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CAPÍTULO IV



 

Afastaram-se do hotel por uma ruazinha tortuosa, com casas de paredes altas e janelas gradeadas. Os sinos tocavam, chamando o povo para a missa, e famí lias vestidas com suas roupas coloridas de domingo dirigiam-se à catedral.

A ú ltima visã o que Cherry teve de Potosi foi um amontoado de telhados vermelhos e torres brilhantes aos pé s de Cerro Rico, a montanha onde a prata um dia existiu em abundâ ncia. Depois a cidade desapareceu, restando apenas a estrada que serpenteava entre rochas imensas, muitas vezes beirando profundos precipí cios. Felizmente o carro era forte e resistente, pois um veí culo comum nã o passaria por ali.

À s vezes o cená rio mudava, tornando-se mais suave e ondulante, com pequenos rios deslizando atravé s de campos tranqü ilos, onde, de quando em quando, viam-se nativos tocando charangose cantando.

— Domingo é dia de feira em Betanzos — explicou Ric — Os quechaestã o sempre cantando, onde quer que estejam. Sã o os poetas da Bolí via.

Mais adiante, cruzaram com grupos de í ndios a pé, conduzindo rebanhos de carneiros. Os ponchos brilhantes dos homens e as saias ondulantes das mulheres enfeitavam com cores variadas a paisagem marrom. Aquelas pessoas transmitiam uma alegria e uma vitalidade inexistente entre os impassí veis e distantes í ndios do altiplano.

Betanzos vibrava de ruí dos e movimento. Na praç a central, mulheres quechavendiam suas mercadorias, agachadas no chã o. No hotel, Ric foi saudado com alegria, mas Cherry, que nã o foi apresentada, sentiu que era olhada com suspeitas pelo proprietá rio, pela esposa dele e por outros hó spedes que se encontravam no refeitó rio. Enquanto dava a mamadeira a Felipe, ela notou que era alvo dos comentá rios gerais. Provavelmente estavam tentando adivinhar qual o relacionamento dela com Ric e chegando à s mais variadas conclusõ es.

Alé m da cidade, estendiam-se vales ensolarados e colinas suaves, campos dourados e enormes extensõ es de terra recé m-aradas. Acá cias copadas proporcionavam sombra à s margens tranqü ilas dos rios; bronze, ocre, areia e sé pia eram as cores predominantes.

— Estamos quase chegando — disse Ric, satisfeito.

Cherry olhou para ele. O sol brilhava sobre a mecha prateada e sobre a pele bronzeada, como se ele fosse parte da terra por onde passavam: alto e moreno, transmitia uma impressã o de forç a; os mú sculos flexí veis e longos tinham qualquer coisa de pantera.

Dentro em pouco já nã o estariam mais a só s, e esse pensamento provocou uma estranha tristeza em Cherry. Breve estaria conhecendo novas pessoas e enfrentando novos desafios. Outra vez o relacionamento deles se modificaria, provavelmente tornando-se mais tenso em conseqü ê ncia das pressõ es, ou talvez mesmo se desintegrando.

Ela nã o queria que isso acontecesse. Queria, ao contrá rio, com uma intensidade incomum, que continuassem pró ximos, conhecendo-se mais e mais. Perturbada pela intensidade desses sentimentos, Cherry concentrou-se na paisagem lá fora, fingindo estar absorta na contemplaç ã o do cená rio.

O veí culo saiu da estrada principal, a melhor de quantas haviam percorrido durante toda a viagem, e tomou uma outra, secundá ria e mais estreita. Entre as á rvores frondosas Cherry avistou grupos compactos de casas, gado pastando, tranqü ilo, grupos de ciprestes formando enormes manchas verdes sobre o solo marrom.

Uma casa de paredes brancas e telhado de terracota brilhante surgiu à frente deles. Rodeando toda a casa, uma varanda com pilares de pedra, onde cresciam trepadeiras muito verdes. De um lado, fileiras de á rvores e um pá tio pavimentado, do outro, as mais variadas á rvores frutí feras dispostas em perfeita simetria.

No pá tio central, em torno do qual a casa havia sido construí da, cresciam flores em profusã o, subindo pelas paredes brancas e caindo da galeria superior. No centro, uma ré plica da fonte de bronze que Cherry havia admirado na casa de La Paz lanç ava um suave brilho dourado sob a á gua que jorrava.

— Que lugar bonito! — O comentá rio escapou com espontaneidade, enquanto Cherry descia do carro. — Jamais imaginei que existisse um lugar assim... — Calou-se, embaraç ada com o pró prio entusiasmo.

—... Na Bolí via, depois dos lugares por onde passou — completou Ric seco, apoiando-se ao veí culo e sorrindo para ela. — Mas existem outras mansõ es como esta e outras fazendas no caminho de Sucre. Talvez nã o em condiç õ es tã o boas quanto Vallera, mas leve em consideraç ã o que nem todos os donos sã o perfeccionistas como Arthur Somervell.

A observaç ã o um tanto fria e objetiva parecia revelar certo ressentimento de Ric em relaç ã o ao pai.

— Deve admirar muito a obra realizada por seu pai, caso contrá rio nã o teria se decidido a continuá -la — objetou Cherry.

Olhou-a com ironia. As mã os nos bolsos, Ric se apoiava no carro. Estavam sozinhos no pá tio ensolarado, e o silê ncio era quebrado apenas pelo gorjear dos pá ssaros que cortavam o ar perfumado.

— Nã o foi assim tã o simples — murmurou Ric — Resolvi prosseguir o trabalho dele porque gosto de Vallera e porque queria viver aqui. Nã o por admirar as conquistas do meu pai. Houve uma é poca em que nã o estava muito certo do que eu era, nem do que queria ser.

— Compreendo. Estava passando por uma crise de identidade. Nã o é um acontecimento raro entre os jovens, especialmente quando os pais pertencem a etnias diferentes.

— Fico satisfeito por saber que meu comportamento nã o é tã o incomum. Meu pai achava que havia gerado uma espé cie de monstro e eu me comportava muito mal.

— Como uma ovelha negra, como se tivesse um parafuso solto — brincou Cherry. A sú bita compreensã o dos sentimentos dele provocou nela uma emoç ã o nova, um desejo de abraç á -lo. Como se percebesse isso, ele ficou meio confuso.

— É verdade. E Fidel. foi testemunha do meu comportamento durante os anos em que estudamos juntos na universidade. Depois de uma acidentada carreira de estudante, consegui me formar e fui para a Europa, onde levei uma vida de prazeres, até que um dia acordei e enfrentei outra crise.

