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CAPÍTULO III



 

A noite transformava a cidade, ocultando os tristes casebres e disfarç ando a monó tona regularidade dos edifí cios mais modernos. No ar cristalino brilhavam lâ mpadas elé tricas e painé is de né on, como jó ias incrustradas em veludo negro. Lá em cima, no cé u, as estrelas cintilavam com uma intensidade jamais imaginada por Cherry.

Enquanto sacolejavam dentro da perua, atravessando ruas grosseiramente pavimentadas, Cherry observava os pá tios iluminados das casas, visí veis aqui e ali, atravé s dos portõ es em arco. Os muros altos e os trabalhos esculpidos em pedra criavam uma atmosfera pró pria de sé culos passados; a qualquer momento poderia surgir um nobre de Espanha, de longa capa negra e chapé u de abas largas, a caminho de um româ ntico rende-vous.

Invadida pela magia das luzes e das sombras, ela se aconchegou no banco do carro, sentindo de encontro ao rosto a suavidade da estola que usava sobre a cabeç a e os ombros. Em casa, quando Ric a viu vestida apenas com um vestido longo de noite, de mangas també m longas, exclamou, rí spido:

— Mas você vai sentir frio!

Sem dizer nada, ele tinha subido outra vez, descendo pouco depois com a estola de vicunha, pertencente à mã e.

Sentindo o calor da pele macia, Cherry imaginou que impulso o havia levado a lhe oferecer a estola. Betty Garcia tinha razã o em dizer que ele era imprevisí vel. Essa imprevisibilidade, unida à beleza má scula de Ricardo, fazia dele um homem perigoso.

Se num momento detestava as atitudes autoritá rias dele, o desprezo que demonstrava pelo sexo feminino, no seguinte ficava encantada com a demonstraç ã o de interesse, a preocupaç ã o que revelava pelo bem-estar dela. O pê ndulo ia do detestar para o gostar e, de novo, para o detestar, provocando nela um efeito perturbador; quando estava com ele, sentia um constante estado de ansiedade que a impedia de agir com lucidez. Era como se tivesse sido enfeitiç ada, transformando-se de jovem independente e sé ria em uma mulher impulsiva, guiada mais pela emoç ã o que pela razã o; uma pessoa que ela mal reconhecia, mas que, sem dú vida, devia estar oculta sob uma fachada de independê ncia, esperando o momento de se revelar.

Saí ram da cidade, atravessando o vale de Choqueyapa, até um subú rbio que no passado havia sido uma cidadezinha. Pararam diante de uma casa moderna e bem cuidada.

A porta foi aberta por uma mulher gorda, de cabelo negro e olhos escuros, cujo vestido de seda colante realç ava cada uma das suas curvas. Ao ver Ricardo, exclamou qualquer coisa em castelhano e envolveu-o nos braç os, beijando-o com muito gusto, para surpresa de Cherry.

A surpresa devia estar estampada no rosto dela, pois, ao se afastar da mulher, Ricardo sorriu, divertido.

— Victoria, quero lhe apresentar Cheryl Hilton, da Inglaterra, Nã o está acostumada à s nossas demonstraç õ es de afeto e deve acha-Ias um pouco embaraç osas.

— Inglesa? Mas que emocionante! Prazer em conhecê -la, senorita. — disse Victoria. — Deixe-me explicar-lhe o abrazo. É a forma normal de saudaç ã o dos bolivianos. Você segura minha mã o direita... assim. Agora, ponha a sua mã o direita sobre meu ombro esquerdo e eu ponho a minha no seu, sua mã o esquerda apó iameu braç o direita e eu faç o o mesmo com você, depois damos tapinhas nas costas uma da outra com a mã o esquerda. Como somos mulheres, roç amos nosso rostos, mas as pessoas que se estimam, independente de sexo, beijam-se. — Riu e piscou para Ricardo. — Pronto... é assim. Você mesmo podia ter ensinado, Ric. Agora já sabe o que esperar dos meus convidados quando for apresentada! Vá até a sala, Ric. Há muitos amigos que estã o ansiosos por vê -lo. Venha por aqui, srta. Hilton, vou lhe mostrar onde deixar o casaco.

Depois de deixar o casaco no quarto, Cherry seguiu Victoria até uma ampla sala que parecia mobiliada apenas em um dos extremos, outro estava vazio, e o chã o, nu. Mais tarde descobriu que o espaç o vazio destinava-se à s danç as.                                                          

Ricardo apresentou-a ao anfitriã o, Gabriel Lorca, um homenzinho gordo, de cabelo escuro e vastos bigodes, e à s outras pessoas presentes, algumas das quais tinham sido colegas de universidade. Entre os convidados, havia um grupo de americanos, mé dicos e geó logos que viviam e trabalhavam no subú rbio de Calecto, havia també m dois engenheiros ingleses que trabalhavam na estrada de ferro, casados com moç as bolivianas.

