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— Eu já lhe disse. Sim! 4 страница



Foi difí cil, senã o impossí vel, evitar um certo clima durante a refeiç ã o. Consciente de que era inevitá vel a revelaç ã o de tudo em algum momento, naquela mesma noite, Jú lia achou mais difí cil do que nunca disfarç ar e interpretar o papel que era esperado da parte dela. Por diversas vezes surpreendeu David olhando de um para o outro, com o cenho ligeiramente carregado e com muita dú vida. Era ó bvio que sabia que alguma coisa nã o ia bem, apesar de difi­cilmente ser capaz de adivinhar a verdade. Fazendo uma retros­pectiva da situaç ã o, ela compreendeu que teria sido muito mais

fá cil esclarecer as coisas desde o iní cio. Mais fá cil e muito mais sensato. Afinal de contas, nã o havia vergonha alguma em relaç ã o ao que lhe sucedera. Ou haveria?

Deixou os dois tomando uma segunda xí cara de café e foi pre­parar o quarto de David. Quando voltou para a sala de estar Ross estava sozinho.

—  Ele foi até o carro pegar a mala — disse o marido. — Pelo que entendi, pretende passar as pró ximas duas semanas conosco.

— Foi o que disse. — Fez uma pausa, insegura. — Você... você ainda nã o lhe contou?

Suas sobrancelhas arquearam.

— Do modo como você agiu quando entrei, tive a impressã o de que você nã o queria que eu lhe dissesse nada. Se você se sente tã o ansiosa para que tudo fique esclarecido, por que nã o lhe contou você mesma assim que ele chegou?

— Porque — disse ela —, levei alguns minutos para me recu­perar do choque. Até ele aparecer e me dizer quem era eu nã o tinha a menor idé ia de que você possuí a um irmã o. Você jamais fez a menor menç ã o a ele.

— Nã o me parecia relevante. Ele estava a milhares de quiló me­tros de distâ ncia e era pouco prová vel que aparecesse por aqui. Eu realmente nã o esperava por isso. Já bastam os problemas que você está enfrentando. — Seus lá bios ficaram adelgaç ados. — Mas com Dave é diferente, nã o ó mesmo? Com ele a gente consegue relaxar.

— Relaxar! — Havia um tremor em sua voz. — Eu me sinto em relaç ã o a ele como se estivesse tentando matar uma charada. Você chama a isso relaxar?

— Nã o estamos falando da mesma coisa. Quis dizer que como homem ele nã o representa nenhum problema em particular, en­quanto comigo você está sempre na corda bamba, morta de medo de dizer ou de fazer algo que poderia ser interpretado erroneamen­te, no sentido de estar me encorajando. Hoje à noite foi a primeira vez que você riu naturalmente desde o desastre, a primeira vez que eu notei que você se parecia com a garota com quem me casei. Muito bem, fico contente por ver que finalmente algué m conseguiu tirar você daquela situaç ã o, mas nã o espere que eu comece a pedir desculpas por meu irmã o ter feito aquilo que nã o consegui fazer. Nã o consigo ser assim tã o altruí sta.

As palmas das mã os dela ficaram ú midas.

— Nã o foi exatamente assim — disse era voz baixa. — Você tem sido tã o distante nestas duas ú ltimas semanas. Eu nã o tinha certeza...

— Você nã o tinha certeza de como eu me sentia em relaç ã o a tudo isso, se me importava com o que estava acontecendo. É isso o que você está tentando me dizer? Com as mã os metidas nos bolsos olhou para e! a e prosseguiu: — Pois fique sabendo que me importo, sim. O que nã o consigo aguentar é esse seu olhar toda vez que ouso mostrar uma sombra que seja de alguma emoç ã o natural. Posso conversar com minha mulher a respeito de livros, de mú sica, de qualquer coisa que esteja sob o sol, menos de nó s mesmos. É duro se acostumar com isso.

Ela sentiu um aperto na garganta.

— Desculpe-me. — Havia muito pouco que pudesse dizer na­quele preciso momento. — Que vamos fazer em relaç ã o a David?