— O puritano que há em você se rebelou...

— Como você é perspicaz! — zombou Ric.

— O que fez entã o?

— Fiz uma visita aos parentes ingleses, que possuem uma fazenda na Inglaterra. Lá viviam os irmã os de papai, o mais novo de trê s irmã os. Certo dia, observando o gado da fazenda, pensei em Vallera. E, de repente, descobri quem eu era e o que seria: um fazendeiro na Bolí via.

— E voltou para cá?

— No momento exato. A saú de de meu pai estava piorando dia a dia e minha mã e nã o era uma fazendeira. Ela ficou feliz por ter algué m para tocar o trabalho da fazenda, e, como meu pai estava doente, pude fazer as coisas a meu modo. Desde que ele morreu, muitas vezes lamentei o tempo perdido e me arrependi de nã o ter dado atenç ã o aos conselhos dele. — Deu de ombros. — Mas nã o adianta lamentar. Nã o nos dá vamos bem um com o outro. Coisas que acontecem.

— Nas melhores famí lias — tentou consolá -lo e ele pareceu surpreso.

— Você é muito compreensiva, Cherry — disse, suave.

A proximidade das suas almas só poderia se expressar de uma maneira, naquele instante. Mas foi impossí vel, pois ouviram passos vindo na direç ã o deles. Uma garotinha se aproximou correndo, os cabelos negros agitados pelo vento. Vestia jeans e uma camiseta branca, e tinha a pele dourada como a de Felipe. Atirou-se nos braç os de Ricardo e foi beijada com efusã o. Depois começ ou- a falar sem parar.

Felipe deu um gritinho. As perguntas da menina pararam como por encanto e seus olhos enormes se arregalaram ainda mais.

Quienes? — perguntou.

Enquanto Ricardo explicava, Cherry tirou Felipe do cestinho e o ergueu nos braç os. Adivinhou que a garotinha era Marita e que já estava na hora de apresentá -la ao irmã ozinho.

— Marita nã o compreende muito bem inglê s. Vai ter que falar com ela em castelhano — disse Ricardo, apresentando Cherry à menina. — Já disse a ela quem é Felipe e nã o ficou muito surpresa. Mamã e a preparou bem. — Algué m se aproximou e o rosto de Ricardo se iluminou com aquele ar brincalhã o. — Olá, Francisca! Como está? Sentiu saudades de mim, priminha?

Marita olhava para Felipe, um pouco assustada, acariciando o rostinho do irmã o com suavidade.

— Ele é bonitinho. Ele é meu. Meu irmã ozinho. Queria segurá -lo um pouquinho — pediu, em castelhano.

— Assim — explicou Cherry, tentando ignorar o abraç o trocado entre Ric e Francisca. A idé ia que fazia da srta. Sorata estava completamente errada: a mulher que vinha vindo com Ric em sua direç ã o tinha pouco mais de vinte anos.

Era pequena e esbelta, tinha a pele suave e macia, levemente rosada. Os cabelos abundantes, presos num pequeno coque atrá s da cabeç a, eram predominantemente negros, mas à luz do sol soltavam reflexos castanhos e ligeiramente avermelhados. Tinha olhos també m castanhos, emoldurados por longos cí lios negros. Sua beleza era completamente natural e estava em pleno desabrochar. Usava um vestido preto, muito curto, e meias trê s-quartos, també m pretas, evidentemente em sinal de luto pela morte do pai de Felipe.

Lanç ou um olhar de juvenil desprezo a Cherry, cuja aparê ncia tinha sofrido um pouco com a viagem, e em seguida olhou para Felipe, outra vez nos braç os de Cherry.

— Tem certeza de que é filho de Juan? — A voz de Francisca revelava um profundo desapontamento. Á spera e estridente, nã o combinava com a maciez do rosto.

— Tã o certo quanto possí vel, já que nã o pude perguntar ao pró prio Juan — respondeu Ric. — Ele se parece muito com Juan.

— Pode ser — concordou Francisca. — E a mã e do menino? É ela? — Apontou para Cherry.

— Nã o. — Os olhos de Ric cruzaram cornos de Cherry por um instante, divertidos. Com certeza estava se lembrando do primeiro encontro deles em La Paz, quando també m havia pensado que ela era a mã e. — Esta é a srta. Cherry Hilton, da Inglaterra. A mã e de Felipe també m morreu no acidente e a srta. Hilton é a babá encarregada de trazê -lo até aqui.

— Devia ter adivinhado. — Francisca sorriu com desprezo. — Juan foi um tolo de se deixar envolver por ela.

— Ele era meu irmã o e está morto — advertiu Ric, e Cherry sentiu a pele arrepiada ao reconhecer o tom ameaç ador. — Cuidado com o que diz dele na minha frente.

— Mas você nã o entende — insistiu Francisca, exaltada —, que se nã o fosse esse bebê toda a fortuna dos Matino seria sua? Tudo!

— Eu nã o faç o questã o de ficar com toda a fortuna dos Matino — respondeu, frio. — E agora, quer fazer o favor de levar a srta. Hilton até o quarto do bebê?

— Ainda nã o está preparado — disse Francisca, em tom de desafio.

— Por que nã o? — O tom de Ric era de ameaç a.

— Tinha certeza de que você nã o ia trazer o menino.

— Entã o entre e prepare o quarto. — Diante do tom firme, Francisca baixou os olhos.

Si, senor— murmurou com humildade, mas sem deixar de olhar para Cherry com ressentimento. — Por quanto tempo a srta. Hilton vai ficar aqui?

— Mais tempo do que você imagina. Isso nã o é da sua conta. Faç a o que eu disse — ordenou Ric, severo.

Depois de lanç ar outro olhar hostil a Cherry, Francisca se virou e entrou na casa, pisando duro.

— Marita vai levá -la até o salã o, onde poderá ficar com Felipe até que o quarto esteja pronto. Nã o vai demorar. É só tirar o pó, arrumar as camas e tudo estará preparado para você s — disse Ric

Embora falasse em inglê s, sua voz ainda guardava o tom autoritá rio deixando bem claro quem era o patrã o ali.

— Agora vou ver minha mã e — continuou —, para dizer que você e Felipe estã o aqui. Com certeza ela vai querer vê -lo. Esteja pronta para levá -lo até ela quando for solicitada,

A casa, por dentro, era escura e fria. O salã o era um cô modo imenso, de teto em forma de arco e amplas janelas dando para a varanda, mobiliada com peç as espanholas e inglesas, muito antigas. Enfeites de prata e objetos de finí ssima porcelana brilhavam nas prateleiras dos aparadores e, das paredes, pendiam pinturas originais, relí quias dos tempos em que a famí lia Matino se dedicava à mineraç ã o e ficava entre as mais ricas do paí s.

