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CAPÍTULO V
O tempo prosseguiu, numa sé rie de dias ensolarados e noites estreladas, e Cherry logo estabeleceu uma rotina para ela e para Felipe. Com sua calma habitual, encontrou seu lugar na casa, transformando-se, como disse numa carta aos pais, em parte da paisagem. E era isso o que ela pretendia ser durante o tempo que permanecesse ali. Nã o queria atrair demasiada atenç ã o, pois havia percebido que, para Felipe, era muito importante que ela ficasse e cuidasse dele. Alé m de ser uma crianç a muito boa, era també m bastante vulnerá vel. À medida que o tempo passava, Cherry se sentia observada e estudada: com benevolê ncia, pela encantadora dona Bianca; com frio distanciamento, por Ric; e, principalmente, por Francisca, que estava sempre à espera de que Cherry demonstrasse algum interesse especial por Ric. Se revelasse qualquer interesse, sabia que Francisca entraria em aç ã o para tornar sua vida impossí vel em Vallera. Felizmente, o pró prio Ric tornou fá cil para ela evitá -lo. Passava a maior parte do dia trabalhando na fazenda e nã o fazia tentativas para se encontrar com ela a só s. Quando se encontravam, geralmente Francisca ou dona Bianca també m estavam presentes, e aos poucos ela aceitou o tratamento distante e autoritá rio de Ric como necessá rio, enquanto tivessem Francisca a observá -los. Daquela vez, o afastamento dele nã o era parte da danç a e ele nã o esperava que ela o seguisse. Por isso nã o fez nenhum esforç o nesse sentido. À s vezes, quando se encontrava a só s, no quarto, e começ ava a relembrar as noites passadas na companhia de Ric, os abraç os que haviam trocado, conseguia desviar os pensamentos para assuntos menos perigosos e menos româ nticos. Afinal, nã o tinha sido o pró prio Ric quem a advertiu contra os perigos do excesso de romantismo e os erros a que isso poderia conduzir? Mas, apesar de fazer o possí vel para proteger o coraç ã o, Cherry se permitiu viver um outro romance... comVallera. Marita revelou-se uma companheira alegre e bem informada, sempre pronta a acompanhá -la nos passeios pela fazenda. O lindo vale dourado era rodeado de montanhas, cujas rochas nuas brilhavam ao sol, mudando perpetuamente de cores durante o dia, até serem tragadas pela noite. També m a casa exercia sobre ela um encanto especial, e à s vezes Cherry se descobria maravilhada com algum aspecto novo das paredes brancas e do telhado de terracota, que brilhavam contra um fundo de ciprestes muito verdes e campos dourados. Para alí vio de Cherry, depois de um perí odo de cuidadosa observaç ã o, Francisca começ ou a aceitar a presenç a dela na fazenda e a demonstrar sinais de amizade. Certo dia, quando fazia os preparativos para a chegada de alguns convidados, levou Cherry até a imensa despensa localizada sob a casa. Chegava-se até lá por um porta ampla que saí a da cozinha. Nã o havia janelas no local, e as duas portas tinham sido construí das de tal forma que a entrada e a saí da tinham que ser, necessariamente, pela porta da cozinha. Nas paredes, fileiras de prateleiras com alimentos secos, como farinha e aç ú car, alé m de garrafas e garrafas de vinho. Potes de compotas e picles brilhavam à luz das lâ mpadas e ervas secas pendiam de algumas vigas. A mobí lia que nã o estava em uso na casa era recolhida a um canto da despensa. Um dia Francisca abriu uma das arcas de madeira e mostrou a Cherry a famosa prataria dos Matino: salvas imensas e candelabros trabalhados, que ela manuseava com amorosa possessividade. — Tudo isso já foi mostrado na fiestade Potosi, em procissã o — explicou Francisca. — Havia vá rios carros repletos de prataria, já que todas as grandes famí lias da é poca costumavam tomar parte. Mas tia Bianca parou de participar dos desfiles quando o pai dela morreu. Ele costumava dizer que era errado ostentar tantos bens materiais quando havia pessoas morrendo de fome no mundo. Muitas das famí lias tiveram que vender suas pratarias a colecionadores de antigü idades para poder sobreviver; nó s tivemos sorte de conseguir conservar boa parte da heranç a dos Matino. Daquela arca, passaram a outra, onde se guardavam roupas femininas. Francisca retirou um vestido de brocado dourado e colocou-o na frente do corpo. — Devia ser maravilhoso viver naqueles tempos — comentou, com um suspiro. — Os Matino eram famosos por suas festas e recebiam suntuosamente. Cinqü enta pessoas podiam vir aqui para uma fiestae ficar durante um mê s. Agora quase nunca damos festas. Quando me tornar esposa de Ric, mandarei restaurar aquelas tapeç arias para colocá -las nos lugares originais. Mandarei pendurar os retratos e teremos muitas pessoas por aqui outra vez. Seus olhos brilhavam de satisfaç ã o ao se imaginar vivendo aquela vida de esplendor. — E se o sr. Somervell casar com outra pessoa, o que vai fazer? — perguntou Cherry, achando que já era tempo de Francisca encarar a realidade. A reaç ã o de Francisca foi violenta. Afastando-se da arca, aproximou-se de Cherry, furiosa. — Ouviu alguma coisa? Sabe quem ele visita em Sucre todas as noites? — perguntou. Um pouco assustada com a ferocidade da moç a, Cherry deu um passo para trá s. Tinha reparado que Ricfreqü entemente desaparecia à noite, mas jamais havia feito perguntas. Provavelmente ele tinha boas razõ es para fazer tudo