Ele fez uma breve pausa.

— Contar-lhe, suponho. Que mais podemos fazer?

— Contar-me o quê? — David estava na soleira da porta, com a mala na mã o. Seus traç os queimados de sol denotavam uma certa preocupaç ã o, misturada a um pouco de desconfianç a. — Nã o quero parecer indiscreto — disse. — Mas nã o consegui deixar de ouvir o que você s falavam no momento em que entrei. — Olhou para ambos e pousou a mala no chã o. — Eu vim no momento errado, nã o é mesmo?

— Talvez nã o. — Ross deu duas passadas bruscas a fim de tirar um cigarro da caixa sobre a mesinha de café e procurar um isquei­ro. Expeliu a fumaç a com alguma energia e disse, sem alterar o tom: — Jú lia sofreu um acidente há algumas semanas. Ficou in­consciente por algumas horas. Quando voltou a si já nã o se lem­brava mais de mim, deste lugar e de tudo que aconteceu nos ú lti­mos meses. Amné sia parcial, disseram os mé dicos, de duraç ã o in­definida. Ela só esta aqui porque nã o havia mais nenhum outro lugar para onde pudesse ir.

Jú lia percebeu o olhar surpreso de David e deu-lhe as costas. As coisas, colocadas daquela maneira, pareciam tã o clí nicas, tã o frias... E seu comentá rio final nã o era verdadeiro. Pelo menos nã o muito. Ela estava lá porque tinha necessidade de saber algo a res­peito daqueles meses obscuros de sua vida — e essa necessidade persistia. Era como ter os trê s primeiros capí tulos de um livro arrancados, tornando necessá rio reconstruir o iní cio para depois po­der prosseguir. Isso com toda certeza era compreensí vel.

— O que você quer que eu faç a? — David formulou a pergunta apó s uma pausa prolongada. Do modo como ele falava ressaltava que estava fazendo o possí vel para ajustar-se rapidamente à si­tuaç ã o. — Quero dizer, devo ir imediatamente embora ou ficar? Você só...

— Fique. — Disse Ross, em tom -cortante e decisivo. — A pre­senç a de uma terceira pessoa poderia ser a melhor soluç ã o para nó s dois. Sinta-se em casa, Dave. Vou levar o cachorro para dar uma volta.

Jú lia esperou até ouvir a porta da cozinha se fechar e os ganidos de alegria de Shan, antes de dizer em um tom bastante neutro:

— Seu quarto é o segundo à direita. Vou fazer mais um pouco de café,

David nã o se moveu.

— Por que foi que você fingiu? — perguntou.

— Nã o sei. — Levantou os ombros e deixou-os cair novamente.

— Suponho que tenha sido uma coisa instintiva. Queria voltar a ser normal.

— Nã o existe nada de anormal em perder a memó ria, pelo me­nos nã o do modo como você coloca a coisa. Uma vez conheci um camarada que perdeu a memó ria completamente, apó s uma queda com o elevador. Nã o conseguia se lembrar de sua mulher ou dos filhos. Ficou com um branco total. E de repente voltou sem que ele menos esperasse, por si só.

Jú lia disse suavemente:

— Obrigada, David.

— Mas é verdade — ele protestou. — Mesmo.

— Nã o duvido. Só que nã o acho que isso vai acontecer comigo.

— Passou a mã o pela testa. — O mais difí cil de tudo tem sido aprender a aceitar que algo aconteceu.

— Posso imaginar. — Sacudiu a cabeç a com um movimento sú ­bito de impaciê ncia. — Nã o, nã o consigo nã o! E ningué m, a nã o ser que tenha passado pela experiê ncia, conseguiria.

— Você é muito... compreensivo.

— Só exteriormente — ele disse. — Para mim é mais fá cil. Sabia que alguma coisa estava errada no momento em que Ross voltou para casa, mas achava que era apenas uma dessas briguinhas tã o comuns num casal.

Nã o havia alegria no sorriso dela.

— Quem me dera que nã o passasse disso!

