de me garantir contra decepç õ es. Nem planos nem decepç õ es.

— E isso — ela indagou cautelosamente — inclui Lou?

Sua atitude nã o se alterou, apesar de se passarem alguns mo­mentos antes que ele respondesse.

— Para falar a verdade, nã o tenho pensado muito a respeito. Ross me pegou de surpresa ontem à noite. Eu nem mesmo tenho certeza se ainda sinto alguma coisa por ela.

— Você lhe escreve.

— Ela é quem me escreve e eu respondo. Há uma diferenç a. Fomos muito í ntimos há um tempo atrá s, e ela obviamente neces­sita de algué m em quem possa confiar. — Fez uma pausa e acres­centou: — Ou você encara esse assunto do mesmo modo que Ross?

— Nã o estou julgando algué m que nem sequer conheç o. — Por alguma razã o sua garganta tinha ficado inconfortá velmente seca, e sentia a tê mpora latejar. — Será que fomos apresentadas?

— Você e Lou? — Ele a encarou. — É possí vel, suponho, mas pouco prová vel. Por quê?

— Nã o tenho... certeza. — Levou a mã o à fronte e pressionou-a, sorrindo para ele com inseguranç a. — É que o nome dela parece significar alguma coisa. E como aquilo que você sente quando acor­da e nã o consegue se lembrar com clareza de seu sonho, — Sacudiu a cabeç a. — Se tivé ssemos sido apresentadas, Ross teria falado a respeito. Até ontem nunca o ouvi mencionar seu nome, Ele... ele nã o gostava muito dela, pelo que percebi.

— Foi pelo modo como ela rompeu comigo. Achou que uma carta era a forma de resolver tudo. — Ele deu de ombros. — Nó s basi­camente nunca combinamos. Acho que sabia disso desde o começ o, só que nã o me sentia preparado para admiti-lo. Lou necessitava de um homem que estivesse à sua altura. Eu nã o consegui.

— Ela parece ser um tanto dura — disse Jú lia suavemente, e ele lhe dirigiu um sorriso contrafeito.

— É o que Ross disse, só que de maneira um pouco mais crua. Na verdade, acho que o que ele disse foi: " Ela passa por cima de qualquer coisa para conseguir o que quer". — David fez uma pausa, ao ouvir algo. — Nã o é um carro?

Era, de fato. Jú lia també m ouviu. Levantou-se e consultou o reló gio. Trê s e meia. Era com certeza a hora apropriada para uma visita de domingo à tarde, apesar de o tempo nã o estar muito en-corajador. Aquele senso familiar de pâ nico começ ou a apoderar-se dela.

— Nã o fique assim. — A voz de David exprimia solidariedade e compreensã o. — Afinai, sã o apenas gente.

Uma porta abriu-se no hall. Jú lia foi até onde Ross estava, pa­rado diante de um espelho, dando um laç o na gravata.

— Vem vindo um carro pela alameda — disse ela.

— Sã o Peggy e Mike Ashley, provavelmente, sã o os nossos ami­gos mais chegados. Nã o vã o ficar muito tempo.

— Sim, mas...

— Mas o quê? E preciso que você comece a ver as pessoas no­vamente, e quanto mais cedo, melhor. — Olhou para ela, e o tom de sua voz suavizou-se. — Está certo, é prová vel que nos primeiros momentos todo mundo se sinta pouco à vontade, mas acaba pas­sando. Você nã o pode fazer esse esforç o por mim, se nã o quiser fazê -lo por você?

Ela disse com a voz embargada:

— Você parece que nã o me deixou muita escolha, nã o é mesmo? — e notou que seu rosto voltava a ficar contrafeito.

— Nã o. Talvez essa seja a melhor maneira de agir com você. Ouviu-se a porta do carro que se fechava e o rumor de passos

que se aproximavam. Sem voltar a olhar para ela, Ross foi até a porta e abriu-a, deixando entrar duas figuras sorridentes abraç a­das sob uma capa de chuva.