Estava conversando com a tí mida Marita, e tentando acalmar Felipe, que chorava, quando Francisca voltou.

— Os quartos já estã o prontos — anunciou. — Vou acompanhá -la até lá, assim pode me dizer se falta alguma coisa para o bebê. Pretende passar a maior parte do tempo lá, nã o é?

— Acho que sim — concordou Cherry, pedindo a Marita que fosse até o carro buscar a sacola de Felipe.

Marita saia correndo, feliz por poder ajudar o novo irmã o, e Cherry seguiu Francisca até a outra ala da casa imensa.

A parte reservada para as crianç as era um conjunto de salas unidas entre si. O quarto maior dispunha de cadeiras, uma mesa e um fogã o, onde a comida do bebê podia ser preparada. Trê s janelas se abriam para os campos dourados que se estendiam até uma colina pró xima. Alé m desse, havia mais dois quartos: um para o bebê e outro para a babá, servidos por um banheiro.

— Sempre cuidou de bebê s? — perguntou Francisca curiosa, observando a troca de fraldas.

— Sim. — Cherry sentiu a hostilidade na voz da moç a e decidiu que o melhor seria agir com prudê ncia.

— Você nã o é como a outra inglesa que Ric trouxe para cá. Ela queria se casar com ele — disse Francisca, sem procurar esconder o desprezo que sentia pelos ingleses.

— É mesmo?

— Está interessada?

— Por que me interessaria pela vida pessoal do sr. Somervell? — respondeu Cherry com indiferenç a.

— Ora! — exclamou Francisca, irritada. — Você está parecendo o tio Arthur: " Nã o é da sua conta, Francisca". Era o que ele costumava dizer quando eu fazia perguntas. Era frio e severo e foi ele quem fez Ric ir embora de casa. Tia Bianca chorou muito. Mas, depois que Ric voltou, ficou muito parecido com tio Arthur. Viu como ele falou comigo lá no pá tio? — Francisca deu de ombros, depois sorriu. — Mas é assim mesmo que deve ser: um homem deve ser o senhor na sua casa. É isso que esperamos dos nossos homens, que sejam fortes e superiores em tudo à s mulheres.

— Ouvi dizer — murmurou Cherry seca, pensando que para dominar a jovem e voluntariosa Francisca seria necessá rio um homem forte e decidido.

— Nã o concorda? — Notando o tom seco de Cherry, Francisca adivinhou a discordâ ncia. — Acredita na igualdade dos sexos? Já li alguma coisa sobre essas teorias. Pura bobagem! Os homens e as mulheres sã o criados de formas diferentes, entã o como podem ser iguais?

— Concordo com você até certo ponto — disse Cherry. — Mas, num mundo onde as mulheres competem com os homens pelos mesmos trabalhos, elas deviam ser tratadas da mesma fô rma e julgadas por suas habilidades, e nã o pelo sexo.

— Precisou competir com um homem por este emprego? — perguntou Francisca.

— Nã o, de jeito nenhum! — Cherry riu. — Só consegui este trabalho porque os homens nã o sabem cuidar de crianç as.

Francisca sacudiu a cabeç a.   

— Porque nã o seria apropriado que um homem cuidasse de bebê s.

— Sempre, nã o. Concordo com você. Mas alguns pais gostam de cuidar de seus filhos, à s vezes. Tenho um irmã o que levanta no meio da noite para atender o filho, para deixar a esposa descansar sem problemas.

— Quer dizer que ele troca as fraldas? — exclamou Francisca. — Que horror! Nã o consigo imaginar os homens que conheç o fazendo isso. Juan nã o teria feito isso por Marita.

— E o sr. Somervell? — perguntou Cherry. — Nã o acha que ele poderia gostar de cuidar do pró prio filho?

Mal terminou de falar, percebeu que havia cometido um erro. A expressã o da outra se alterou.

— Está interessada nele? Como a outra inglesa? Nã o acredito que o chame sempre de sr. Somervell, quando estã o a só s. Conheç o Ric muito bem e sei que ele gosta de flertar com todas as mulheres. Até mesmo com as babá s ou... comigo. É uma espé cie de jogo, que muitos homens gostam de jogar. A outra mulher o levou a sé rio... espero que nã o cometa o mesmo erro.

— Ele jamais me deu motivos para cometer tal erro — respondeu Cherry, fria.

— Ó timo. Nã o gostaria de ser obrigada a tornar sua estada aqui insuportá vel. A outra inglesa ficou enquanto eu permiti.

— O que quer dizer? — perguntou Cherry, admirada.

— Exatamente o que você ouviu. Ela foi embora porque eu nã o a quis aqui. Vou explicar melhor para você nã o ter dú vidas quanto à sua situaç ã o aqui. Um dia, eu vou casar com Ric e ser a senhora de Vallera. Já está tudo combinado.

Cherry engoliu em seco e se controlou para nã o dar uma resposta desagradá vel. Tentou adivinhar quem havia feito os arranjos, e suspeitou que fosse a pró pria Francisca.

Senorita, posso lhe garantir; nã o precisa se preocupar comigo — respondeu, suave. — Nã o fiz uma longa viagem até a Bolí via para encontrar um marido, mas para trazer um bebê. O casamento nã o é uma carreira que me interesse, no momento. Prefiro minha independê ncia. Nã o vou dizer que nã o apreciei a companhia do sr. Somervell durante a viagem... apreciei muití ssimo; mas nã o estou interessada nele como possí vel marido.

Achando que tinha se saí do muito bem e que havia acalmado as suspeitas de Francisca, Cherry virou-se para Marita e sorriu.

— Obrigada, srta. Hilton, por ser tã o direta — disse Francisca, satisfeita. — Estou bem mais aliviada. E agora, se me desculpa, tenho muito que fazer esta tarde. Até depois.

Francisca saiu do quarto, mas Maritaficou, aparentemente fascinada pelo bebê. Brincou um pouco com ele; no chã o, sobre um cobertor, e depois ajudou a banhá -lo.