Ele entrou na sala, deixando a mala na posiç ã o em que a colocara.

— Quer conversar agora a respeito disso? Nã o posso oferecer uma soluç ã o, porem me coloco como ouvinte atento que pode ser de alguma ajuda.

— Mas existe o que falar? Acordei um dia e encontrei um es­tranho à minha cabeceira, dizendo que era meu marido. Fim da histó ria.

— Diria antes que é o começ o. Você deve querer saber o resto ou entã o nã o estaria aqui.

Jú lia encarou-o.

— Você parece que me compreende melhor do que seu irmã o.

— Eu já lhe disse, Ross está envolvido demais. Durante trê s meses foi um homem feliz, e agora perdeu tudo de novo. Natural­mente que se sente amargurado em relaç ã o a isso.

— Mas era mesmo feliz? — perguntou ela ansiosa. — Como é que você sabe?

— Por suas cartas. Ele nã o lhe... — Ele parou, com ar pesaroso. — Percebo o que você quer dizer, quando fala a respeito de apren­der a aceitar. Mas nã o lhe tem acontecido nada? Nem mesmo um pequeno vislumbre?

— Nada. A menos... — Ela hesitou. — A menos que se leve em consideraç ã o que eu fui capaz de manipular tudo o que se encontra aqui em casa, sem pensar duas vezes, e isso desde o primeiro dia em que voltei para cá. Nã o consigo chegar à conclusã o se isso se deve à memó ria ou simplesmente ao fato de que tudo estava em ordem, nos lugares onde eu logicamente esperaria encontrar cada objeto.

Seu sorriso era contagiante.

— Como homem, jamais penso que as mulheres sã o criaturas ló gicas, mas isso nã o passa de uma opiniã o individualista. Como é que as demais pessoas encararam o fato?

Jú lia sentiu-se empalidecer.

— Nã o sei. Nã o tenho visto ningué m. Nã o quero ver ningué m. Pelo menos ainda nã o.

— Nã o vai resolver nada ficar trancada aqui.

— Nada resolverá. Já me resignei com tudo isso. Nã o posso suportar mais a ideia de que me encarem e comentem coisas a meu respeito.

— Mas se você se tomar uma reclusa, vã o falar muito mais de você. Quanto a ser encarada... — ele sorriu — você já devia ter se acostumado com isso. Bill Grieves sabia como escolher uma secretá ria!

— Penso, algumas vezes — disse ela com a voz subitamente embargada —, que teria sido muito melhor se eu tivesse perdido a memó ria completam ente. É o fato de poder me lembrar de tudo tã o nitidamente até o dia em que Ross disse que nos conhecemos que torna tudo isso tã o terrivelmente irreal. E como ser arrancada de sua pró pria vida e ser inserida na vida de outro algué m que nunca vi.

David pegou uma pequena estatueta de louç a da prateleira e examinou-a de todos os â ngulos contra a luz.

— Você alguma vez já pensou em voltar para Londres, a fim de tentar elucidar as coisas a partir de lá? Foi Bill quem a apresentou a Ross. Nunca se sabe...

— Sim — disse ela —, já pensei nisso. O problema é que se eu sair daqui, acho que jamais voltarei. — Levantou o bule do café. — Ia fazer mais um pouco.

— Neste momento — disse ele — sinto vontade de tomar algo mais forte. E você?

Ela sacudiu a cabeç a.

— Pressinto que se começ ar nã o sei quando é que deverei parar. Beba o que você quiser.

Voltou para a cozinha com a bandeja, encheu uma vasilha de á gua quente e colocou nela as xí caras. Viu-se refletida na vidraç a da janela, e ao fundo a silhueta das á rvores levantava-se contra um cé u ligeira­mente mais claro. Pensou em Ross, que tinha ido lá fora unicamente por causa de Shan, e põ s-se a imaginar se chegaria um dia em que ela começ aria a confiar inteiramente nele. No má ximo conseguiria atingir um relacionamento precá rio. E que efeito, ponderou, a presen­ç a de David no chalé teria sobre tal relacionamento?