Colocaram uma bebida na mã o de Cherry, que perguntou a Ricardo o que era aquilo.

Pisco, a nossa bebida mais popular; nã o beba muito ou terei uma babá bê bada nas mã os — ele brincou.

Daí em diante, Cherry se viu envolvida numa onda de alegria. A comida foi servida à americana: salpicã o de galinha, bife com pimenta, empanadassaltenas— espé cie de pastel recheado com carne picante, passas e azeitonas — e, como sobremesa, fatias de mamã o e bananas.

Depois do jantar vieram as danç as, ao som dos violõ es e charangos: huayanos, do altiplano; taquiriese carnavalitos, dos vales tropicais. Mas a mais popular era a cueca, e finalmente Cherry ficou sabendo por que precisava de um lenç o branco: para " coquetear", para flertar, porque a cueca é a danç a da conquista. Os danç arinos colocam-se um diante do outro, uma das mã os no quadril, a outra agitando um lenç o branco. A mulher agita o lenç o sob o nariz do parceiro, que fecha os olhos e bate os calcanhares no chã o. Em seguida, os dois giram em torno um do outro, avanç ando e recuando, enquanto os acompanhantes cantam canç õ es de amor.

Com seu natural senso de ritmo, Cherry logo entrou na danç a com Ricardo, girando e sapateando no chã o, alheia a tudo, exceto à mú sica e aos olhos azuis de seu parceiro.

Quando Cherry percebeu, já era hora de ir embora. Enquanto ajeitava a estola sobre a cabeç a, em frente de um espelho, ouviu uma voz que lhe disse em inglê s:

— Você e seu noivo danç aram a cueca com perfeiç ã o.

Ela se virou para dizer que Ricardo nã o era seu noivo, mas a americana já havia ido embora.

No vestí bulo cheio de gente e risos, despediu-se de Victoria e Gabriel, submetendo-se aos abraç os tradicionais. Depois, em companhia de Ricardo, dirigiu-se à perua.

Tomaram o caminho de volta e em pouco tempo estavam deixando o vale. Acima deles, La Paz parecia um gigantesco candelabro, preso diretamente ao cé u. Logo depois paravam no pá tio da casa. Mais alguns passos no ar frio e estavam no hall escuro, iluminado apenas por uma lâ mpada que Josefa deixou acesa para os dois. Subiram as escadas em silê ncio, pois qualquer palavra quebraria o encanto que os envolvia desde que danç aram juntos.

Na porta do quarto, Cherry parou, e Ricardo a imitou. Ela olhou para os cabelos meio desalinhados, para os olhos azuis, para a boca de lá bios sensuais, relutando em afastar-se dele.

Buenasnoches, senorita, v gradas — disse ele, estendendo a mã o.

Ela colocou a mã o sobre a dele e logo se viu envolvida no abrazo. Só que, em vez de simplesmente olhar por cima do ombro dela e dar-lhe um tapinha nas costas, ele inclinou a cabeç a e beijou-a na boca.

Ao sentir os lá bios dele, Cherry teve a sensaç ã o de estar recebendo um choque, como se houvesse tocado um fio de alta tensã o. O beijo era uma conseqü ê ncia natural da noite que haviam passado juntos, e deveria ter sido tã o breve quanto a explosã o de um flash de luz... Mas durou muito mais, e o tempo deixou de ter importâ ncia para eles enquanto permaneceram ali abraç ados, tentando descobrir a essê ncia um do outro.

Um ruí do atrá s deles trouxe Ricardo imediatamente de volta à terra, mas Cherry demorou um pouco mais para perceber o que estava se passando. Na semi-obscuridade, os olhos dele nã o revelavam emoç õ es.

— Já é tarde — disse Ricardo. — Você precisa dormir, pois vamos partir cedo, amanhã. Josefa virá chamá -la. Durma bem, Cherry.

Ele se afastou com passos suaves e Cherry entrou no quarto escuro. Sem acender a luz, despiu-se e vestiu a camisola, trê mula de frio. Aconchegou-se debaixo das cobertas e ficou de olhos fechados, tentando acalmar as loucas batidas do coraç ã o, abrindo e fechando as mã os, numa tentativa de se ver livre da sensaç ã o de ainda estar tocando os cabelos macios de Ricardo.

" La Paz fica acima da linha do beijo". Lembrou-se das palavras de David Fuller e pensou que, se aquele era um exemplo do que acontecia quando RicSomervell a beijava acima da linha do beijo, precisaria muito da ajuda divina se ele a beijasse abaixo daquela linha!

Dormiu de repente e acordou com o brilho gelado do sol, entrando pela janela, e com o choro de Felipe. Depois de trocá -lo, levou-o para a cozinha quente, onde lhe deu a mamadeira. Em seguida tomou ocafé da manhã em companhia de Ricardo, que a cumprimentou educada mas friamente. Assim que terminou a refeiç ã o, ele saiu para levai a bagagem até a perua e verificar se mais alguma coisa era necessá rio para a longa viagem.