— Esquecemos do guarda-chuva — disse Peggy, livrando-se da capa e revelando seus cabelos cor de fogo e um rosto literalmente coberto de sardas, mas muito atraente. — Está chovendo a câ nta­ros! — Seu olhar desviou-se de Ross e tornou-se um pouco mais formal. — Alô, Jú lia. Que prazer vê -la.

Jú lia engoliu em seco e desejou de todo coraç ã o encontrar algo familiar naquele casal que tinha sido seu amigo durante aqueles meses esquecidos. Mas nada surgiu,

— Alô — disse.

Ross tinha razã o, claro. Os primeiros minutos foram os piores. David ainda nã o conhecia os Ashley e, durante as apresentaç õ es e explicaç õ es, Jú lia conseguiu ficar de lado e lembrar-se do pouco que Ross tinha mencionado a respeito deles. Mike trabalhava no ramo de construç õ es, era um homem pesadã o, na casa dos trinta, e que parecia ficar mais à vontade em um time de rú gbi — impres­sã o que se confirmou quando ele começ ou a relatar entusiasmado o jogo do dia anterior. Peggy era talvez trê s ou quatro anos mais velha do que Jú lia e tinha uma butique em Southampton. Dela emanava vitalidade.

— Nã o vamos passar a tarde toda falando de jogo! — exclamou, levantando os olhos para o cé u, em atitude de enfado. — O que eu nã o daria por um marido que sossegasse as pernas aos sá bados! Você nã o faz idé ia... — disse, dirigindo-se a Ross — do que eu tenho de aguentar. Tive até mesmo de arranjar uma empregada para poder seguir o time onde quer que ele vá.

Ross estava sorrindo.

— Você poderia deixá -lo ir sozinho.

— Nem pensar! As tentaç õ es sã o muitas. Até que o cé u nos separe... foi o que eu disse, quando me casei com ele.

— E quanto a honrar e obedecer? — indagou seu marido sua­vemente, recebendo em troca uma exclamaç ã o de protesto.

— Nunca! Era só o que faltava. Companheirismo, foi o que dis­semos. Igualdade em todas as coisas!

— Só que alguns tê m mais igualdade do que outros. — Voltou-se para Ross. — Como estava dizendo, a bola estava em minhas mã os, e eu estava a apenas alguns passos do campo adversá rio quando aquela espé cie de macaco veio...

— Nã o tem remé dio — disse Peggy para Jú lia, resigna da mente.

— E Ross també m é culpado, ao encorajá -lo. Lembra-se daquele fim de semana em julho, quando todos nó s... — Ela interrompeu-se e disse pesarosa: — Desculpe-me. Sempre acabo dizendo o que nã o devo.

— Nã o tem importâ ncia — Jú lia apressou-se em tranquilizá -la.

— Diga o que você ia me contar. — Esforç ou-se por sorrir acolhe­doramente. — Aquele fim de semana, quando nó s?...

— Bem, fomos fazer um piquenique em Emery Downs e esses dois acabaram jogando uma partida de crí quete com um bando de meninos enquanto nó s duas ficamos de lado, olhando feito bobas. Ross era capaz de jogar com uma das mã os amarradas à s costas e ainda assim se saí a melhor do que Mike. — Seu olhar pousou sobre David, que se sentava ao lado de Jú lia, no divã. — Você també m joga?

— Nã o tã o bem quanto Ross, apesar de já ter tido meus mo­mentos de gló ria — retrucou ele. — Ouviu falar que o time da aldeia voltou a ganhar o campeonato local este ano?

— E tudo se deve ao capitã o do time. Ele, evidentemente, é uma pessoa completamente desperdiç ada. Podia ter seguido carreira se tivesse feito um pouco de esforç o quando era mais jovem.

— O que ele nã o fez, e nã o faria, se lhe fosse dada uma chance

— observou calmamente a pessoa alvo dos comentá rios. — Nã o passo de um jogador de fim de semana. — Sorriu, enquanto Peggy abria a boca. — Fale, se você tiver coragem!