Mais tarde, enquanto Cherry dava a mamadeira a Felipe, ainda observada por Marita, ouviu-se uma batida na porta. Instantes mais tarde, entrava uma velha senhora apoiada numa bengala, usando, um vestido negro, longo e ondulante. Trazia o cabelo preso no alto da cabeç a, num arranjo prateado que contrastava com o moreno intenso da sua pele. O nariz um tanto arrogante era suavizado pela doç ura e generosidade da boca e pelo azul suave dos olhos.

Mi abuela! — gritou Marita, se levantando e correndo até a avó. — Olhe, vovó! Aqui está Felipe, meu irmã ozinho.

A aparê ncia da senhora inspirava respeito, e Cherry instintivamente fez menç ã o de levantar.

— Nã o, senorita, fique sentada, por favor. Nã o é aconselhá vel perturbar um bebê enquanto ele mama. — A mulher falava fluentemente o inglê s. — Vou me sentar aqui, com você e Marita, para conversarmos um pouco. Sou Bianca Somervell.

— Muito prazer em conhecê -la — disse Cherry, tí mida.

Bianca Somervell podia descender de ricos potentados da mineraç ã o e mesmo de aristocratas ingleses, mas demonstrava uma simplicidade encantadora.

— Muito prazer em conhecê -la, Cheryl Hilton — disse dona Bianca, sentando-se na cadeira que Manta ofereceu. — Ric me contou que ficou impressionado com o carinho que demonstrou ao pequeno durante a viagem. Achei que devia vir pessoalmente expressar minha admiraç ã o por me trazer o bebê pessoalmente, a despeito de alguns esforç os para impedi-la de cumprir sua missã o.

Cherry levantou a cabeç a e encontrou dois olhos azuis, muito parecidos com os de Ric, até mesmo no brilho zombeteiro.

— Espero que perdoe o comportamento de Ricardo em La Paz — continuou dona Bianca. — Ele tem sua maneira pessoal de fazer as coisas, que nem sempre é a minha també m. Pedi a ele que fosse buscá -la porque minhas emoç õ es à s vezes me fazem agir impulsivamente. Quando Fidel escreveu, contando do bebê, respondi imediatamente que viesse trazê -lo ou que o enviasse por algué m de confianç a. Só mais tarde me fizeram ver que a crianç a podia nã o ser de Juan, mas aí já era tarde demais. Como Fidel já havia tomado todas as providê ncias, Ric veio em meu auxí lio e disse que iria pessoalmente até La Paz para ter certeza de que nã o está vamos lidando com um impostor. Ele lhe explicou isso?

— Sim — respondeu Cherry, um pouco seca. Imediatamente percebeu o brilho irô nico nos olhos da velha senhora. — Minhas instruç õ es eram para entregar o bebê à senhora, pessoalmente. Por isso me aborreci, quando o vi nos braç os de um estranho, e, mais tarde, quando a identidade de Felipe foi colocada em dú vida.

— Sem dú vida. Mas agora você está aqui e, em poucos minutos, vai poder entregá -lo a mim.

— O sr. Somervell lhe entregou os papé is de Felipe? — perguntou Cherry, decidida a se certificar de que tudo havia sido feito como devia.

— Sim.

— O medalhã o també m?

— Como? O medalhã o? Que medalhã o é esse?

— O sr. Diaz o encontrou junto a Felipe. Disse tratar-se de uma relí quia de famí lia Matino. É de prata maciç a e muito antigo, com uma pantera gravada no centro. O sr. Somervell o tomou de mim, prometendo que o entregaria à senhora.

Cherry teve a impressã o de que dona Bianca de repente ficou muito preocupada.

— Isso é muito estranho — comentou. — Ele nã o me entregou nada. Talvez tenha esquecido. Obrigada por me dizer. Vou perguntar a Ric. Agora, se Felipe já mamou, quero segurá -lo um pouco.

Cherry entregou o bebê a dona Bianca, ajeitando-o nos braç os dela. A expressã o da mulher se tornou triste.

— Veja, Marita, ele tem a pele morena e o cabelo escuro como o seu — disse à garotinha. — Como seu pai e seu avô, o general Benitez. — Virou-se e olhou para Cherry. — Nó s Matino, nã o costumamos ser tã o morenos — explicou. — Geralmente temos cabelos castanho ou mesmo avermelhado, como Francisca e Ric. Eu, quando jovem, tinha o cabelo vermelho, de um vermelho escuro como muitas vezes se encontra entre os espanhó is. Alé m disso, minha mã e era francesa, da Alsá cia, e tinha cabelo castanho e olhos azuis. Interessa-se por semelhanç as familiares, srta. Hilton?

— Quem nã o se interessa? — respondeu Cherry, sorrindo. — Achei que o sr. Somervell devia ser parecido com o pai, já que tem a pele clara e olhos azuis.

— Arthur tinha pele clara, mas era pequeno, ao contrá rio de Ric. Eu era a, mais alta, e Ric saiu muito parecido com meu pai, até na mecha branca que tem no cabelo. Um dia desses vou lhe mostrar um retrato do meu pai. Era um homem muito bonito.

— Vê alguma outra semelhanç a entre Felipe e seu outro filho, alé m do moreno da pele?

— Sim. Ele se parece muito com Juan, quando era bebê. — Suspirou. — Só espero que tenha uma vida mais feliz que meu pobre Juan. Quando sua primeira esposa, a mã e de Marita, morreu num acidente, ele ficou inconsolá vel; amava-a muito, e depois disso seu comportamento em relaç ã o à s mulheres nã o foi dos melhores. Foi em parte por isso que duvidamos da identidade do menino. Nã o consigo compreender por que ele nã o me contou do segundo casamento. Devia saber que seria uma alegria para mim vê -lo amando novamente. Fidel nã o lhe deu nenhuma explicaç ã o?

— Nã o. Mas disse que o casamento nã o era do conhecimento do pessoal da embaixada també m.

— Agora jamais saberemos. É melhor pegar o bebê e colocá -lo na cama. Ficaria muito feliz, srta. Hilton, se concordasse em permanecer em Vallera como babá de Felipe. Ric me disse que você tinha prometido pensar na proposta.

— Sim, prometi, mas...

— Mas ainda nã o tomou uma decisã o. É natural. Você está aqui há pouco tempo e nã o conhece direito o lugar. Gostaria que ficasse conosco um mê s, antes de decidir. Assim teria tempo suficiente para descobrir se o lugar a agrada. Sei que a Inglaterra fica muito longe, mas ouvi dizer que é uma moç a independente. Nã o há ningué m à sua espera na Inglaterra? Nenhum jovem?

— Nã o, nã o há ningué m à minha espera — admitiu Cherry.