 

                                                           CAPÍ TULO IV

 

 

Passava das dez quando Ross voltou para casa, com a mesma expressã o enigmá tica de sempre. Jú lia fez café e sanduí ches, comeu alguma coisa e pediu desculpas, pre­textando um pouco de cansaç o, a fim de ir para o quarto. Supô s que os dois passariam pelo menos mais uma meia hora conversan­do, e ficou surpresa ao ouvi-los subir a escada uns dez minutos mais tarde. Ouviu-se o murmú rio de vozes no patamar e o barulho de uma porta que se fechava. Seguiu-se uma pausa breve. Ouviu entã o uma pancada em sua porta e a voz de Ross, calma poré m firme:

— Jú lia, quero falar com você.

Jú lia deparou com seus olhos no espelho, pousou a escova que estivera usando, levantou-se e foi abrir a porta. Ross lá estava, com uma mã o encostada na perna. Seu olhar percorreu o roupã o azul, voltou a pousar sobre o rosto dela e nele permaneceu.

— Você vai me convidar para entrar ou prefere que conversemos lá embaixo?

Ela contemplou-o durante um bom momento antes de se mover. Ele entrou rapidamente, fechou a porta e disse:

— Como é que você se sente com a presenç a de David? Se prefere que ele nã o fique, diga. Ele pode ir para o apartamento.

— O apartamento? — perguntou ela, procurando ganhar tempo.

— Em cima do escritó rio. Eu mesmo o usava, quando vim para cá, depois foi alugado por um ano e pouco. No momento está vazio.

— Nã o o acha mais apropriado? — perguntou cautelosamente. — Quer dizer, você, solteiro e vivendo tã o perto do emprego. Este lugar parece tã o afastado para um homem que mora sozinho.

— Meu plano era usar o apartamento durante a semana e vir para cá nos fins de semana, à procura da paz e do silê ncio. Um cliente, ao saber que tinha de se mudar de volta para a cidade, perguntou se eu poderia encontrar um lugar onde abrigar Shan, e entã o eu tive de pensar duas vezes, Um apartamento pequeno e um cachorro alsaciano barulhento nã o combinam muito bem. Per­suadi a sra. Cooper a vir aqui cinco vezes por semana e vim morar aqui permanentemente — informou, com uma certa deliberaç ã o: — Voltando à pergunta original, e quanto a David?

Jú lia voltou para a penteadeira, pegou novamente na escova e sopé s ou-a.

— Ele é seu irmã o.

— Isso é um fato, nã o uma razã o. — Ele a olhava atravé s do espelho. — A ú nica maneira que temos de resolver esta situaç ã o é sermos honestos um para com o outro.

— As pessoas alguma vez sã o completamente honestas umas com as outras? — ela murmurou, e a expressã o dele modificou-se um tanto.

— Se nã o o sã o, algumas vezes isso ocorre por razõ es honestas. Pare de se mostrar indecisa, Jú lia. A decisã o é sua.

— Você quer que ele fique?

Ele fez um gesto de impaciê ncia.

— Quero qualquer coisa que nos ajude a voltar a ter uma vida normal. Você precisa se distrair de alguma maneira, e nã o é sozi­nha que você vai conseguir isso. Você faz muito mal em evitar a sra. Cooper.

— Pois ela devia se sentir aliviada. — O que você quer dizer com isso?

— Que ela provavelmente pensa que meu lugar é em um sana­tó rio psiquiá trico.

— Como?! — Sua voz tornou-se mais suave. — E a primeira vez que eu vejo você ceder à autopiedade.

Já arrependida por ter feito aquela observaç ã o, esforç ou-se por amenizá -la.

— Acho que fui longe demais. Mas é que algumas vezes a sur­preendo a me encarar, como se nã o soubesse o que vou fazer em seguida.

— Bem, se ela tivesse medo de você pediria a conta. Você pro­vavelmente é um motivo de interesse muito grande na vida dela.

— Mas entã o até que vale a pena...