que fazia. — Nã o, nã o ouvi nada. Como poderia ouvir? Jamais estive em Sucre. — Eu sei. Mas Rafael conversa muito com você, quando vem aqui— replicou Francisca, tentando se recompor. — Nã o acho que conversem só sobre poesia. Ele deve ter dito alguma coisa, caso contrá rio você nã o pensaria em me fazer essa pergunta. Já disse antes e vou repetir: Ric e eu vamos nos casar! Quando, eu nã o sei... talvez tenhamos que esperar até que a mã e dele morra. Enquanto isso, ele pode ter uma amante em Sucre. Eu nã o me importo. É costume aqui na Bolí via. Só me preocupo quando ele começ a a prestar atenç ã o a uma mulher que pode vir a ser a esposa dele, como Teresa dei Monte. — Os olhos de Francisca brilharam perigosamente. — Você o ama? — Nã o entendi — respondeu Francisca, admirada. — Preocupa-se com o conforto e a felicidade dele, ou pensa só em você quando fala de se casarem? A fú ria brilhou nos olhos de Francisca, fazendo Cherry se arrepender da pergunta. — Por Dios! — disse Francisca, entre os dentes. — Está me comparando à quela caç a-dotes do seu paí s que ele trouxe aqui? Ela sabia que ele um dia herdaria metade da fortuna dos Matino, e era só isso que queria. Mas eu adoro Ric. Adoro desde o dia em que vim para cá. Nã o tive uma infâ ncia feliz e confortá vel, como você provavelmente teve, senorita. Meu pai era fraco e bebia muito. Abandonou minha mã e, que morreu de desgosto. Dona Bianca, que é uma santa me trouxe para morar aqui, onde conheci Ric, bonito, alegre cheio de vida, diferente de todos os outros. Comecei a adorá -lo imediatamente. — Mas adoraç ã o nã o é amor — insistiu Cherry. __ Sempre esperamos que o objeto da nossa adoraç ã o seja perfeito. — Si. É verdade — Francisca falou com emoç ã o, e Cherry sentiu muita pena dela. Como era ingê nua! — Para mim, Ric é o homem perfeito. É forte, bonito e inteligente. Sabe como comandar os homens e como amar as mulheres. Se tivesse vivido no passado, teria sido um heró i, um lí der do seu paí s. — Mas ele nã o vive no passado. Estamos no sé culo XX e sabemos muito mais sobre nó s agora. Sabemos que todos nó s temos fraquezas e misé rias, e que é melhor amar que adorar um homem. Melhor ser companheira que escrava ou criada. — Bobagem! Você fala como o Rafael. Você gosta dele, nã o gosta? — perguntou, curiosa. — Gosto. Ele é talentoso e sensí vel. — Disse a Ric que você gosta de Rafael — murmurou Francisca, escolhendo algumas garrafas de vinho na prateleira. — També m disse que vi você s abraç ados enquanto passeavam. Entã o a danadinha havia visto os abraç os de Rafael, como ele esperava. — E o que foi que o sr. Somervell disse? — perguntou Cherry, curiosa a respeito da reaç ã o de Ric. — Ele deu de ombros, como se nã o se importasse com o que você faz. Disse que era natural que você s dois tivessem alguma coisa em comum. Afinal, Rafael é professor e você trabalha com crianç as pequenas. Disse que ficava feliz por você ter encontrado um amigo, pois isso talvez a ajudasse na decisã o de continuar como babá de Felipe. — E acrescentou, curiosa: — Acha que ajudaria? — Acho — respondeu Cherry, tentando nã o se comprometer. Teve a impressã o de que Ric havia compreendido o jogo de Rafael e estava ajudando. — Mas ele é só um professor — suspirou Francisca, como se falasse para ela mesma. — É verdade que vem de boa famí lia, mas sua avó era uma chola. — O que há de errado em se ter uma cholacomo avó? As cholasque conheci até agora me impressionaram bastante, sã o dignas e fortes. Sei també m que a sua avó era chola. Entã o por que o preconceito contra Rafael? Outra vez o ó dio brilhou nos olhos de Francisca, e Cherry desejou ter ficado de boca fechada. — Rafael tem sido um bom professor para você — zombou Francisca. — Mas as teorias dele a respeito do nosso paí s nã o sã o compartilhadas pelo pai, que tem muito orgulho de ser um Mendoza, da mesma forma que me orgulho de ser uma Matino. Don Diego já teve uma fazenda como esta, em Sucre, um lugar mais quente que aqui. Já foi um patrã o como mandava a tradiç ã o, com muitas pessoas trabalhando para ele. Ele nã o sujava as mã os como um fazendeiro comum. — O que aconteceu à fazenda dele? — O governo tomou-a e dividiu as terras entre os í ndios. Como nã o conseguiu ningué m para cuidar da terra que lhe restou, teve que vendê -la. Foi aí que se tornou professor de lí nguas. — Talvez ele seja mais ú til como professor que como fazendeiro — argumentou Cherry, decidida a ajudar Rafael. — Acho que nã o há muito sentido em se possuir terra se nã o se suja a mã o na terra, como faz o sr. Somervell. Ele parece nã o se importar de ser um fazendeiro comum. Francisca abriu a boca para dizer alguma coisa, depois fechou-a outra vez, como se visse a inutilidade de discutir esse ponto. — E depois, eu acho que um professor é tã o importante para o paí s quanto um fazendeiro. Existem milhares de pessoas que precisam aprender a ler e a escrever — continuou Cherry. — Você acha que Rafael é importante? — perguntou Francisca. — Muito, alé m de ser inteligente. Com algué m que o apoiasse, iria longe na profissã o. Francisca demonstrou interesse. — Que espé cie de apoio você acha que ele precisa? — Acho que ele precisa de uma boa esposa, que cuide dele e lhe dê um lar agradá vel. Ele nã o é nem um pouco prá tico. Acho até que esqueceria de comer se algué