Despediram-se de Josefa que num gesto sú bito de generosidade ofereceu a Cherry um poncho colorido, tecido por ela mesma.

— Vai precisar — disse Josefa. — Faz muito frio em Potosi.

Como Ricardo tivesse insistido para ela ficar també m com a estola de vicunha, Cherry teve certeza de que nã o passaria frio na viagem.

— Espero que cheguemos a Oruro ainda hoje à noite — disse Ricardo. — Nã o é o lugar mais bonito do mundo, mas é o centro de uma indú stria de mineraç ã o. De lá seguiremos até Potosi e daí até Betanzos. É o caminho mais curto até Vallera. Por Cochabamba e Sucre seria mais agradá vel e mais quente, mas levaria muito tempo. Já estive fora da fazenda por um perí odo longo demais.

Suas atitudes eram as mesmas da primeira vez em que se encontraram: frias e autoritá rias. A noite anterior devia ter sido um simples passatempo, algumas horas de prazer gozadas ao má ximo. Cherry imaginou que aquele era o modo de vida de Ricardo: aproveitar ao má ximo as oportunidades. Se ela fosse mais sofisticada e experiente, talvez tivesse sabido transformar aquele beijo em algo mais profundo, mas era relativamente inocente, e por isso ele a havia deixado.

Está tudo muito bem, pensou Cherry, irritada. Mantenha a cabeç a fria. Nã o vá se desesperar só porque um homem a beijou e depois esqueceu de tudo.

— Nã o é Oruro a cidade famosa por seu carnaval? — perguntou alegre, tentando demonstrar que estava tranqü ila.

Si. — No carnaval todos os hoté is ficam lotados e as casas abrem suas portas para acomodar os turistas que chegam de toda a Amé rica do Sul.

— Algo parecido com o festival de luzes e cores apresentado em Blackpool — comentou Cherry, relembrando as hordas de visitantes da Inglaterra e mesmo da Europa que chegavam todos os anos em setembro e outubro. Vinham em caravanas de carros, motos e ô nibus, para ver o festival.

— Como? — Pelo tom da pergunta e pelo olhar de surpresa, ela percebeu que Ricardo, apesar de dominar tã o bem o inglê s e de ter um pai inglê s, jamais tinha ouvido falar de Blackpool. Entã o contou dos espetá culos e da primeira visita que havia feito à cidade quando crianç a, em companhia dos pais e de vá rios vizinhos.

Ele ouvia com atenç ã o. Naquele momento, atravessavam ainda o altiplano, onde o ar brilhava como gelo, e as montanhas pareciam recortadas contra o cé u azul como icebergs.

Quando ela terminou, ele balanç ou a cabeç a e disse:

— Você vê semelhanç a na reuniã o de pessoas que querem compartilhar o espetá culo e divertir-se juntas. O grande espetá culo em Oruro e a " danç a do demô nio", danç ada pelos mineiros.

— Como foi que ela surgiu?

— Os mineiros sã o muito supersticiosos e acreditam que cada minaé propriedade de um espí rito, que vive nela. Antes de escavar uma mina, o espí rito deve ser adorado, e é por isso que geralmente se encontram à entrada das minas figuras de pedra representando um demô nio. Na é poca do festival, ocasiã o em que també m se confirma a devoç ã o pela Virgem Maria... a Virgem dei Socavon, que també m é adorada nas minas, pois dizem que uma vez realizou um milagre ali. os mineiros vestem má scaras de demô nios e danç am pelas, ruas.

— Entã o o festival é meio pagã o e meio cristã o?

— Como a maioria dos festivais. Os preparativos duram o ano inteiro.

O sol já estava alto no cé u quando a paisagem começ ou a sofrer mudanç as sutis, mais pela mudanç a de cores que pelos contornos. O vermelho, o marrom e o cinza transformaram-se em sé pia; as rochas cinzentas adquiriram um suave rosado e o horizonte tingiu-se de pê ssego. Em toda parte uma grama á spera crescia em tufos.

— É paja brava, palha selvagem — explicou Ricardo, quando Cherry lhe perguntou. — Se você cair sobre um tufo, vai saber o porquê do nome. Coca como o diabo.

Felipe foi ficando impaciente e começ ou a chorar. A pedido de Cherry, Ricardo parou o carro ao lado da estrada para que ela trocasse o menino. Um bando de Ihamas passava ao lado deles naquele instante, muito dignas, indiferentes à nudez da paisagem.

— O poeta Gregó rio Reynolds as chamava de " companheiros frugais do homem", pois proporcionam tudo aos í ndios: alimento, comida e amizade — observou Ric, notando o interesse dela pelos animais. Ele estava parado ao lado do carro, apoiado à porta, descontraí do, sem pressa, embora tivesse dito a Cherry que precisava voltar logo a Vallera. Como seria bom viver sem pressa, pensou ela, saboreando cada minuto, sem pensar no amanhã.