— Jú lia, pare com isso! — Com um gesto suave obrigou-a a encará -lo, segurando-a gentilmente pelos cotovelos. — Podemos subs­tituí -la por outra pessoa, se você preferir. Nã o sabia que você se sentia assim em relaç ã o a ela.

Jú lia tinha plena consciê ncia de sua proximidade, do odor má s­culo de seu cabelo e de sua pele, do toque de suas mã os. Um passo a mais a levaria a cair em seus braç os. Ela deu o passo — mas para trá s — e viu seu rosto endurecer novamente.

— Nã o — disse ela rapidamente —, nã o é necessá rio. Eu estava sendo infantil. E é claro que David deve ficar.

— Claro. — Suas mã os tinham caí do de lado quando ele se voltou, e naquele momento ele se dirigia para a porta. — Nã o quero mais tomar o seu tempo. Boa noite.

A porta abriu-se e voltou a se fechar. Jú lia sentou-se na cadeira da qual se levantara tã o recentemente, passou a escova pelo cabelo percebeu que sua mã o estava tremendo demais, por isso desistiu de prosseguir. Uma pequena arté ria latejava na base de seu pes­coç o, e sentiu intensamente aquela dor profunda no interior de si mesma. Levantou-se abruptamente, desvencilhou-se do roupã o, apagou a luz e deslizou entre os lenç ó is.

Sentia-se no ar um cheiro de bacon frito quando Jú lia despertou à s oito horas. No momento em que chegou à cozinha David colocava ovos mexidos em um prato, ao mesmo tempo que nã o tirava o olho do leite, a ponto de ferver.

— Alô — ele a saudou bem à vontade. — Eu ia levar o café da manhã em seu quarto, mas já que você está aqui bem que pode providenciar o café enquanto cuido do resto. Você quer tomates?

— Acho que prefiro ovos. — Ela o contemplou por um momento com um sorriso no canto da boca, enquanto ele limpava diligente­mente os pedacinhos de tomate que haviam caí do sobre o fogã o. — Você é um profissional.

— Para um homem? — Ele sorriu. — A prá tica leva à perfeiç ã o, como se costuma dizer. Vivi durante muito tempo sozinho para aceitar qualquer tipo de comida, a minha ou a de quem quer que seja. Note bem, jamais chegaria a ser um Cordon Bleu, mas sei distinguir carne de carneiro da carne de ovelha a dez metros de distâ ncia. Até que mereç o um pré mio, você nã o acha?

Jú lia pegou a tampa da garrafa de leite e com ar bem sé rio entregou-a para ele. — Tome esta medalha.

—  Pois eu até que aceito, — Ignorando o creme que ainda aderia à tampa, pregou-a em seu sué ter de lã. — Só que eu preferia que fosse de ouro. Nunca suportei ficar em segundo lugar. Quando ti­nha nove anos, meu maior desejo era ser da altura de Ross antes de acabar o curso primá rio, e foi o que aconteceu. E mais, desde entã o a diferenç a entre nó s sempre foi de apenas alguns centí me­tros. Você já ouviu falar de um exemplo maior de persistê ncia?

— Como é que você sabe que as coisas nã o teriam acontecido naturalmente?

— Pois é, nã o sei. Mas se há alguma coisa que aprendi nos meus vinte e seis anos de vida é vangloriar-me por tudo que é possí vel. Acrescenta encanto à biografia de qualquer um. — Riu para ela, alegre. — Você devia sorrir assim mais vezes. Fica bem em você.

Ela ficou sé ria no mesmo momento, lembrando-se de que Ross estava no quarto acima de suas cabeç as.

— Você s eram muito chegados um ao outro, quando crianç as? — perguntou.

— Acho que bastante chegados, caso se leve em conta a diferenç a de nove anos. Devo muito a ele. Quando papai morreu, deixou-nos sem um tostã o furado. Foi graç as a Ross que terminei os estudos e me capacitei para este emprego. Se dependesse de mim, prova­velmente teria me tornado um vagabundo. É o que mamã e costu­mava dizer. — Havia displicê ncia no tom com que falava. — Ross era seu preferido. — Colocando os tomates no prato, acrescentou: — Você vai chamá -lo ou quer que eu o faç a?