m nã o colocasse a comida na frente dele, e esqueceria de trocar de camisa se nã o houvesse algué m para lembrá -lo. — Compreendo — disse Francisca. — Mas já falamos demais. Quer me ajudar com essas garrafas? Com os braç os repletos de garrafas, entraram na cozinha. O cheiro gostoso de comida fez Cherry salivar. Francisca fechou a porta da despensa e guardou a chave. — A porta só pode ser aberta deste lado — explicou Francisca. — Uma vez, Elizabeth ficou trancada horas lá dentro. Quase morreu de medo. Logo depois foi embora de Vallera. Havia tamanha satisfaç ã o na voz dela que Cherry tremeu. — Elizabeth? — perguntou. — Si. A mulher que queria casar com Ric. Elizabeth Humphreys. Mas acabou se casando com Juan, que era um tolo e se deixava facilmente enganar por estrangeiros. A cabeç a de Cherry começ ou a girar. Como nã o percebeu antes que Elizabeth e a inglesa que Ric havia trazido eram a mesma pessoa? Assustou-se ao perceber que Francisca a olhava com curiosidade. — Você ficou pá lida, senorita. — Uma indisposiç ã o de estô mago — murmurou Cherry. — Acha a comida muito temperada? Geralmente os ingleses acham. Elizabeth també m tinha esse problema. Espero que você nã o sofra de claustrofobia, també m. Muchas gradas por sua ajuda. — De nada — respondeu Cherry, arranjando um jeito de escapar dali. Lá embaixo, Felipe brincava no quadrado que havia sido de Ma-rita. Nã o era de admirar que Ric achasse irô nico ser responsá vel pelo filho de Juan e Elizabeth! Agora estava explicado porque ele havia ficado pá lido ao ler os papé is de Felipe e Elizabeth. À luz dessa revelaç ã o, Cherry conseguia entender melhor as observaç õ es de Ricardo. Será que ele amava Elizabeth? Ou será que a via apenas como uma possí vel esposa, algué m com quem flertara, como fazia com tantas outras mulheres? Segundo Rafael, Ric a havia seguido até Lima, quando ela deixou Vallera. Nesse caso, talvez seus sentimentos em relaç ã o a ela fossem sé rios. Cherry lembrou da expressã o de choque de lsabella ao ouvir o nome da mã e de Felipe. Devia ter conhecido Elizabeth em Lima, provavelmente em companhia de Ric. Daí o espanto ao saber que a moç a havia se casado com Juan. A experiê ncia de Ric era tã o semelhante à sua que, de repente, Cherry sentiu uma sú bita onda de simpatia por ele. Agora entendia por que tratava as mulheres com desprezo e por que nã o queria misturar amor e casamento. Claro, agora que sabia de Elizabeth, ela o entendia muito melhor, e o desejo de consolá -lo era quase insuportá vel. Deu graç as a Deus por ele nã o estar por perto; caso contrá rio, teria ido ao encontro dele, para abraç á -lo e dizer que sabia de tudo. O som de passos a assustou, fazendo com que deixasse de lado aqueles pensamentos perigosos. Era Marita que voltava da escola, ansiosa por passear com Felipe. Naquela noite chegaram os convidados. Alé m de Rafael e donDiego, chegaram també m Josef dei Monte, a esposa, o filho e as duas filhas. A filha mais velha era Teresa, uma moç a alegre e cheia de vida, de cabelos negros e lá bios muito vermelhos, sempre sorridente. Observando-a, Cherry compreendeu por que a possessiva Francisca a via como rival. No dia seguinte, quando passeava com Felipe, Cherry encontrou Rafael e pô de perguntar a ele se Ricardo visitava Teresa quando ia a Sucre. — O que lhe contaram sobre as viagens dele a Sucre? — perguntou com um sorriso. — Nem sabia que ele ia lá com freqü ê ncia, até que Francisca mencionou o fato — respondeu Cherry. — É verdade que ele visita a casa dos dei Monte. Mas isso é muito natural, já que Josef é seu advogado. També m vai à casa dos Costillo, e a filha deles, Magdalena, é muito bonita. O dr. Moreno, mé dico de dona Bianca, també m faz parte da lista de visitas de Ricardo, e Carlotta Moreno é extremamente atraente... — Está bem, está bem — interrompeu Cherry, rindo. — Nã o precisa dizer mais nada. Já entendi... a seguranç a da quantidade outra vez! Mas Francisca teme que ele esteja se encontrando mais com uma delas do que com as outras. Tem um pouco de medo delas, mas nã o se importa que ele tenha uma amante. — E você, que veio de um paí s e de uma cultura diferentes, acha isso difí cil de compreender? — Os homens aqui costumam ter uma amante? — Costumavam, como acontecia na Espanha. Você deve ter notado um quartinho ao lado da porta principal, com uma entrada separada. — Sim, notei. Vá rias vezes me perguntei para que serviria. — Destinava-se especialmente ao senhor da casa. Lá ele podia receber a amante sem perturbar o resto da famí lia, mas isso foi no tempo em que os casamentos eram arranjados. Agora há muito mais liberdade entre os sexos, e diminuiu o nú mero de homens que tê m esposa e amante ao mesmo tempo. Será que Francisca nunca imaginou que Ric vai a Sucre para reuniõ es de negó cios? Ele faz parte de diversos comitê s agrí colas do governo. À s vezes faz uma visita ao meu pai e a mim, mas també m tem outros amigos. Sabe, é cansativo ser o ú nico homem numa casa. — Bom, mas agora ele já nã o é mais o ú nico homem. Felipe está aqui! — Cherry riu. — Sim, tem Felipe — concordou Rafael, sorrindo. Mas o sorriso logo morreu, e ele ficou com um ar desconsolado. — Se Francisca se preocupa tanto com o que ele faz quando está longe, acho que nã o devo ter muitas esperanç as. — Nã o sei. Ela me falou a seu respeito, outro