— O nome do poeta é uma mistura, como o seu — Comentou Cherry.

— Essas misturas sã o comuns aqui no Novo Mundo. Somos uma mistura de aventureiros, imigrantes de todo o mundo e í ndios.

— Já esteve na Inglaterra?

— Passei algum tempo lá, tentando descobrir se aquele era o meu lugar.

— E era?

— Se fosse, eu nã o teria voltado para este paí s. També m passei algum tempo na Espanha, com a mesma finalidade.

— Já estive na Espanha també m — disse Cherry —, com a famí lia para quem trabalhava. Nos ú ltimos quatro anos, cada verã o í amos a um lugar diferente.

— Eu passei a maior parte do tempo em Barcelona. Os Matino eram catalã es, homens de negó cios. Juan tinha uma vila em Barcelona, mas isso já foi há sete anos, por isso nã o nos encontramos por lá. Foi preciso que você cruzasse metade do mundo para que nó s nos conhecê ssemos.

Esse ú ltimo comentá rio ficou entre eles como um desafio. Cherry levantou os olhos e encontrou o olhar profundamente azul fixo nela.

— Por que aceitou essa estranha missã o? — perguntou Ric, apontando para Felipe, que dormia no colo de Cherry.

— A famí lia para quem eu trabalho já nã o precisava mais de mim; achei que uma mudanç a seria estimulante — respondeu Cherry.

— Por que precisava de uma mudanç a? Sentia-se infeliz? Cherry soltou uma exclamaç ã o de espanto, traindo-se sem querer.

— Como adivinhou?

— Geralmente é a infelicidade que leva as pessoas a procurarem mudanç as. E você parece estar sempre na defensiva, como se tivesse medo de ser ferida... o que provavelmente significa que já foi ferida. As moç as do seu paí s, na sua idade, ou já se casaram ou estã o para casar, mas nã o vejo alianç a no seu dedo.

— Talvez eu nã o queira me casar — retrucou Cherry. — A vida oferece mais do que o casamento para uma mulher.

— Sei disso, mas nã o para você. Você seria uma boa esposa e uma boa mã e. — Olhou para Felipe e novamente para ela, que tentava desesperadamente parecer indiferente. — O que a fazia infeliz? Um homem a decepcionou?

— Isso nã o interessa, sr. Somervell — respondeu, fria. Quando ouviu a risada dele, ficou furiosa.

— Nã o adianta — insistiu Ric. — Agora é tarde. Já fomos longe demais. Ontem à noite você me chamou de Ric e eu a chamei de Cherry, e danç amos a cueca juntos. Por sinal, danç amos muito bem, como se estivé ssemos nos cortejando, e essa nossa conversa de agora é uma conseqü ê ncia daquela danç a. Avanç ar e recuar... Nesse jogo, ficamos nos conhecendo um pouco melhor e podemos descobrir se somos compatí veis.

— Compatí veis para quê?

— Para o casamento. O flerte é uma preliminar.

A fria confianç a que ele demonstrava a deixou perturbada, mas ela decidiu que precisava esclarecer a situaç ã o. Nã o podia permitir que ele se achasse no direito de continuar aquele jogo.

— Nã o há razã o nenhuma para que me corteje.

— Discordo, tenho todas as razõ es. Estou procurando uma esposa e você pode ser escolhida.

— É mesmo? — Cherry começ ou a rir. Agora acreditava em Fidel: aquele homem tinha mesmo um parafuso solto.

— Você parece estar achando engraç ado.

— Estou... muito. É engraç ado que pense em mim como prová vel esposa, depois da maneira como me tratou no nosso primeiro encontro. Devia me sentir honrada, mas nã o me sinto. Você nã o tem o direito de me dizer essas coisas. No momento, nã o quero ser esposa de ningué m.

— Sua reaç ã o é natural — respondeu compreensivo, sem se importar com o desprezo que havia na voz dela. — Talvez você nã o se sinta tã o constrangida se eu lhe disser que nã o é a ú nica mulher que está nos meus planos.

— Obrigada. Fico muito mais tranqü ila — respondeu, sarcá stica. Ele riu, irô nico, e acrescentou em tom de desafio:

— Agora está com ciú mes!

— Como você é pretensioso! Nã o estou com ciú mes. Nã o importa quantas mulheres estã o nos seus planos. Nã o quero ser uma delas e acho sua atitude em relaç ã o ao casamento muito fria.

— Nã o é assim que se deve escolher uma esposa... ou um marido, no seu caso... com frieza? As chances de errar serã o menores — argumentou, ló gico. — Acontece que sou um homem prá tico e acho que já está na hora de pensar no futuro de Marita, a filha de Juan, e em Felipe, que parece ser filho dele. Ambos foram deixados aos meus cuidados e precisam nã o só de um pai mas també m de uma mã e: seria mais conveniente se a mesma mulher pudesse cuidar deles e compartilhar da minha cama. Casar é a soluç ã o ó bvia.