Ela arregalou os olhos para ele inocentemente. — Eu ia apenas dizer que a modé stia lhe assenta bem. Por que você é tã o desconfiado?

Ao ouvi-los, Jú lia percebeu uma opressã o em seu peito. Esse era um Ross diferente do que ela tinha conhecido durante aquelas se­manas. Quando é que ele tinha olhado para ela com aquela afeiç ã o tolerante que obviamente demonstrava em relaç ã o a Peggy? Qual fora a ú ltima vez que parecera tã o relaxado como naquele momen­to? A consciê ncia desse fato a perturbou. Quando foi que ela lhe deu motivo para proceder de modo diferente?

Ela mordeu os lá bios com forç a, encarou-o, deparou com aqueles olhos cinza e firmes e sentiu-se enrubescer. Será que ele poderia adivinhar o que lhe passava pela mente? Seria essa a intenç ã o dele, despertar seu ciú me, envolvendo-se deliberada mente com aquela mulher tã o atraente? Jú lia levantou-se.

— Vou pô r a panela no fogo. Já sã o quase quatro horas, Peggy acompanhou-a até a cozinha e perguntou:

— Posso ajudá -la?

— Se quiser, — Jú lia esboç ou um sorriso. — Acho que você sabe onde as coisas estã o guardadas.

— Sei de quase tudo. — Houve um momento de indecisã o antes que Peggy dissesse francamente: — O tato nã o é o meu forte, por­tanto vou dizer as coisas como eu as sinto. Nó s sentimos muito o que aconteceu com você, Jú lia, e se há algo que possamos fazer para ajudá -la basta você dizer. Talvez você nã o se recorde, mas nó s fomos amigos — bons amigos — todos nó s. Nã o podemos co­meç ar novamente na mesma base?

Jú lia permaneceu olhando para ela durante um bom momento, com a chaleira na mã o.

— Sabe de uma coisa? — disse lentamente. — Você é a primeira pessoa que nã o tentou me convencer de que me recuperarei subi­tamente. Todo mundo parece estar disposto a insistir na tecla da doenç a temporá ria.

— Nã o vejo muito sentido em esperar por algo que pode ou nã o pode acontecer. A vida é curta demais. — Um amplo sorriso aflorou aos lá bios de Peggy. — Estou citando uma frase feita, como diria seu marido.

— Você parece que se dá muito bem com Ross. — Jú lia nã o tinha a intenç ã o de dizer isso, mas de certo modo a frase lhe es­capou, antes que ela pudesse se controlar.

— Eu me dou, sim. — O olhar de Peggy era firme, — Mas nã o interprete mal. Ross gosta de caç oar de mim, e nã o vai alé m disso. Mesmo que eu nã o estivesse apaixonada por meu homem, a des­peito de toda minha aparê ncia zombeteira, nã o teria a menor chan­ce com Ross enquanto você estiver por perto.

— Há muito tempo que você o conhece?

— Nem tanto. Há pouco mais de um ano, talvez, desde que Mike decidiu-se estabelecer por conta pró pria. Viemos morar nesta re­giã o há uns dois anos. Até que é uma parte simpá tica do paí s, nã o é mesmo?

Jú lia sorriu.

— Eu ainda nã o a conheç o bem. Ontem fomos a Southampton e gostei bastante.

— Temos que combinar de nos encontrarmos na hora do almoç o, como costumá vamos fazer. Vamos usar nossa melhor roupa e os maridos levarã o um gordo talã o de cheques. Será o dia do sacrifí cio, como Mike costumava dizer. Você irá?

— Por que nã o? — O â nimo de Jú lia se renovara inteiramente. Como podia ter sido tã o tola a ponto de nã o querer ver aquelas pessoas? Nã o era de admirar que Ross tivesse finalmente perdido a paciê ncia e se encarregasse de resolver pessoalmente aquele as­sunto, — Eu gostaria muito.