dia, e disse que vem de boa famí lia, apesar de ser apenas um professor. — Mas nã o quero que gostem de mim por minha famí lia. Quero ser amado por mim mesmo, pelo que sou como pessoa — exclamou Rafael, batendo a mã o no peito, exaltado. — Eu sei — concordou Cherry, suave. — Mas nã o percebe que é um começ o? Ela pensa em você e até que demonstrou bastante interesse quando eu disse que um professor é tã o importante quanto um fazendeiro, e que você precisa de uma esposa que o ame e o apó ie. — Meu anjo, minha queridí ssima amiga — gritou Rafael. — Como eu a amo! — E, para surpresa de Cherry, envolveu-a nos braç os e beijou-a calorosamente. — Perdoem-me por interromper um momento tã o terno — disse uma voz profunda e familiar por trá s deles. — Tenho um recado da minha mã e para você, senorita. Ela gostaria de ver Felipe. Rafael deixou cair os braç os e olhou para Ric. Cherry virou-se mais lentamente, tentando nã o demonstrar a perturbaç ã o que a chegada inesperada havia provocado nela. Enfrentou corajosamente a ironia dos olhos dele, mas antes que pudesse dizer alguma coisa Rafael falou, um pouco nervoso: — Ah, que pena! Justamente agora que a conversa estava começ ando a ficar interessante. Mas podemos nos encontrar mais tarde, nã o é, Cherry? Ric, você se importa que eu tome algum tempo de Cherry? Acho-a muito simpá tica, muito compreensiva... tã o suave, tã o gentil, tã o bonita! — Tenho certeza que acha — respondeu Ric, seco. — Se está assim tã o ocupada esta tarde, senorita, posso levar Felipe para minha mã e. Ela quer apresentar o neto aos amigos. Com a mesma fria insolê ncia com que a havia tratado no primeiro dia, agarrou o carrinho e empurrou-o decididamente em direç ã o à casa. O irrepreensí vel Rafael se admirou. — Por Dios! Onde vamos parar? Jamais imaginei que fosse ver o patrã o de Vallera empurrando um carrinho de bebê como uma babá! Mas Cherry nã o achava nada divertido. O tom de desprezo de Ric a havia magoado, e ela começ ou a correr atrá s dele, decidida a explicar a situaç ã o entre Rafael e ela. Naquele momento surgiu Francisca, provavelmente à procura de Ric. Ao vê -lo empurrando o carrinho, seus olhos brilharam de raiva, e, numa enxurrada de palavras, começ ou a repreendê -lo pela indignidade daquela atitude. Tentou tirar o carrinho dele, mas com algumas poucas palavras Ricardo lhe ordenou que o deixasse em paz. Como ela insistisse, ele lhe deu um empurrã o, derrubando-a sobre os arbustos. Quando Francisca se levantou, Ricardo já havia desaparecido. Cherry ouviu a gargalhada sonora de Rafael. Sentia muita vontade de rir també m, mas alcanç ar Ric era mais importante. Sem se importar com o olhar furioso de Francisca, passou por ela e seguiu na direç ã o de Ric. Alcanç ou-o no centro do jardim. — Espere, por favor — pediu, colocando a mã o sobre a alç a do carrinho. Ele diminuiu o passo, mas nã o parou, contornando a fonte de bronze. — Eu mesma levo Felipe para dona Bianca — disse Cherry. —: E posso explicar o que aconteceu. Nã o é o que está pensando. — E o que é que eu estou pensando? — perguntou, frio. —. Nã o sabia que ler pensamentos fazia parte dos seus talentos. — Está pensando que... que... — Diante do ar irô nico de Ricardo, a natural tranqü ilidade de Cherry desapareceu. — Deixe-me ajudá -la — disse ele. — Está se sentindo culpada porque eu a surpreendi abraç ando um dos convidados de minha mã e. Por trá s da ironia, Cherry compreendeu a condenaç ã o. Como patrã o, ele tinha o direito de estar aborrecido com o que havia visto e de pedir explicaç õ es, mas ela també m tinha o direito de se justificar. — Foi você mesmo quem me disse, uma vez, que um abraç o só tem verdadeiro significado quando queremos que tenha um significado. — Exatamente. E o que significou esse abraç o? — Uma expressã o de gratidã o por algo que fiz por Rafael. Sendo uma pessoa-muito espontâ nea, foi essa a maneira que ele encontrou para demonstrar seu agradecimento. — Parece que todas as vezes que ele nos visita tem alguma coisa para agradecer. Espero que ele esteja tornando sua aventura boliviana mais interessante. Por que nã o toma nota do nú mero de homens que a abraç aram neste paí s? Assim terá muito que contar à s suas amigas. Como ele devia julgá -la mal! Lembrando-se da maneira como havia correspondido aos abraç os de Ricardo, Cherry sentiu que o sangue lhe subia ao rosto. Com certeza ele imaginava que ela havia abraç ado Rafael com a mesma intensidade, o que era uma injustiç a. — Imagino que este deva ser um dos seus mé todos, nã o é? Sua lista de mulheres já deve conter algumas centenas — disse Cherry. Ele parou tã o repentinamente que o carrinho deu um salto e Felipe começ ou a chorar. — Veja o que fez agora! — exclamou Cherry. — Nã o, quem fez foi você — retrucou ele. — E saiba que observaç õ es como essa nã o ajudam a resolver a situaç ã o. — Estava só tentando retribuir desprezo com desprezo — respondeu, a voz trê mula, tentando esconder as lá grimas. — Seu desprezo é indelicado e injusto. Nã o faç o listas nem contas. Nã o sou desse tipo. Sua reaç ã o mostra como me conhece pouco. — O que pretende fazer agora? Ir embora de Vallera? perguntou, com voz repentinamente suave. — Nã o — murmurou Cherry, surpresa com a mudanç a de atitude. — Entã o, ouç a. Deve concordar comigo que, como patrã o, tenho certa