— Entendo perfeitamente a situaç ã o — retrucou Cherry, tentando retribuir frieza com frieza. — Mas repito que nã o me inclua nos seus planos. Jamais me casaria com um homem que nã o amo.

— Nã o vamos confundir casamento com amor.

— Para mim, o primeiro só tem sentido se existe o segundo.

— Amor é uma palavra que as mulheres costumam usar para se referir a um punhado de bobagens sentimentais.

— Nã o é verdade! O amor é um sentimento sincero.

— Acho que você imaginava amar o homem que a feriu, e é por isso que está se sentindo infeliz. Mas, se nã o fosse tã o româ ntica, nã o teria se decepcionado quando ele descobriu que você nã o era a esposa ideal para ele.

— E você? — perguntou furiosa, procurando uma forma de magoá -lo. — Nã o está agindo com toda essa frieza porque a mulher que havia escolhido mudou de idé ia a seu respeito?

Encararam-se como adversá rios. A ú nica reaç ã o de Ricardo foi uni sorriso irô nico. Ele parecia nã o se importar com o fato dela conhecer algo sobre sua vida particular.

Touché! — exclamou ele. — E a nossa tré gua?

— Nã o fui eu que a quebrei. Foi você, com essa conversa de namoro e casamento. E que lugar escolheu para falar nisso! No meio do altiplano, longe de tudo e de todos.

— Tenho como testemunhas algumas lhamas curiosas, que nos olham como se desaprovassem — acrescentou Ricardo, caindo na gargalhada.

Cherry olhou para fora e deparou com os rostos brancos de vá rias lhamas que haviam parado para examinar o carro e seus ocupantes. Seus olhares pareciam realmente desaprovadores, e Cherry també m riu, mas ao encontrar os olhos azuis de Ric sentiu aquele estranho choque e a risada morreu nos seus lá bios. Percebendo que estava com o rosto vermelho, levantou Felipe e virou-se para colocá -lo no cestinho, sobre o banco de trá s. O bebê protestou imediatamente.

— Espero que ele nã o dê muito trabalho — murmurou ela.

— Ele nã o protestaria se você o carregasse nas costas, como faz aquela mulher lá fora — observou Ricardo, ajeitando o chapé u e preparando-se para partir.

Quando o carro se colocou em movimento, Cherry observou a í ndia aymaran, com o filho nas costas, conduzindo o rebanho de lhamas. Os animais, atendendo ao comando da mulher, levantaram a cabeç a e se afastaram, trotando.

Ricardo seguiu em direç ã o ao sul, parando apenas uma vez para fazerem um lanche e alimentarem Felipe. A paisagem se estendia diante deles como um oceano de areia. Pequenas vilas erguiam-se no horizonte como miragens que aos poucos tomavam a forma de pobres casebres. No centro de cada vila, invariavelmente, uma igreja també m de adobe. As igrejas contrastavam de forma chocante com a simplicidade das casas. Nas fachadas brancas destacavam-se fantá sticas figuras esculpidas: animais, frutas, flores.

Oruro surgiu no horizonte envolvida por um brilho má gico, dando a impressã o de ser uma cidade de contos de fadas. Mas a impressã o se desfez quando eles se aproximaram dos barracos humildes que se erguiam nas encostas nuas da colina. Umas poucas á rvores raquí ticas enfeitavam a praç a central, em torno da qual havia alguns hoté is pouco convidativos, com varandas meio destruí das. Surpreendentemente, estavam todos lotados, nã o havendo uma ú nica cama vaga.

— Vamos tentar a pró xima cidade — disse Ricardo, calmo. — Lá com certeza vamos encontrar alojamentos.

O sol desapareceu no horizonte em meio a uma luz avermelhada, e a noite caiu de repente. A escuridã o provocou uma estranha sensaç ã o em Cherry, como se eles fossem os ú nicos seres vivos ali no altiplano, felizmente estava em companhia de algué m como Ricardo: apesar da previsibilidade, ele era prá tico e parecia possuir uma forç a mental poderosa, desenvolvida sem dú vida atravé s dos anos passados na solidã o do campo.

Embora a conversa tivesse tomado um rumo impessoal depois da discussã o sobre casamento, Cherry tentou imaginar como se sentiria casada com um homem como Ricardo. Cada vez que esses pensamentos surgiam, ela tentava afastá -los, mas pouco depois ali estavam outra vez, teimosamente.

Alguns edifí cios escuros surgiram diante deles. Uma tabuleta com a palavra " Alojamientos" foi saudada com alegria. Pararam diante da porta. Só havia disponí vel duas- camas em um dos quartos que davam para o pá tio.

— Há mais oito camas no quarto, mas o dono disse que já estã o reservadas para um grupo de geó logos que trabalham na á rea — explicou Ricardo. — É costume da Bolí via, por isso nã o se preocupe. Faç a de conta que está em Blackpool, num quarto lotado de pensã o, esperando para ver o festival de luzes.