Bueno. Entã o penso que vai achar a vida aqui interessante. Somos uma famí lia simples. Nem eu nem Ric nos preocupamos com ostentaç õ es; estamos muito mais preocupados em mostrar o que pode ser conseguido quando a terra é tratada adequadamente. É uma liç ã o que precisa ser ensinada aos í ndios e mesmo aos bolivianos de origem espanhola. Você seria tratada como um membro da famí lia e nos ajudaria muito. També m para o bebê seria bom continuar com a mesma babá. Por infelicidade, perdeu ambos os pais, e tenho certeza de que você tem consciê ncia da necessidade que os bebê s tê m de estabilidade. Acho que você pode lhe oferecer isso.

Como aquela graciosa senhora estava tornando uma recusa difí cil para Cherry! Quase sem perceber, acabou concordando em ficar.

— Sim, eu poderia ficar.

— Por um mê s, e em seguida reestudaremos a situaç ã o. Bueno. Estou satisfeita. Talvez possa ensinar um pouco de inglê s a Marita e ajudá -la a cuidar de um bebê, para que possa ser uma boa mã e quando crescer. — Dona Bianca sorriu. — Ric vai combinar um salá rio com você. Nã o sou muito boa nessas coisas. Foi por isso que me casei com Arthur quando meu pai morreu, e foi por isso també m que deixei Ric assumir a direç ã o da fazenda quando Arthur morreu. Arthur introduziu grandes melhoramentos aqui e mostrou aos habitantes do lugar como modernizar seus mé todos agrí colas; recebemos com freqü ê ncia grupos de estudantes de agricultura, que vê m trabalhar aqui e observar nossos mé todos.

— A senhora deve se sentir muito feliz com a contribuiç ã o que a fazenda deu à vida do paí s.

— Realmente, me sinto muito feliz. Mas o que mais me alegra é a decisã o de Ric de continuar o trabalho começ ado pelo pai.

Dona Bianca se levantou devagar.

— Hoje à noite teremos uma ceia... algo que só acontece quando temos convidados ou quando há um motivo especial para celebraç õ es. Hoje temos ambas as coisas: a chegada do meu primeiro neto e1 a presenç a de dois grandes amigos, que vã o passar o fim de semana conosco — disse dona Bianca. — Gostaria que se unisse a nó s.

— Obrigada — disse Cherry.

— Francisca gosta de receber em grande estilo, por isso nos vestimos ao gosto dela e nos reunimos para tomar um licor no salã o principal. Tenho certeza de que você vai gostar de conhecer nossos convidados: donDiego Mendoza e o filho. Don Diego é professor de inglê s na Universidade de Sucre e passou alguns anos em Oxford. Vejo você mais tarde, srta. Hilton. Venha, Marita, já está na hora de Felipe dormir. Amanhã poderá vê -lo outra vez, antes de ir para a escola.

Como o jantar foi servido tarde, Cherry teve tempo de desfazer as malas, guardar as roupas, tomar um banho e lavar a cabeç a. Sendo muito fino, seu cabelo secou depressa, caindo suavemente em torne

do rosto; depois passou uma maquilagem leve, realç ando o contorno dos lá bios com um batom bem claro. Ela sabia que nã o podia competir com a beleza quente e natural de Francisca, mas ao menos se sentia refrescada e bem apresentá vel, que era o que desejava,

Quando chegou ao salã o, à s quinze para as nove, encontrou apenas duas pessoas: Francisca e um rapaz moreno e simpá tico, de mais ou menos trinta anos. Os dois falavam em castelhano, fazendo muitos gestos, e pareciam estar tendo uma discussã o acalorada. Calaram-se de repente ao avistar Cherry na porta.

Francisca reagiu com impaciê ncia.

— Deseja alguma coisa, srta. Hilton? — perguntou no seu inglê s carregado. Usava um vestido longo de veludo, que a fazia parecer mais velha do que na realidade era.

— Dona Bianca me disse para vir até aqui antes do jantar.

— Ela já conversou com você? — Francisca parecia aborrecida por desconhecer aquele detalhe.

— Ela foi ver Felipe — respondeu Cherry, delicada. Tinha decidido nã o se irritar com o que Francisca fizesse ou dissesse. Já que ia permanecer em Vallera, seria melhor jamais aborrecer Francisca.

— Mas você nã o vai jantar conosco. Você nã o passa de uma babá — disse Francisca.

— E você nã o passa da dama de companhia de uma senhora idosa, e mesmo assim janta conosco — brincou o rapaz, piscando para Cherry.

— Mas eu sou parente — retrucou Francisca, decidida a nã o se deixar abater.

— Uma parente um pouco grosseira, por sinal — continuou o convidado, cujo inglê s era muito mais fluente que o de Francisca. Estendeu a mã o morena paja Cherry e sorriu. — Sou Rafael Mendoza. Prazer em conhecê -la. Vai ficar muito tempo aqui?

— Um mê s, talvez mais — respondeu Cherry cautelosa, estendendo a mã o. Ele nã o a envolveu no abrazo; apenas apertou sua mã o e soltou-a em seguida.

— Ó timo — disse Rafael. — Seja bem-vinda. Um pouco de competiç ã o nã o vai fazer mal a Francisca. Vai, chiquita? — sorriu carinhosamente para Francisca.

— Nã o sei por que fala. de competiç ã o — reagiu Francisca, ainda de cara feia.

Rafael nã o respondeu. Naquele instante entrava dona Bianca, em companhia de um senhor alto e elegante. Apesar do porte ereto e digno, havia melancolia nos lá bios finos e nos olhos negros do cavalheiro; a mesma melancolia que Cherry havia visto nos olhos dos í ndios. Dona Bianca apresentou-o como donDiego Mendoza e disse a Francisca, rí spida:

— Ainda nã o ofereceu um licor à srta. Hilton. Faç a isso imediatamente.

Francisca ficou muito vermelha, percebendo que havia cometido um deslize social diante dos convidados. Dirigiu-se imediatamente a uma mesinha onde brilhavam diversas garrafas e copos e despejou um lí quido dourado num cá lice de cristal.

— A maioria dos ingleses prefere o licor adocicado, mas també m temos um ó timo oloroso e o amontillado— disse Francisca, dirigindo-se a Cherry.

— Prefiro um licor seco, se houver — disse Cherry. Francisca serviu-a e depois dirigiu-se a dona Bianca e donDiego.

— Ric está atrasado — comentou, unindo-se a Rafael e Cherry.

— Talvez esteja trabalhando — disse Rafael, seco.