autoridade sobre você. — Concordo. — Concorda també m que, se nã o exercer essa autoridade de vez em quando, nã o serei um bom patrã o? — Sim. — Esta tarde eu a surpreendi numa situaç ã o que poderia chocar minha mã e ou os convidados. Confesso que acredito que Rafael teve mais culpa que você. Mas, para falar a verdade, nã o vi qualquer reaç ã o da sua parte. Fez uma pausa, esperando que ela respondesse, mas ela apenas mordeu os lá bios, lutando com um sentimento completamente novo. Seria essa a mesma Cheryl Hilton de sempre, livre e independente, igual a qualquer homem? —Nã o quis chamar sua atenç ã o na frente de Rafael, por isso trouxe o bebê comigo. Sabia que você me seguiria. Seria muito mais fá cil para nó s dois se... — Calou-se ao ouvir o ruí do de uma pessoa que se aproximava. Era Francisca. — Leve Felipe até o pá tio, por favor — ordenou Ricardo, brusco. — Diga a mamã e que estarei com eles daqui a pouco. — Afastou-se com passos seguros, e Cherry encaminhou-se ao pá tio. Mais tarde, quando colocava Felipe no berç o, Rafael foi vê -la. — Vim me despedir. — Mas pensei que fosse ficar até domingo — exclamou Cherry. — Meu pai nã o está se sentindo bem e quer voltar a Sucre. E eu... — Deu de ombros e sorriu, meio sem jeito, — Acho que nã o sou muito bem-vindo aqui. — Quem fez você pensar assim? —Duas pessoas. Ric, por razõ es ó bvias. E Francisca. Estava furiosa com você por ter permitido que o heró i dos sonhos dela empurrasse um carrinho. — Ela é uma tola! Como se houvesse alguma desonra em empurrar um carrinho. Os homens fazem isso com freqü ê ncia no meu paí s. Meu pai empurrava meu carrinho e sentia muito orgulho disso. — Isso é na Inglaterra. Aqui estamos na Bolí via, e a imagem que Francisca fazia de Ric como um heró i forte e orgulhoso caiu por terra. — Meu Deus! Se Ricardo nã o tomar cuidado, aquela moç a vai arruinar a vida dele — suspirou Cherry. — Disse a ela que a culpa foi minha, que ele estava aborrecido com você e por isso levou o carrinho. Disse també m que ele nos surpreendeu abraç ados. — O que ela disse? — Nada. Foi o que ela fez que me levou a pensar que seria aconselhá vel ir embora. Ela me esbofeteou. — Nã o! — Cherry começ ou a rir. — Tanta confusã o por tã o pouco? — Divertido, nã o? Mas é tí pico dos bolivianos. Somos um povo temperamental. Ric, Francisca e eu reagimos emocionalmente. Desculpe, Cherry, acho que tornei as coisas mais difí ceis para você. Por um instante, lá no jardim, esqueci que você aqui é uma empregada. — Nã o se preocupe. Amanhã a tempestade já terá passado e todos estarã o de bom humor outra vez. — Assim é que se fala — concordou Rafael, outra vez alegre. — Amanhã teremos uma nova pá gina diante de nó s, e todos os nossos erros terã o sido esquecidos. Essa é mais ou menos a histó ria do nosso paí s. Tudo aconteceu conforme ele previa. No dia seguinte, Francisca] agiu como se nada de anormal houvesse acontecido e nã o se referiu ao incidente nem uma vez. Depois que os convidados foram embora, ela subiu até o quarto de Felipe para contar a Cherry que havia sido i convidada, bem como Ricardo, para uma festa na casa dos Monte] no final da semana. — Tia Bianca quer que você vá conosco — anunciou, alegre. Pode encontrar Rafael e danç ar com ele. — Por que a fiesta? É o dia de algum santo? — Nã o. É a celebraç ã o da independê ncia do paí s, que se libertou da Espanha sob o comando de Bolí var, em 1825. O nome da cidade de Sucre, foi escolhido em homenagem a um comandante-em-chefe da Bolí via. També m a Virgem de Guadelupe participa do desfile, usando muitas jó ias. — Quem lhe ofereceu as jó ias? — perguntou Cherry. — O povo de Sucre, como agradecimento pelas graç as recebidas e pelos milagres realizados. Pode me ajudar a fazer um vestido novo para a fiesta? Surpresa, mas satisfeita, Cherry concordou imediatamente. No dia seguinte, quando Cherry levou Felipe para a visita diá ria à avó, dona Bianca perguntou se Francisca havia mencionado a festa. — Sim, mencionou — respondeu Cherry, aceitando uma xí cara de chá que a patroa lhe oferecia. — Gostaria que você fosse. Vou lhe dar um feriado; você merece. Depois do feriado, Ric vai decidir se você deve continuar conosco. — Quem vai cuidar de Felipe, se eu for à festa? — perguntou Cherry. — É sempre nele que você pensa primeiro! Ê um menino de sorte por tê -la como babá. Nem eu, nem Marita, nem Juana, a lavadeira, iremos à festa. Ela entende muito de crianç as, por isso nã o se preocupe. Vá e divirta-se. — Gradas, sehora. — De nada, senorita. Seu castelhano está melhorando. Logo estará falando como uma boliviana. Está gostando daqui? — Muito. — Ó timo. Você, com sua serenidade, contrabalanç a bem nossa natureza exaltada. Pequenos aborrecimentos nã o a alteram. Arthur també m era assim. Por ser tã o calmo, muitos o consideravam frio e sem sentimentos. Mas sei que era capaz de sentimentos tã o profundos quanto os meus. Só os acontecimentos de pequena importâ ncia o deixavam indiferente. Cherry olhou para um conjunto de fotografias arranjadas sobre uma mesa pró xima. Numa delas, o general Pablo Benitez, moreno e simpá tico; ao lado, um jovem muito parecido com o general, cuja boca generosa e apaixonada nã o deixava dú vidas quanto ao parentesco com dona Bianca. Era Juan Benitez, o belo e fogoso pai de Felipe. A terceira foto mostrava o