A referê ncia a Blackpool quebrou a frieza que se estabelecera entre eles nas ú ltimas horas, e Cherry riu.

— Nã o tem importâ ncia, desde que Felipe esteja aquecido e bem alimentado. Ningué m vai querer dormir no mesmo quarto que ele, caso nã o tenha mamado bem e esteja se sentindo confortá vel.

O dono do alojamento ficou encantado com a presenç a deles e conversou animadamente com Ricardo sobre a situaç ã o do paí s. A mulher dele, uma chola, trouxe uma bacia de á gua quente e colocou-a sobre a mesa da cozinha, para que Cherry pudesse dar um banho em Felipe. Depois de dar a mamadeira a ele, enrolou-o na estola de vicunha e atravessou o pá tio, até o quarto mobiliado com camas de ferro. Ricardo seguiu-a, levando o cestinho, que colocou sobre uma mesinha, longe da porta.

— Acha que ele nã o vai estranhar? — perguntou Ricardo.

— Espero que nã o.

— É melhor você dormir perto dele. Eu fico na cama ao seu lado — sugeriu, prá tico. — Está sentindo frio? Por que nã o veste o poncho que Josefa lhe deu?

Só entã o ela notou que ele estava usando um poncho sobre o casaco. Sentiu-se grata à boa Josefa, pois a peç a era quente e confortá vel.

No refeitó rio, comeram um ensopado de carne, coberto com um molho de pimentas, tomates e ervas, especial para espantar o frio. Chunos— batatas ovais embebidas em á gua, postas ao sol para secai e depois congeladas durante uma semana — flutuavam no molho. Tinham gosto estranho, ao qual Cherry pensou que nunca se acostumaria.

Depois do jantar, o dono da estalagem serviu pisco e uma cerveja muito gelada, poré m excelente. A conversa que se seguiu foi tã o acalorada quanto o molho, e algumas vezes os homens se desentenderam e se exaltaram, mas Cherry nã o conseguiu acompanhar, pois eles falavam muito depressa. Um dos geó logos, um homem simpá tico, de rosto bronzeado e olhos româ nticos, foi buscar um violã o e começ ou a tocar canç õ es folcló ricas, algumas tristes e suaves, outras animadas e rá pidas. As melodias refletiam bem o paradoxo que era a Bolí via.

Sonolenta por causa da comida farta e da bebida, Cherry começ ou a achar que o violonista a olhava de forma estranha e resolveu ir para a cama. Disse boa-noite a Ricardo e levantou-se. Todos os homens se levantaram també m e disseram boa-noite. O violonista inclinou-se é disse alguma coisa a Ricardo.

— O que foi que ele disse? — perguntou, antes de chegarem ao quarto.

— Perguntou se você era minha mulher.

— O que você disse?

— Que você era mais, que era minha esposa. Agora ele nã o vai aborrecê -la. Percebi como ele a olhava e achei melhor protegê -la.

— Obrigada — respondeu em voz baixa, um pouco perturbada pela arrogâ ncia dele. — Que promoç ã o rá pida!

— O que quer dizer?

Diante da porta do quarto, ela se virou para ele e contou da americana, convidada de Victoria, que havia pensado que eles eram noivos.

— Está vendo? Nã o lhe disse que danç amos a cueca como se fô ssemos noivos? — disse Ricardo, rindo. — Noiva num dia, esposa no outro. Por que nã o tenta, Cherry? Comigo.

Apesar do frio, Cherry sentiu o corpo vibrar. Eles estavam muito juntos e uma espé cie de calor se transmitia dele para ela.

— Você é insistente — respondeu Cherry trê mula, sem saber se levava a sé rio as palavras dele ou nã o. — Já lhe disse que nã o estou disponí vel.

Como resposta, ele estendeu a mã o. Com cuidado, ela retribuiu o gesto e se viu envolvida no abrazo. Sentiu o calor dos lá bios dele e fechou os olhos, num abandono total.

O abraç o foi curto, mas de efeito poderoso, deixando-a trê mula e sem fala.

— Vista todas as suas roupas antes de ir para a cama — aconselhou, soltando-a. — Caso contrá rio, vai sentir frio.

Afastou-se, deixando-a sozinha, e voltou à s discussõ es, à mú sica, ao calor do pisco.

Sem tirar o poncho, ela enrolou a cabeç a num lenç o de lã, envolveu os pé s numa malha quente e se aconchegou sob o cobertor grosso e pesado, dormindo quase imediatamente.

Na manhã seguinte os geó logos, tã o alegres na noite anterior, estavam silenciosos e com a cabeç a pesada, sem dú vida em conseqü ê ncia do excesso de bebida. Havia manchas escuras sob os olhos de Ric quando ele se uniu a Cherry e aos companheiros da noite anterior na mesa do café.