— A esta hora? — exclamou Francisca. — Nã o pode fazer nada lá fora, está muito escuro.

— Sempre há papé is a serem colocados em dia — replicou Rafael. — E, depois, ele tem sangue inglê s, e todos sabem que os ingleses preferem trabalhar a flertar com uma mulher bonita. Nã o estou certo, srta. Hilton? Nã o chegou a essa conclusã o durante sua viagem com Ric até aqui?

Era uma pergunta delicada e Cherry gostou de ver que dona Bianca, absorta na conversa com Don Diego, nã o ouviu. Uma vez mais se recomendou cuidado. Francisca estava atenta à resposta.

— Nã o conheç o bem o sr. Somervell. Nã o posso dizer o que prefere. Mas conheç o muitos ingleses que gostam de flertar tanto quanto os bolivianos.

Rafael sorriu, os olhos brilhantes de admiraç ã o. Mas Francisca pareceu decepcionada, levando Cherry a imaginar se a moç a nã o havia pedido a Rafael que tentasse descobrir as verdadeiras relaç õ es entre ela e Ricardo.

Naquele momento Ric entrou na sala, silenciosamente como de costume. Cumprimentou donDiego e foi se servir de licor. Quando ia levar o cá lice aos lá bios, seus olhos se encontraram com os de Cherry, fazendo-a tremer.

O que Cherry sentia nã o era mais. aquele choque que abalava todo seu ser, mas um cá lido sentimento de prazer, como quando se encontra um amigo querido no meio de uma multidã o de estranhos. Essa sensaç ã o nã o deixava de ser perigosa també m. Cherry desviou os olhos depressa. Percebendo que Rafael a observava, sorriu para ele.

Ele també m sorriu e disse:

— Preciso mesmo chamá -la de srta. Hilton?

— Nã o, normalmente me chamam de Cherry.

— Que nome delicioso! Há um poema inglê s, nã o é, papai? — O pai olhou para ela. — Qual é o poema que fala dos lá bios de certa mulher como sendo " mais vermelhos que cerejas"? Cherries, em inglê s, quer dizer " cerejas", nã o é?

— Por que quer saber? — perguntou Francisca.

— Para que eu possa fazer uma serenata para ela, é claro — respondeu Rafael, malicioso.

— O poema mais conhecido é Cherry Ripe, de Herrick — explicou donDiego. — Mas existe outro, cuja autoria é reclamada por dois poetas. O poema compara o rosto de uma mulher a um jardim onde crescem cerejas que ningué m pode comprar até que estejam maduras.

— Parece perfeito — exclamou Rafael, entusiasmado. — O nome dos poetas, por favor.

— Rafael també m é poeta — explicou dona Bianca a Cherry. — Talvez mais tarde ele declame um dos seus poemas para nó s. Nã o fica embaraç ada com o interesse dele pelo seu nome?

— Um pouco, mas costumava acontecer em casa muitas vezes.

— Campion — anunciou donDiego triunfante, olhando para cada uma das pessoas na sala, como que esperando louvores por seu feito de memó ria. — Thomas Campion. Foi o primeiro a usar essa imagem. E depois Alison... Richard Alison.

— É uma bela imagem — disse Rafael, sé rio. Tirou do bolso um caderninho e tomou nota dos nomes dos poetas. — Nã o acha, Ric?

Mas Ric estava ocupado conversando com Francisca, o rosto bem pró ximo ao dela. Havia uma intimidade especial entre eles, confirmada pela risada que deram quando ele terminou de falar. Tomada de uma sú bita inveja por aquela intimidade, Cherry virou o rosto, depressa, e ouviu dona Bianca dizer alguma coisa a Francisca, que saiu correndo da sala.

— A srta. Hilton me disse que Fidel lhe deu um medalhã o, pedindo que o entregasse a mim — disse dona Bianca de repente, olhando para Ric. — Gostaria de vê -lo, por favor. Está aí com você, Ric?

Ric lanç ou um olhar levemente irô nico a Cherry, que permaneceu impassí vel. Depois ergueu o cá lice, examinou-o contra a luz e entregou-o a Rafael.

— Ricardo — disse dona Bianca, em tom doce mas autoritá rio —. nã o respondeu à minha pergunta.

— Que pergunta?

— O medalhã o que a srta. Hilton entregou a você. Está com você agora?

— Nã o, está no meu quarto. Depois mostro à senhora.

— Está bem, mas nã o se esqueç a. E tome cuidado com ele. Nã o gostaria que ficasse jogado por aí.

Ricardo sorriu com ironia e tomou um gole de licor.

— Que medalhã o? — perguntou Francisca.

— Ainda nã o sei, mas estou tentando descobrir — respondeu dona Bianca irô nica, olhando para Ric. — Vamos para a sala de jantar, Francisca? O jantar já está pronto?

Si. — Francisca sorriu, graciosa. — Venham todos: Don Diego, acompanha tia Bianca? Rafael, acompanhe a srta. Hilton! Eu vou com Ric.

Dirigiram-se em procissã o à sala de jantar, iluminada suavemente por velas. Sobre a mesa, pratos de porcelana e talheres de prata brilhavam, destacando-se sobre a toalha bordada. Rafael apontou para Francisca, que caminhava na frente deles, de braç os dados com Ric, e sorriu para Cherry.

— É um pouco doida, aquela ali — murmurou. — Tem visõ es. Vê a si mesma como a anfitriã de uma mansã o, como a senhora de Vallera, e nã o dispensa os antigos costumes e tradiç õ es espanhó is. Ela esquece que o paí s precisa seguir adiante, com o sé culo XX.

— Você fala como um revolucioná rio — brincou Cherry. — Estou certa?

— Nã o mais do que Ric é ou foi. Nã o mais do que dona Bianca ou seu segundo marido, Arthur. Como eles, acredito no presente e no futuro, e acho que o futuro reside na mistura de raç as e tradiç õ es. Minha avó era uma chola, embora meu pai prefira ignorar o fato. Eu nã o. Apesar de ter sido batizado como cristã o, e falar espanhol, minha alma é í ndia. Eu adoro o sol, as estrelas e as montanhas...

— Mas nã o agora, Rafael — brincou Ric, quando chegaram à mesa. — Mais tarde. Depois que tivermos comido e bebido, e que nosso humor estiver mais meloso, você pode declamar sua ú ltima poesia e todos ouviremos com prazer. Sente-se aqui, Cherry, por favor.