rosto longo e os olhos maliciosos de Arthur Somervell; a quarta mostrava um Ric mais jovem e mais alegre, ainda nã o tã o desiludido com a vida. — Bonitos, os meus homens, nã o acha? — perguntou dona Bianca, com um sorriso. — Especialmente o mais jovem. — Suspirou. — Embora seja ele o mais difí cil de entender. — Ele devolveu à senhora o medalhã o que o sr. Diaz me entregou? — perguntou Cherry. — Nã o, nã o entregou. E també m nã o tem necessidade de entregar, porque é dele, para usar até a morte. Era costume na famí lia Matino oferecer um medalhã o de prata com a figura da pantera a cada novo membro masculino da famí lia. Meu pai possuí a um, q mesmo que entreguei a Ric quando ele fez dezoito anos. — Mas se o medalhã o pertence ao sr. Somervell, por que foi encontrado com Felipe? — perguntou Cherry. — Boa pergunta — concordou dona Bianca. — Gostaria muito de saber, mas acho difí cil, porque Ric sempre teve pavor de interrogató rios. — Desculpe minha curiosidade, senora, mas estava aqui quando a mã e de Felipe visitou Vallera? — Nã o. Infelizmente estava em Buenos Aires, na casa de amigos. Quando voltei, ela já havia ido embora. Por que pergunta? — Gostaria de saber como ela era. — També m tenho essa curiosidade. Tudo que sei é que Francisca nã o gostava dela, mas a opiniã o de minha sobrinha é um pouco suspeita, — Dona Bianca sorriu com indulgê ncia. — A ú nica explicaç ã o que Ric me deu foi que " era uma mulher", como se isso explicasse tudo. — Para ele, talvez explique. — Talvez, mas eu gostaria de saber maiores detalhes. Suspeito que Ric nã o gostava dela, embora tenha sido ele quem a convidou. para visitar Vallera. Entã o o misté rio permanecia. Se Ric nã o havia confiado na mã e, por que confiaria nela? O melhor era esquecer o assunto. Foi o que tez. Os dias foram passando, ensolarados e iguais, sendo o ú nico divertimento de Cherry ajudar na confecç ã o do novo vestido de Francisca. No dia da fiesta, depois de levar Felipe até dona Bianca, Cherry foi encontrar Ric e Francisca no pá tio. Estavam ambos parados ao lado da perua, Francisca muito entusiasmada, falando muito, e Ric parecendo nã o ouvi-la. Gomo se sentisse a aproximaç ã o de Cherry, Ricardo olhou na direç ã o dela. Seus olhares se encontraram por um instante, mudos poré m significativos. Percebendo que havia algué m atrá s dela, Francisca parou de falar e virou-se. Ric se aprumou, ajeitou o chapé u e abriu a porta do carro — Sente-se atrá s, Cherry — disse Ric, os olhos alegres como h muito tempo nã o acontecia. Claro!, pensou Cherry, estava de bom humor porque teria um dia de folga e poderia flertar e danç ar com muitas moç as bonitas na fiesta. Francisca sentou na frente, ao lado de Ric, e falou sem para: todo o tempo, apontando cada casa e dizendo os nomes dos atuais e dos antigos proprietá rios de cada uma. Já pró ximos da cidade, uniram-se a um longo e lento cortejo de carros que se dirigiam à festa. Pararam diante de uma casa colonial, em cujo pá tio cresciam pessegueiros e laranjeiras em profusã o. Foram recebidos por Josef dei Monte e pela esposa, que se movimentavam entre dezenas de convidados. — Cherry! Que bom que você veio! Rafael envolveu-a num abrazo, sob o olhar desaprovador de Ric, que logo se viu envolvido num abrazopor Teresa. — Por aqui — indicou Rafael, guiando-a para fora do pá tio. — Vamos até a praç a. Alguns amigos meus estã o guardando cadeiras para nó s num lugar de onde se avista bem o desfile. — Como sabia que eu viria hoje? — perguntou Cherry. Já na rua, uniram-se a um grupo de pessoas risonhas e falantes. — Teresa me contou. Como já tenho outros compromissos para hoje, quero que você me acompanhe. Mais tarde podemos voltar à casa dos dei Monte para o baile. Quer vir comigo? — Claro. Só espero que o sr. Somervell e Francisca compreendam; afinal, fui convidada por eles. — Sei disso, Cherry, mas para mim é uma boa oportunidade de chamar a atenç ã o de Francisca sem medo de ofender dona Bianca ou Ric. Nos anos anteriores, eu vinha à casa dos dei Monte na esperanç a de danç ar com ela, mas era completamente ignorado. Hoje tenho uma alternativa, e talvez ela sinta a minha falta quando perceber que nã o estou lá e que Ric está preocupado em flertar com Teresa ou com alguma outra moç a. — Pode ser que tenha razã o. Santo Deus, que multidã o! Cherry foi rodeada por um grupo alegre de quechaque cantava e danç ava, e quase perdeu o equilí brio. Rafael colocou os braç os ao redor da cintura dela, para segurá -la. — É melhor ficarmos de mã os dadas — ele sugeriu. — Nã o quero perdê -la, agora que tive tanto trabalho para encontrá -la. — E eu nã o gostaria de me perder porque nã o sei voltar à casa dos dei Monte — respondeu rindo, deixando que ele segurasse sua mã o. A praç a borbulhava de gente. Ao redor da magní fica catedral barroca, enfeitada com flores, folhas e frutas, espalhavam-se os reflexos coloridos dos vitrais. Os lugares reservados para eles ficavam bem em frente ao pré dio da Prefeitura Municipal. Rafael apresentou-a aos amigos, um casal jovem e simpá tico. — Esta é a Assemblé ia — murmurou, apontando para um edifí cio ao lado da praç a, em cujos balcõ es acotovelavam-se centenas de pessoas. — Daquele lugar, Simon Bolí var leu a declaraç ã o de independê ncia. Todos os anos essa declaraç ã o é lida novamente, no dia da