— Ó timo. — Animada, Peggy abriu a porta do guarda-louç as e tirou de dentro pratos e travessas. — Deixe que arrumo a bandeja.

Os Ashleys partiram à s cinco e meia, levando emprestado um guarda-chuva para abrigá -los em seu breve trajeto até o automó vel. Jú lia ficou a contemplá -los até que se perderam de vista, extrema­mente consciente da presenç a de Ross a seu lado. Pela primeira vez estava começ ando a sentir alguma seguranç a na presenç a dele, alguma crenç a real na extensã o dos sentimentos dele por ela. Nã o tinha sido justa com ele. Nã o lhe tinha dado uma oportunidade. Ele a amava e ela o tinha amado. Seria tã o difí cil assim voltar a se apropriar daquela emoç ã o se ela se permitisse?

                                     CAPITULO V

 

Jú lia ficou contente por ter David a seu lado na semana que se seguiu. Já estava farta de ficar so­zinha a maior parte do dia. Como hó spede era excelente, ordeiro e atencioso, e um companheiro admirá vel, ao lado de quem ela nã o sentia a menor tensã o. Juntos, davam grandes passeios. Fizeram uma pequena viagem a Lymington, com Shan resfolegando feliz no banco de trá s do conversí vel, riram um bocado e nã o falaram sobre nada em particular. Havia muita coisa que Jú lia gostaria de saber a respeito de Ross, mas nã o conseguia se forç ar a perguntar. Se devia aprender alguma coisa mais a respeito do homem com quem tinha se casado teria de recorrer a ele mesmo.

Isso era mais fá cil de pensar do que de executar. Se Ross fazia alguma objeç ã o ao tempo que passava com seu irmã o, dissimulou o fato muito bem. Nas raras vezes em que ficavam a só s, parecia fazer um esforç o enorme para tornar a atmosfera entre eles estri­tamente impessoal. Jú lia nã o se sentia segura sobre como enfren­tar a situaç ã o, como criar uma atmosfera de relaxamento, neces­sá ria para se iniciar qualquer tipo de relacionamento mais chegado. E no entanto a necessidade de ter algo mais do que já tinham ficou cada vez mais forte, colorindo seus dias, fazendo com que ela, in­quieta, se agitasse na cama vazia de casal todas as noites. Com­preendeu, ou pensou que compreendera, que o corpo se lembrava daquilo que a mente havia esquecido, mas isso nã o a ajudava a entender que a fome de carne podia vir antes de tudo, até mesmo sem amor, quando em toda sua vida tinha acreditado de todo co­raç ã o nas româ nticas concepç õ es de amor, desejo, casamento e rea­lizaç ã o, exatamente nessa ordem e em nenhuma outra.

Inevitavelmente, à medida que os dias passavam, começ ou a enxergar em David todas as qualidades que aparentemente falta­vam em seu irmã o. Estava sempre de bom humor, era uma boa companhia, mostrava-se preocupado com seus sentimentos e qual­quer cinismo que tivesse assumido durante seus vinte e seis anos de vida era mantido sob inteiro domí nio. Havia uma sintonia per­feita entre eles, e ambos se mostravam contentes em fazer as mes­mas coisas. Era um companheiro perfeito, dizia-se Jú lia frequen­temente, fechando os olhos ao ligeiro senso de frustraç ã o que al­gumas vezes acompanhava sua aceitaç ã o um tanto rá pida de todas as suas sugestõ es. Por mais estranho que parecesse, era exatamen-te nessas ocasiõ es que algo que seu pai lhe dissera sempre lhe vinha à mente: " Uma mulher sempre sabe o que ela quer de um homem, até consegui-lo". Sob alguns aspectos, seu pai tinha sido um pouco como Ross, pensou. Um homem que deixava aflorar mui­to pouco do que pensava ou sentia, a menos que fosse pressionado. Peggy apareceu na tarde de quinta-feira para ver se Jú lia nã o gostaria de se encontrar com ela na cidade no dia seguinte, a fim de almoç arem juntas. Jú lia nã o hesitou. Precisava de uma mudan­ç a, e Peggy parecia ser uma pessoa diante de quem ela talvez pu­desse se assumir totalmente pela primeira vez, desde que Ross a trouxera do hospital. A vida que levara nas ú ltimas semanas era estranha e pouco natural, ela só foi compreender a extensã o desse fato na sexta-feira, na hora do almoç o, quando foi se encontrar com Peggy na portaria daquele hotel pequeno, poré m elegante.