A porta da frente abriu-se no mesmo momento em que a ú ltima pergunta era formulada, Ross estava na soleira, com as sobrance­lhas sardô nica mente alteadas, enquanto contemplava os dois ros­tos surpresos que se voltavam para ele.

— Me chamar para quê? — perguntou, e abaixou-se para tirar os sapatos. — Está muito frio lá fora. Meus pé s parecem dois blocos de gelo. Um de você s nã o quer pegar meus chinelos? Estã o debaixo da mesa.

Jú lia desligou a má quina de fazer café antes de ir procurar os chinelos.

— Nã o sabia que você tinha saí do — disse ela.

— Eu percebi. — Ele disse, sem nenhuma ê nfase. — Os cã es sã o criaturas exigentes. Mas acho que calculei o tempo certo do passeio.

— David preparou o café — informou ela, e ele olhou para o irmã o.

— Vai ser uma sorte ter você por perto. Espero que o gosto seja tã o bom quanto o cheiro. Estou com muito apetite. Sentando-se, disse: — Que tal um passeio até a cidade agora de manhã? Tenho um cliente à s onze, mas poderia encontrar você s dois na hora do almoç o.

— Acho que é uma boa idé ia — falou David com um jeito tã o displicente quanto o de seu irmã o. — O que você me diz do Luigí 's? Ele ainda existe?

— Tanto quanto eu saiba, sim. Este ano ainda nã o fui lá.

— É um pequeno restaurante italiano em uma das ruazinhas do centro — David explicou para Jú lia. — Costumava ser incrivel­mente frequentado, a comida era ó tima. Podemos tentar, se você quiser.

— E por que ela nã o haveria de querer? — A pergunta foi feita rapidamente, mas havia uma sugestã o de inflexibilidade nos traç os de Ross. — Afinal, é apenas uma refeiç ã o.

— E uma mudanç a até que faz bem. — Custou-lhe algum esforç o parecer alegre, mas ela o fez. — Você vai ter que me mostrar a cidade, David. Quem sabe eu seja até capaz de reconhecer alguns lugares!

— Um cego conduzindo outro. Eu nã o sou muito craque em me lembrar das coisas. Talvez devê ssemos tomar um guia. O que é que você sugere, Ross?

— Você s hã o de conseguir — foi a resposta pouco solidá ria. — E somente por algumas horas.

Assim que acabaram de comer, Jú lia lavou os pratos, colocou-os para secar e subiu a fim de se trocar. Escolheu uma bela saia de lã que tinha havia anos, pô s um sué ter quente e passou uma escova no cabelo. Ao passar batom, surpreendeu-se sentindo o quanto de­sejava sair, acariciando o pensamento de se afastar do chalé por algum tempo, com David atuando como um pá ra-choque entre ela e Ross. Este ultimo tinha razã o em relaç ã o a algo: ela conseguia relaxar com seu irmã o. Havia um certo consolo nesse fato.

Foram com o cô nsul, deixando o conversí vel que David alugara na garagem. Ross deixou-os no centro da cidade, combinando en­contrar-se a com eles no Luigi's. David confirmou que o restaurante ainda existia telefonando para lá antes de saí rem de casa. No momento em que ficou a seu lado, na calç ada cheia de gente, enquanto o carro se perdia no trá fego da manhã, Jú lia teve uma sensaç ã o inexprimí vel de libertaç ã o. O que se desenrolava diante dela nã o significava nada, mas pela primeira vez isso pareceu nã o importar tanto. Voltou seu rosto sorridente para o companheiro.

— Aonde é que vamos primeiro?

— À s compras! — sugeriu, rindo, ao notar que o nariz dela fran­zia. — Pensei que todas as mulheres gostassem de entrar nas lojas.

— Nã o generalize — disse ela. — O dia está bonito. Vamos andar por aí.