celebraç ã o da independê ncia. Enquanto a declaraç ã o era lida, Cherry observava a multidã o. A maioria era de quecha, vestidos a cará ter para a ocasiã o; muitos usavam chapé us achatados como fô rmas de pudim; outros ostentavam espé cies de capacetes feitos de ferro, ornamentados com penas e contas que brilhavam ao sol. Seus ponchos vivamente coloridos davam um toque especial ao conjunto. As mulheres nã o perdiam para os homens em maté ria de cores: suas saias amplas eram na maioria vermelhas, e os xales, coloridos: nos chapé us altos e brancos, brilhavam contas e ossos coloridos. Um murmú rio percorreu a multidã o: era o desfile que começ ava. Figuras enormes e fantá sticas, usando má scaras pintadas de vermelho, branco e negro danç avam e cantavam, caminhando adiante dos quadros representando a histó ria da Bolí via. O povo seguia atrá s, danç ando, cantando e tocando charangose flautas. Da praç a central, Cherry seguiu com Rafael, Forges e Jenny, os amigos de Rafael, até a casa dos pais de Forges, para a principal, refeiç ã o do dia. De lá, Rafael levou-a à casa de outros amigos, pois, naquele dia, todos mantinham as casas abertas. Por toda parte havia mú sica, danç a e alegria; assim que a noite caiu, os fogos de artifí cio começ aram, explodindo num encantamento de luzes e cores. Quando voltaram à casa dos dei Monte, encontraram-na toda iluminada, vibrando ao som dos violõ es e charangosque animavam o baile. Cherry olhou em torno, à procura de Francisca e Ric. Para sua surpresa, ele nã o estava na pista de danç a, e Francisca estava sentada a um canto, entre outras mulheres, provavelmente mã es de outras moç as que danç avam. — Ela parece furiosa — murmurou Cherry para Rafael — É melhor eu ir falar com ela. — Si, está furiosa — concordou Rafael. — Será que é por minha causa? — perguntou, esperanç oso. — Ou é por que Ric nã o está aqui? Estranho que ele nã o esteja danç ando com Teresa. Vou perguntar a ela o que está acontecendo por aqui e daqui a pouco me encontro com você e Francisca. Cherry concordou e começ ou a abrir caminho entre os danç arinos para chegar até Francisca. Ao passar por um dos arcos que separavam o salã o de danç as de um outro cô modo, uma mã o agarrou seu braç o. — Onde esteve todo o dia? — perguntou Ric. També m estava furioso, e sua raiva se revelava nã o só no rosto contraí do, mas també m na forç a com que a segurava. — Estive vendo a procissã o com Rafael e visitando amigos dele. Tive um dia maravilhoso, e você? — respondeu, serena. — O que é que você acha? — perguntou, sarcá stico. — Venha danç ar comigo. É a cueca. Percebendo que Francisca os observava, Cherry tentou se afastar, mas ele a impediu. — Nã o tenho um lenç o branco — desculpou-se Cherry. — Sempre trago um de reserva para ocasiõ es como essa — respondeu Ric, frio, tirando do bolso um lenç o branco. — Aqui está. — Francisca nã o vai gostar de ver você danç ando comigo — disse Cherry, recebendo como resposta uma imprecaç ã o em espanhol. — Nã o procure mais desculpas, Cherry. Francisca nã o sabe danç ar tã o bem quanto você. E depois, nã o negue que está louca de vontade de danç ar. Venha! Talvez mais tarde se arrependesse de ter cedido, mas naquele momento Cherry nã o resistiu ao apelo de Ricardo e acompanhou-o até a pista de danç a. Em Sucre, cidade mais baixa que La Paz, a cueca era danç ada mais lenta, e os casais danç avam mais de uma vez, sempre pedindo aos mú sicos que recomeç assem a mú sica outra e outra vez. Depois de algum tempo, o clima criado pelos instrumentos, pelo sapatear de pé s no chã o, pela voz envolvente do cantor e pelos risos dos danç arinos era tã o envolvente, que nada mais importava, a nã o ser a danç a e o flerte. Avanç ar, recuar, perseguir, recuar, e, finalmente, o encontro. Quando a mú sica finalmente chegou ao fim, Cherry se apoiou no peito de Ricardo, que a abraç ava com firmeza. Quase sem fô lego, o rosto afogueado, o coraç ã o batendo loucamente, ela esqueceu de tudo, até dos olhos que os observavam. — Vamos ao jardim tomar um pouco de ar fresco e ver os fogos de artifí cio — sussurrou Ric no ouvido dela. Cherry nã o fez objeç õ es. O ar da noite estava suave e fresco. A lua se filtrava atravé s das folhas das á rvores, formando rendados de sombra e luz no chã o. À s vezes, à luz das estrelas juntava-se o brilho colorido dos fogos de artifí cio. Cherry caminhava em silê ncio, gozando o encanto daquele momento. Mas ao lembrar da fú ria que vira nos olhos de Francisca, tremeu. — Você está com frio — disse Ric. — Vamos nos sentar no abrigo do jardim. Tenho muita coisa para lhe dizer. — Nã o — respondeu Cherry, parando de repente. — Acho que devemos voltar, antes que Francisca note nossa ausê ncia. — Nã o me importo que ela note — retrucou Ric, frio. — Por que você se importaria? . — Porque sei que ela tem esperanç as de se tornar sua esposa um dia. — E daí? O que isso tem a ver com o que tenho para dizer a você? O tom frio de Ricardo a silenciou. Caminharam pelo gramado até um abrigo coberto, sustentado por pilares, em cujo centro se encontrava uma está tua de Vê nus, a deusa do amor. Sentaram num dos bancos ao lado da está tua. —Quero conversar a respeito da sua permanê ncia em Vallera como babá de Felipe. — Nã o, aqui nã o — protestou Cherry. — Aqui e agora — ele insistiu, impedindo-a de se