Depois de acomodar Felipe no assento traseiro, como de costume,: partiram em direç ã o ao silê ncio brilhante do altiplano. Os habitantes do lugar estavam começ ando a deixar suas casas em direç ã o ao trabalho, embrulhados em grossos ponchos por causa do frio cortante.

— Qual a distâ ncia até Potosi? — perguntou Cherry, animada.

— Mais ou menos cento e cinqü enta quilô metros — murmurou Ric com voz pastosa.

Cherry riu: o pisco da noite anterior tinha deixado marcas nele.

— Potosi nã o é a cidade mais alta do mundo?

— Acho que sim. — A resposta curta tinha como objetivo encerrar a conversa.

— Um urso com dor de cabeç a — brincou Cherry.

— Como? — O carro saiu perigosamente da estrada quando ele se virou para Cherry.

— Estava me referindo ao estado da sua cabeç a esta manhã — respondeu, calma. —Há um martela dentro dela, nã o é? E sua lí ngua está á spera como a de um gato. E pensar que foi você mesmo quem me alertou para os perigos do pisco numa altitude destas. Quer que eu dirija?

— Você faria isso?

— Claro. Quando você quiser. É só dizer e trocamos de lugar.

— E eu ficarei de babá e terei que trocar as fraldas de Felipe? — retrucou ele, á spero. — Existem outras mulheres como você na famí lia?

— Tenho uma irmã mais nova, mas ela nã o é como eu.

— Como é sua irmã?

— Bonita e inteligente.

Pensou em Joanna. Naquele instante devia estar se casando; estranho como nã o havia pensado naquilo antes. A tristeza que havia sentido, e que parecia querer durar para sempre, agora estava distante como se houvesse pertencido a outra pessoa. Ali naquela terra de planaltos infinitos e massas brilhantes de rochas, Edwin nã o tinha mais importâ ncia, era como um fantasma desinteressante comparado ao homem má sculo e cheio de vida com quem ela viajava.

— Com essa observaç ã o quer dizer que nã o possui inteligê ncia nem beleza? — perguntou ele.

— Minha inteligê ncia é mediana, e tenho uma boa dose de senso comum. Mas nã o posso competir com Joanna, que é realmente brilhante. Quanto à beleza... bem, pode ver por você mesmo. No meio de uma multidã o, você nã o me notaria — respondeu com honestidade.

— Quando a conheci, você nã o estava no meio de uma multidã o, era a ú nica mulher no aeroporto e tinha um bebê no colo — replicou Ricardo, com uma careta. — Nã o me importo com a inteligê ncia nem com a beleza das mulheres. É uma mistura diabó lica.

— Por quê? Na sua opiniã o os homens devem ser superiores à s mulheres em tudo? — provocou Cherry, encantada com o jogo.

— Claro que devem — disse Ric, suave.

— Como você é antiquado! — continuou, desafiadora.

— De jeito nenhum. A experiê ncia me ensinou que as mulheres gostam de homens fortes e dominadores... mesmo mulheres como você, que encaram os homens como crianç as que devem ser dominadas atravé s de crí ticas e ironias. Tome cuidado, senorita, nã o sou crianç a nem estou disposto a me deixar dominar.

Cherry achou que já era hora de mudar de assunto, pois a experiê ncia que ele tinha das mulheres era bastante superior à que ela pró pria possuí a sobre os homens.

— Vale um Potosi — disse ela. — Li isso em algum lugar. O que quer dizer?

— É um velho ditado espanhol que significa que alguma coisa é muito valiosa. Potosi, antigamente, nos sé culos XVI e XVII, foi uma das cidades mais ricas do mundo. Quantidades incrí veis de prata eram retiradas das minas de Potosi e carregadas por mulas e Ihamas até La Paz, de onde chegavam a Lima atravé s das montanhas e eram embarcadas em navios para a Espanha.

— Fidel me disse que o primeiro Matino que chegou a este paí s veio com a intenç ã o de fazer fortuna, é verdade?

— Sim, ele veio em companhia de centenas de outros europeus a fim de explorar os í ndios, que viam o ouro e a prata apenas como materiais para fazerem objetos bonitos, e nã o como meio de obter riqueza e*poder. Potosi se transformou numa cidade deslumbrante, mas ao lado das mansõ es suntuosas e das igrejas cheias de esplendor crescia també m o ví cio que costuma acompanhar a riqueza. Depois, gradualmente, as riquezas foram se esgotando e os habitantes partiram, tanto que hoje nã o passa de uma cidade-fantasma, uma espé cie de relí quia da antiga gló ria.

— O que fizeram os Matino quando a prata terminou?

— Sendo oportunistas de primeira classe, já tinham começ ado a abrir minas de estanho, em Betavi. Por isso, quando o estanho tomou o lugar da prata, estavam prontos para fazer fortuna outra vez — falou em tom frio e seco.

— A famí lia ainda trabalha com mineraç ã o?