Foi o que fizeram, e tiveram a impressã o de percorrer quiló me­tros. Andavam e falavam. Jú lia de repente surpreendeu-se contan­do os dias de sua infâ ncia, caç oando das esperanç as e das aspira­ç õ es de quando tinha entre doze e treze anos.

— Era verdadeiramente terra de ningué m — disse, em deter­minado momento do relato. — Velha demais para brincar com bo­necas e ainda nã o suficientemente velha para qualquer outro tipo de atividade. Tive sorte em possuir um pai que era capaz de com­preender os meus estados de alma o lidar com eles. Ele mais do que compensou o fato de eu nã o ter mã e.

— Ele nunca pensou em se casar de novo?

— Nunca quis. Tí nhamos um ao outro. Bastava.

— Você teria aceito uma madrasta?

— Já disse a você, a questã o nem se colocou. Ele era perfeita­mente feliz daquele jeito.

Tinham chegado até a praia. Assentindo mutuamente, viraram à esquerda e deram alguns passos em silê ncio, até que Jú lia per­guntou subitamente:

— Você quis sempre ser engenheiro, David, ou Ross decidiu por você?

Ele lanç ou-lhe um olhar penetrante.

— O que a leva a perguntar?

— Algo que você disse hoje de manhã, relativo ao fato de ser muito agradecido a ele. Você me pareceu... bem, um tanto ressentido,

— É mesmo? Nã o tive consciê ncia disso. — Naquele momento ele tinha o ar decididamente pesaroso. — Acho que sempre tive uma inveja muito disfarç ada de Ross, por ele ser o mais velho e tudo o mais. Eu me envolvi em algumas encrencas depois que papai morreu. Eu me meti com má s companhias e cheguei a ter problemas com a polí cia. Ross tirou-me da enrascada aceitando ser res­ponsá vel por meu futuro comportamento, e deu duro, a fim de que eu me dedicasse a alguma coisa. — Estremeceu. — Ele tinha vinte e trê s anos e eu catorze. Eu lhe dava ouvidos porque o que ele dizia parecia ser correto, mas nã o gostava de fazer o que ele queria, Foi somente nestes ú ltimos anos que finalmente consegui compreender o que fez por mim.

— Mas no fundo você ainda detesta a idé ia de lhe dever alguma coisa — ela arriscou-se a dizer, e ele riu subitamente.

— Pare de tentar me psicanalisar! Nã o sou tã o complicado assim.

— Sinto muito. — Seu sorriso era contrafeito. — Se há algué m aqui que precise de psicaná lise esse algué m sou eu.

— Como assim? Você recebeu uma pancada na cabeç a que blo­queou temporariamente algumas das cé lulas da memó ria como di­ria um profissional, isso nã o fax de você um caso de divã. De acordo com o que Ross me disse, os mé dicos declararam que há uma boa chance de uma recuperaç ã o completa a qualquer momento.

— Eles vivem dizendo isso desde que eu acordei no hospital. Nã o acho que acreditem nisso mais do que eu, ou do que Ross. para falar a verdade. — Andava olhando o calç amento e evitava incons­cientemente pisar nas fendas, como se se tratasse de uma brinca­deira de infâ ncia. — O que mais ele lhe contou?

— Que mais deveria ter me contado? Ele nã o é o tipo de pessoa que discute problemas pessoais com os outros. — Hesitou. — Nã o é preciso ser muito observador para notar que no momento você s vivem juntos somente na aparê ncia. Deve provocar uma grande tensã o.

— Em Ross?

— Em você s dois. Você tem certeza de que nã o vou acabar atra­palhando?

— Certeza completa. — Ela levantou os olhos e sorriu para ele.

— Você já... — Interrompeu-se no mesmo momento em que um reló gio começ ou a bater as horas. — Já é uma hora!

— E mesmo — confirmou ele, consultando o reló gio de pulso.

— E devemos estar bem longe do Luigi's. Acho melhor pegarmos um tá xi.

Isso foi mais fá cil de dizer do que de fazer. Quando finalmente conseguiram chegar ao restaurante já era quase uma e meia. Ross estava sozinho na mesa reservada para eles. com um drinque dian­te de si.



  

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