Sentou na cadeira que ele segurava para ela e achou-se à direita dele, de frente para Francisca e pró xima a Rafael, que se achava à esquerda de dona Bianca. O jantar, preparado pela pró pria Francisca, consistia num delicioso lombo de porco com bananas, castanhas e tomates. O vinho, trazido da Espanha por um Matino, foi servido por Ricardo.

— Ainda há dezenas de garrafas na adega da casa — explicou Ricardo. — Francisca, precisa levar Cherry para conhecer a adega e o resto da casa... ela já esteve na Espanha e vai gostar de ver a semelhanç a que há entre esta casa e as velhas mansõ es espanholas.

Si, vou fazer isso. Invejo sua visita à Espanha, srta. Hilton. Gostaria muito de ir até là.

A observaç ã o de Francisca fez com que Cherry lembrasse de Isabella, inclinou-se e transmitiu as lembranç as da moç a a dona Bianca.

— Você nã o me disse que havia estado na casa de Isabella — murmurou Ric, servindo mais vinho a Cherry.

— Esqueci — respondeu ela, fria.

— Tivemos tantas coisas para discutir, nã o é? Coisas como identidades e medalhõ es. — Pronunciou a ú ltima palavra com ê nfase especial e Cherry imediatamente percebeu que ele tinha se aborrecido por ela ter mencionado o medalhã o à mã e. Mas ela també m estava aborrecida por ele nã o ter entregue o medalhã o a dona Bianca, conforme o prometido.

— Por que nã o o entregou à sua mã e? — perguntou Cherry, num momento em que todas as atenç õ es estavam voltadas para uma conversa entre donDiego e o filho.

— Porque nã o quis.

— Devia ter imaginado que eu contaria a ela sobre o medalhã o! Afinal, recebi instruç õ es para entregá -lo a ela, e a ningué m mais.

— Eu sei. As instruç õ es de Fidel precisavam ser fielmente cumpridas — disse, sarcá stico. — Ele devia ter imaginado que me irritaria com essa exigê ncia.

— Nã o vejo por que o irritaria.

— Nã o espero que veja, senorita— respondeu, frio. — Já adverti para nã o comentar assuntos que nã o lhe dizem respeito.

Foi como se Ricardo houvesse fechado uma porta na cara dela. Olhou para ele surpresa, sem conseguir disfarç ar a tristeza que aquela repreensã o provocou nela. Ele sorriu, como se a tristeza dela o divertisse. Cherry baixou os olhos, tentando reunir todo seu autocontrole para superar aquele momento difí cil. Apesar dos momentos de profunda intimidade espiritual que haviam compartilhado no pá tio, no dia da chegada a Vallera, ele havia perdido o interesse por ela; o afastamento que havia começ ado em Potosi era agora completo. Ele já nã o era mais o parceiro com quem havia danç ado em La Paz, nem o companheiro que havia tornado interessante uma viagem monó tona. Era o inimigo que a havia interrogado com fria autoridade em La Paz, no dia da chegada.

— Compreendo — respondeu com falsa tranqü ilidade, sem olhar para ele. — A tré gua terminou.

— Nã o há nada que eu possa dizer ou fazer, agora, para convencê -la do contrá rio — respondeu, suave.

Essa resposta fez com que ela caí sse em si. Olhando para cima, percebeu que Francisca nã o prestava mais atenç ã o à discussã o entre pai e filho, mas ouvia o que ela e Ric diziam. Cherry tomou um gole de vinho e virou-se para conversar com Rafael.

Como sobremesa, foram servidas frutas frescas: mamã o, bananas e maç ã s, seguidas de café e pisco. Rafael, animado pelo vinho e pelo pisco, declamou seu ú ltimo poema em louvor à cordilheira que dominava o paí s. Quando terminou, ignorou os aplausos de dona Bianca e Francisca e virou-se para Cherry:

— Gostou?

— Infelizmente nã o entendi tudo.

— Entã o vamos até a varanda, que eu explico, Com licenç a, dona Bianca. Cherry nã o entendeu minha obra-prima. Preciso explicar a ela em particular.

— Claro que precisa — disse dona Bianca, com seu sorriso doce. — Estejam à vontade.

A noite estava fria e Cherry se alegrou por estar usando um vestido de mangas longas. Olhou para o cé u, admirando a noite estrelada, enquanto Rafael se inclinava sobre a grade da varanda e acendia um cigarro. O aroma do cigarro se misturou ao perfume dos jasmins que subiam pelas paredes brancas abaixo deles.

— Acha as estrelas daqui maiores e mais brilhantes que as da Inglaterra? — perguntou Rafael, acompanhando o olhar de Cherry.

— Sim, e há algumas que nunca vi antes.

— El Crux, talvez, o Cruzeiro do Sul — murmurou ele, apontando para as quatro estrelas. — E aquelas cinco ali adiante — continuou Rafael. — Nó s lhes damos o nome de As Moscas. Aqui, quase sobre nó s, fica a grande constelaç ã o de Centauro. Diga-me, senorita, acha estranho estar do outro lado do mundo?

— Nã o tã o estranho como estar em pleno altiplano, em Tihuanaco. Lá tive a impressã o de que o resto do mundo nã o existia.

— E talvez nã o exista mais para você — comentou em tom estranho. — Talvez descubra que, daqui para a frente, seu mundo é aqui, como já aconteceu a muitos outros visitantes do seu paí s. Vieram trabalhar aqui e ficaram fascinados pela magia e pela beleza da terra.

Um pouco perturbada pelo comentá rio, que soava como uma prediç ã o, Cherry disse:

— Ia me explicar seu poema.

— Ia. Ele expressa um sentimento que em mim é muito forte. Sinto que a alma do homem tem sua expressã o mais completa nas montanhas dos Andes, naquelas rochas torturadas, eu vejo o sofrimento que o homem suporta sob os raios implacá veis do sol. — Aproximou-se mais dela e baixou a voz. — Usei meu poema para livrá -la, por alguns instantes, de olhares curiosos, para que possa relaxar e aproveitar melhor o resto da noite.

— Que olhares?

— De Francisca. Ela observou você e Ric durante todo o jantar. Quero preveni-la de que Francisca é muito possessiva em relaç ã o a ele.

— Santo Deus! — suspirou Cherry. — Eu disse a ela que nã o tinha com que se preocupar.

— Nã o mesmo? — Ele parecia em dú vida.

— Claro que nã o. O que poderia haver entre o sr. Somervell e eu?

— Você s viajaram juntos durante dois dias e duas noites. Qualquer coisa poderia acontecer nesse tempo. Pelo menos, é o que Francisca acha.