— Por que você nã o trouxe David? — foi a observaç ã o de Peggy, apó s cumprimentá -la. — Temi que você se sentisse obrigada a fazê -lo, pelo fato de ele estar hospedado em sua casa.

— Nã o, ele achou que nã o seria oportuno vir. Ele é desse jeito: muito compreensivo.

— Realmente? — Peggy arqueou as sobrancelhas irrepreensi­velmente bem cuidadas. — E tã o pouco habitual em um homem. Mike jamais perderia e oportunidade de acompanhar duas mulhe­res para o almoç o, por mais que elas quisessem ficar sozinhas. Meu bem-amado é totalmente insensí vei a este tipo de sutileza! Que tal um drinque antes de nos sentarmos à mesa?

— Eu tomaria um martí ni seco.

— Sempre cautelosa. — Nã o havia o menor traç o de malí cia em sua observaç ã o. — Preciso de algo mais forte do que isso, depois de passar a manhã inteira enfiada na cozinha. Sabe, quando eu era adolescente — e nã o faz tanto tempo assim — me achava com muita sorte se tivesse vinte libras por ano para gastar em roupas, Hoje em dia gasta-se isso em uma manhã e ningué m acha nada demais. Eu nã o devia resmungar tanto, mas é que algumas vezes tenho a sensaç ã o de que nasci quinze anos mais cedo do que devia!

— Quinze? — indagou Jú lia, francamente admirada, recebendo de volta um olhar expressivo.

— Eu devia ter ficado quieta, esqueci que você nã o sabe o meu segredo, pois Ross é um cavalheiro. Que idade você me dá?

— Talvez uns vinte e seis,

— Tenho trinta e dois e algumas vezes sinto isso a cada minuto que passa. Mas hoje nã o, graç as a Deus. — Levantou a mã o, cha­mando o garç om, ordenou os pratos e recostou-se à cadeira, a fim de observar sua companheira. — Devo dizer que você está com aparê ncia muito melhor do que no domingo. Correndo o risco de ser considerada uma pessoa grosseira, devo atribuir isso a Ross ou ao irmã o dele?

— David é uma pessoa maravilhosa — afirmou Jú lia. — Ele foi muito bom comigo nesta semana.

— Posso bem imaginar! Você é o tipo da pessoa para quem mui­tos homens gostariam de ser bons, se lhes fosse dada a oportuni­dade. Pessoalmente, me deu a impressã o de ser uma pessoa um tanto insí pida, comparado com Ross. Parece nã o ser nem um pouco atirado.

— Ele esteve no Oriente Mé dio durante trê s anos. Acho que esta nã o é a atitude de algué m que se acomodou.

— Ah, sim, mas por que razã o ele foi para lá? Um noivado des­feito. Ele devia ter entrado para a Legiã o Estrangeira. Isso pelo menos tem um resquí cio de drama! — Peggy sorriu. — Nã o me leve a sé rio. Nã o sou tã o cí nica quanto pareç o. Chame a isso me­canismo de defesa, se quiser. Ser normalmente ajustada nã o leva a nada hoje em dia.

Jú lia teve de sorrir.

— É tã o importante assim estar por dentro em relaç ã o à geraç ã o jovem?

— Importante? É o segredo do meu sucesso! Você ficaria espan­tada se ouvisse as histó rias que eu ouç o na salinha onde reformo roupas.

— Você reforma roupas em uma butique?