levantar. — Mas o prazo combinado só termina amanhã — argumentou Cherry. — Nã o sou obrigada a dar uma resposta antes disso. A proximidade de Ricardo já provocava intensas reaç õ es em Cherry, cujo coraç ã o batia, acelerado, sem que ela pudesse daquela vez usar a desculpa da altura. — Algumas horas nã o fazem muita diferenç a — murmurou ele, persuasivo. — A esta altura já devia saber se gosta de Vallera e se! está disposta a viver lá conosco. Tem tido notí cias dos seus pais? O interesse dele a desarmou. — Sim, tenho. — Suponho que contou a eles a proposta que recebeu e pediu ai opiniã o deles. — Sim. — E o que foi que eles disseram? — Que devo aceitar, se for o que desejo. Claro que nã o agrada ai eles a idé ia de terem a filha tã o distante, mas nunca foram pais possessivos ou dominadores. — Você tem sorte — comentou, com indiferenç a. — Vai ficar Cherry? Ele se aproximou mais, e seus ombros se tocaram. Tinha sido uni erro segui-lo até aquele lugar româ ntico, ao lado da deusa do amor; sob a luz macia da lua. O desejo de que ele a beijasse vibrava em cada nervo de Cherry; o sentimento era tã o intenso que nã o lhe permitia falar. — Algum problema? — perguntou Ric, gentil. — Por que nã o responde? Tem medo de me dizer que nã o gosta de Vallera? É um lugar muito solitá rio para você? Sei que a vida que leva aqui é bem diferente da que levava em Londres: nã o há luzes, teatros, movimento, mas em compensaç ã o temos fiestascom mú sica, danç a e boa companhia. — Nã o, nã o é isso — interrompeu-o, perturbada; nã o queria que ele a julgasse igual a Elizabeth, que havia mudado de idé ia porque nã o queria viver em Vallera. — Adoro Vallera... Nã o conseguiu dizer mais nada. Ele se inclinou e a beijou na boca. Surpresa, apesar de desejar aquilo ardentemente, Cherry se colocou na defensiva. — Por que fez isso? — perguntou, trê mula. — Um gesto espontâ neo. Digamos que estava expressando minha gratidã o por você ter dito que adora Vallera — respondeu, rindo. — E vou agradecer outra vez. Cherry se afastou, encolhendo-se contra a fria pedra do banco. — Nã o acha que está sendo um pouco hipó crita? — Sabia que nã o resistiria a um segundo beijo; sabia que se ele a beijasse naquele instante seus sentimentos mais profundos se revelariam. — Está bem, sou — ele murmurou bem-humorado, aproximando-se ainda mais. Para impedir que ela fugisse, segurou-a pela garganta e tornou a beijá -la, dessa vez de forma diferente. Um beijo destinado a inflamá -la, a cortar suas resistê ncias. A princí pio, Cherry tentou se manter passiva, mas o sentimento falou mais forte e ela se entregou completamente, retribuindo paixã o com paixã o. Envolvidos como estavam no fogo que os consumia, nã o perceberam o ruí do dos arbustos pró ximos. — Ric! Sei que você está aí no abrigo. Teresa me disse. A voz de Francisca, alterada, praticamente os paralisou. Esperaram em silê ncio que ela tornasse a falar. — Nã o adianta fingir que nã o está aí. Estou vendo você. Ric se levantou e saiu do abrigo. Cherry continuou sentada no escuro, sufocada de ansiedade. — O que é que você quer? — perguntou Ric, frio. — Precisa estar sempre me seguindo como um cachorrinho? Ou melhor, como uma esposa ciumenta? — Quero ir para casa — pediu Francisca, humilde e quase em lá grimas pelo desprezo que havia na voz dele. — Já esqueceu de que a srta. Hilton precisa voltar para cuidar de Felipe durante a noite? Tia Bianca nã o vai poder atendê -lo, se ele acordar. — É verdade — disse Cherry, se levantando. — Já devem ser quase dez horas. Os olhos de Francisca brilharam na escuridã o, e só quando saiu do abrigo e foi iluminada por um raio de luar é que Cherry percebeu que a mocinha ciumenta nã o havia se dado conta de que Ric nã o estava sozinho. — Ah! Entã o é você! — gritou Francisca, triunfante. — Sabia que nã o podia estar longe. Nunca me enganou com aquela conversa de liberdade e independê ncia. Quer um homem, como a outra inglesa! Ela ao menos era mais honesta que você e nã o se escondia atrá s de uma falsidade! — Virou-se para Ric, furiosa, a voz estridente. — Nã o percebe o que ela é? Nã o vê que está usando Rafael para conquistá -lo? Veio direto dos braç os dele para os seus. Ela nã o passa de uma... — Cale a boca, ou vai se arrepender de ter vindo a Sucre hoje. — A voz de Ric, apesar de suave, escondia uma tal ameaç a que Cherry tremeu. — Ai, ai, ai! — gemeu Francisca, cobrindo o rosto com as mã os. — Já me arrependi... por tê -la convidado, por tê -la deixado ficar em Vallera. Tive um dia horrí vel hoje, e tudo por causa dela. Cherry achou que já era hora de falar por si mesma. Estava cansada das insinuaç õ es de Francisca. — Está enganada, senorita. Nã o estou tentando enganar ningué m, muito menos o sr. Somervell. Ele é meu patrã o, e nã o tenho intenç ã o de alterar nosso relacionamento. — Sentiu que sua voz tremia, quando percebeu que Ric se aproximava e a olhava com intensidade, como se tentasse ler de perto a expressã o do rosto dela. — Quanto a Rafael... bem, nã o posso fazer nada se sua mente é tã o estreita que nã o percebe os sentimentos dele. Virou-se e caminhou na direç ã o da casa, a mente num turbilhã o, o coraç ã o despedaç ado. Tinha mentido. Tinha negado os pró prios sentimentos. Tinha mentido porque tinha medo do amor.
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