— Mas eu estava cuidando de Felipe! Espero que ela nã o torne as coisas mais difí ceis ainda para mim.

— Ela lhe falou da outra inglesa que esteve aqui uma vez, e que demonstrou abertamente a intenç ã o de se casar com Ric?

— Falou. Você a conheceu?

— Conheci. Era de uma beleza incomum, como um diamante.

— Em La Paz ouvi dizer que o sr. Somervell esteve pensando em se casar, mas a moç a mudou de idé ia.

— É um enfoque diferente da questã o. Se foi ela quem mudou de idé ia, acho que a responsá vel foi Francisca.

— Mas e quanto ao sr. Somervell? O que sentia pela moç a?

— Quem sabe? Quem é capaz de dizer o que Ric sente por qualquer mulher? Nem mesmo Francisca tem essa capacidade. Ela apenas reage instintivamente, ou primitivamente, a qualquer mulher que pareç a perigosa, a qualquer uma que possa vir a se colocar entre Ric e ela.

— Compreendo. Ela me disse que o casamento dela com o sr. Somervell já está decidido.

— Decidido na imaginaç ã o dela. — Rafael riu abertamente. — Como já lhe disse, ela se imagina a senhora de uma grande mansã o. A outra moç a se via como a esposa de um homem simpá tico, herdeiro da metade de uma grande fortuna. Acho que, quando se deu conta de que teria que viver aqui depois de casada, é que decidiu ir embora, operando que ele a seguisse.

— E ele nã o a seguiu?

— Seguiu. Até Lima, mas lá o romance terminou. Isso foi há dois anos e, depois, Ric nã o se prendeu seriamente a nenhuma outra mulher.

— Flertou com vá rias... a lista das possí veis eleitas — murmurou Cherry.

Si. A seguranç a da quantidade. Ainda bem que você nã o se parece com a outra inglesa. Você é delicada. Gosto de mulheres suaves. — Aproximou-se mais e colocou um braç o em torno da cintura dela. — Nã o se afaste — sussurrou. — Nossa amiguinha ciumenta está nos observando da janela do quarto. É bom que ela nos veja assim. Se pensar que estamos flertando, vai deixar de se preocupar com você. E talvez até comece a reparar em mim.

— Por que quer que ela repare em você?

— Eu a amo e gostaria de me casar com ela — confessou Rafael com franqueza. — É intolerá vel para mim vê -la vivendo dessas ilusõ es de grandeza. Ela nã o percebe que Ric nã o precisa de uma esposa desse tipo, e que Vallera nã o precisa de uma grande senhora.

— Que espé cie de esposa ele precisa, entã o? — perguntou Cherry. " Nã o vamos confundir amor com casamento", lembrou das palavras do pró prio Ric.

— Algué m que nã o se importe de viver aqui e que nã o se importe de ser a esposa de um fazendeiro. Ele, pelo menos, nã o tem ilusõ es a respeito do que é.

— Imaginei que Francisca seria a esposa ideal para ele. Vive aqui há muitos anos e parece gostar do lugar.

— Gosta pelas razõ es erradas, e nã o preenche os requisitos necessá rios.

— E quais sã o esses requisitos?

— Um amor sincero por crianç as que nã o sã o dela. Existem dois ó rfã os que precisam ser educados. Francisca nã o gosta de Marita e faz da vida da menina um inferno, porque sabe que a garota tem mais direito a Vallera que ela mesma. També m odeia o bebê. Estava falando dele quando você entrou no salã o, queria que ele jamais houvesse nascido, e, por estranho que pareç a, essa é uma das razõ es pelas quais nã o gosta de você. Foi você que o trouxe para cá, e um dia ele vai herdar tudo que pertenceu à famí lia Matino. Para falar com franqueza, ela nã o se importaria se o pequeno Felipe sofresse um acidente ou contraí sse uma doenç a grave e morresse.

— Que horror! Que crueldade! — revoltou-se Cherry.

— Concordo. Mas nã o se esqueç a de que temos uma heranç a de crueldade neste paí s. Somos crué is ao extremo, embora sejamos també m capazes de morrer por um ideal. Mas, quando adoramos, somos todos uns tolos, e Francisca nã o é exceç ã o. Ela adora Ric, ou pelo menos adora tudo que ele representa. Precisava ver como ela se humilha quando ele a ofende.

— Já vi.

— Entã o entende o que eu digo. Temo que ela venha a ser muito infeliz se chegar a casar com ele.

— Isso significa que você nã o a ofenderia? — brincou Cherry.

— Nã o, porque a compreendo. Amar é compreender, nã o é?

— Obrigada por me confiar seu segredo — disse Cherry, pensativa.

— Nã o é segredo — respondeu, brincalhã o. — Todo mundo sabe que Rafael, o filho do professor, age como um tolo por causa de Francisca. E ela imagina que eu jamais olharia para outra mulher. Por isso considero bené fica uma pequena competiç ã o. Amando-a como a amo, gostaria de evitar que ela sofresse e que fizesse outros sofrerem, como já aconteceu no passado por causa do seu comportamento tolo e ciumento. Se conseguir atraí -la para mim, talvez consiga evitar que sofra uma desilusã o.

— Se eu puder ajudar, terei o maior prazer.

— Sabia que era bondosa, senorita. Fiquei sabendo assim que pousei os olhos em você. Bondade e humor. Essas duas qualidades a levarã o longe, e podem até ajudá -la a conquistar o homem do seu coraç ã o.

— Você parece um cigano predizendo meu futuro! — Cherry riu. — Só que, no momento, nã o sei quem é o homem do meu coraç ã o.

— Vai encontrá -lo aqui. Estou certo disso. Obrigada por sua cooperaç ã o.

Um ruí do chegou até os ouvidos sensí veis de Cherry. Felipe havia acordado e queria comer. Explicou a Rafael por que precisava ir embora.

— Imagine só! Eu, competindo com um bebê numa noite como esta! Neste caso, boa-noite e até breve. Talvez um dia você vá a Sucre e me dê o prazer de lhe mostrar a cidade. É um belo lugar.

— Eu adoraria. Buenasnoches. Ele estendeu a mã o direita.

— Já conhece o nosso abrazo?

Si.

— Entã o acha que podemos provocar um pouco de ciú me na nossa espectadora?

Pelo canto dos olhos, Cherry viu uma sombra parada por trá s da janela e aceitou o abrazo. Afinal, ele só significaria alguma coisa se ela permitisse.



  

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