— Sim. A garotada aprecia um bom estilo e um bom corte, in­dependentemente do que as lojas tentam lhes impingir. Faç o re­formas nas roupas e cobro uma pequena porcentagem sobre o preç o pago. Você ficaria surpresa de ver a quantidade de jovens que apa­recem na minha sala. — Ela sacudiu a cabeç a. — Nã o fique tã o distante. Presumo que nã o ocorreram mudanç as substanciais.

— Nã o. — Jú lia ficou contente ao ver que o garç om se aproxi­mava com os drinques. Assim que se afastou, olhou para Peggy e sorriu. — A que vamos brindar?

— Que tal se brindá ssemos ao futuro?

Subitamente, algo dentro dela pareceu abrir-se e expandir-se.

— Muito bem. Ao futuro. Espero que dê certo.

— Dará, sim. — Peggy parecia extremamente confiante, apesar da malí cia estampada em seu sorriso. — Á gua mole em pedra dura tanto bate até que fura!

Elas ainda estavam rindo quando seu olhar se desviou do de Jú lia, em direç ã o à porta, e modificou-se.

— Oh, meu Deus — disse. — Vamos ter encrenca, a menos que eu esteja muito enganada, — Olhou para Jú lia e disse em voz baixa: — Aí vem um conhecido nosso, que se aproxima rapidamente com um brilho no olhar. Com alguma sorte, poderemos nos sair bem. Quer deixar que eu me encarregue da situaç ã o?

— Sim — Jú lia nã o ousou se virar a fim de ver quem era o intruso: ela provavelmente nã o poderia tirar nenhuma vantagem desse gesto. — Nã o posso suportar a idé ia de ter que dar explicaç õ es.

— Foi isso mesmo o que eu pensei. — A expressã o de Peggy tornara-se firme. — Nã o se preocupe com isso. Eu sei como lidar com Lester Connelly.

O homem aproximou-se por trá s de Jú lia e deteve-se, pousando as mã os no encosto de sua cadeira. Uma voz confiante, calculada-mente má scula e extremamente sugestiva, disse:

— Há quanto tempo nã o nos vemos! Isso é que é deixar algué m com saudade! Como é que essas duas beldades tê m passado?

— Muití ssimo bem, obrigada — Peggy respondeu por ambas. — Este lugar é um de seus esconderijos preferidos, Lester?

— Deduzo de sua observaç ã o que, se fosse realmente, você po­deria ter segundos pensamentos e passaria a frequentá -lo — ele replicou calmamente. — Eu adoro esse seu jeito, Peggy. Com ele você consegue ganhar de todo mundo!

— Uma coisa reconheç o — foi a resposta calma —, você nã o se deixa desarmar facilmente. O que é que está fazendo aqui?

— Vim encontrar um cliente. Nem preciso dizer que se trata de algué m muito convencional. — Fez-se uma breve pausa, e Jú lia sentiu o olhar dele pousar sobre seu pescoç o: — Quer dizer que estou no gelo?

Forç ou-se a voltar a cabeç a lentamente e viu um homem de estatura mé dia e bem esguio, de cabelos encaracolados e com um bigode petulante, que combinavam à perfeiç ã o com seu tipo. Talvez fosse o fato de ter Peggy sentada a seu lado que lhe desse tanto controle: nã o havia o menor traç o de tremor em sua voz, no mo­mento em que disse:

— Por que é que você pensa assim?

Suas sobrancelhas arquearam enquanto ele estudava seu rosto.

— Você mudou um pouco desde a ú ltima vez em que nos encon­tramos. Você mudou de idé ia em relaç ã o a mim, nã o é mesmo?

— Nã o tenho certeza — disse ela com sinceridade —, se algum dia cheguei a formular alguma idé ia a seu respeito.

— Pois eu até diria que sim. — Ele parecia um tanto irritado. — Por menos que eu queira admitir, há algumas mulheres que eu simplesmente nã o consigo entender!

Peggy suspirou, enfadada:

— E por menos que você queira admitir, isso se aplica à maior parte dos homens. Até logo, rapaz. Nã o estamos interessadas no assunto.



  

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