— Nã o. Meu avô, Alfonso Matino, era muito esperto e cedeu as minas e grande parte das terras que possuí a ao governo. Ningué m se deu conta de que ele havia investido sua fortuna em outros lugares, secretamente. Por seu gesto de generosidade, permitiram a ele conservar Vallera, que ele deixou para sua ú nica herdeira, minha mã e.

— Você parece nã o admirar muito seus antepassados.

— Admiro muito o tino que demonstravam para os negó cios, e, alé m disso, estou usufruindo da fortuna que amealharam. Mas nã o os admiro pela maneira como tiraram tudo e nã o devolveram nada. A mineraç ã o foi a desgraç a deste paí s e estrangulou a agricultura. Tanto que, hoje em dia, apenas um quarto da terra disponí vel é cultivada, e quase todo o alimento que consumimos tem que ser importado.

— Ouvi dizer que seu pai transformou Vallera numa fazenda-modelo — disse Cherry.

— É verdade; fez isso com o dinheiro deixado a minha mã e. Ê um patriota e vê o trabalho realizado em Vallera como uma compensaç ã o pela exploraç ã o a que os Matino submeteram o paí s no passado. Parece que você conversou bastante com Fidel.

— Estive vá rias vezes com ele antes de vir para cá — confessou Cherry. — Ele també m me falou de você.

— O que M que ele disse?

— Que você é a ovelha negra da famí lia e que tem um parafuso solto.

Outra vez o veí culo derrapou perigosamente, saindo da estrada por? alguns segundos.

— Fidel, meu amiguinho — disse Ricardo em espanhol —, espere até nos encontrarmos outra vez! Vai me pagar por isso! — Riu, alegre, e continuou em inglê s: — Fidel e eu sempre fomos rivais no time de futebol, na escola e, principalmente, com as garotas. Sabe por que inventou essas histó rias a meu respeito?

— Nã o, nã o sei.

— Quer você para ele.

— Nã o. Nã o existe nada entre nó s. Ele só queria que eu conhecesse alguma coisa sobre a Bolí via e que nã o tivesse surpresas ao chegar aqui. Nã o tinha nenhum interesse pessoal em mim.

— Acho difí cil acreditar. Você subestima seu poder de atraç ã o e nã o conhece Fidel. Ele estava tentando impressioná -la com o conhecimento que tem da lí ngua inglesa. Parafuso solto! Ovelha negra! Por Deus, se ele estivesse aqui ia se ver comigo!

— Ele foi muito gentil e educado; gostei muito da companhia dele — respondeu Cherry, erguendo o queixo.

— Ele nã o a insultou, nã o danç ou a cueca com você, nã o a beijou, nem falou de casamento com frieza? — perguntou Ric, zombeteiro. — Mais vai esperar por você, pois pretende continuar de onde parou e ir um pouco mais alé m. Isso se você voltar a Londres.

O desafio que havia no olhar dele a desconcertou, e ela desviou os olhos para o brilho esbranquiç ado da estrada que se estendia à frente. À distâ ncia, escondida entre massas imponentes de rochas, aguardava-os a cidade-fantasma de Potosi, a antiga cidade imperial, conhecida como " boca do inferno" pelos escravos que se viram obrigados a trabalhar nas minas.

Mas Cherry nã o estava pensando em Potosi. Estava pensando em Fidel, tentando descobrir por que havia pintado Ricardo Somervell com cores tã o negras. Será que tinha medo de que ela se deixasse envolver pelo charme enigmá tico do amigo que durante toda a vida tinha sido seu rival?

Felipe deu um gritinho e começ ou a chorar. Imediatamente Ricardo tirou o pé do acelerador e parou o carro ao lado da estrada. Virou-se e sorriu para Cherry.

— Está vendo? Estou começ ando a reconhecer as exigê ncias de um bebê. Será que está com fome?

— Ainda nã o. Acho que deve estar molhado.

Ricardo virou-se para trá s e pegou o bebê, enquanto Cherry procurava uma fralda limpa, esperando que a quantidade que havia trazido fosse suficiente e durasse até o fim da viagem. Quando se sentiu protegido pelos braç os fortes de Ricardo, parou imediatamente de chorar e fixou os olhos escuros no rosto do tio. Ricardo empalideceu e Cherry sentiu voltarem as suspeitas que havia tido a respeito dele. Ao entregar Felipe, Ricardo notou a expressã o abalada de Cherry.

— Qual é o problema? Está se sentindo mal? — perguntou, rí spido.

— Nã o, estou ó tima.

— Nã o minta. Estou vendo que nã o está bem. Alguma coisa a ^aborreceu.

— Foi a maneira como você olhou para Felipe.

Os olhos dele brilharam, divertidos, e ele se reclinou no encosto do assento.

— Parece que Deus a abenç oou com uma imaginaç ã o fé rtil. Eu estava apenas pensando na ironia da situaç ã o.

— Qual é a ironia da situaç ã o?

— É que justamente eu, entre milhares de pessoas, devo assumir a responsabilidade pela crianç a de Juan e Elizabeth — respondeu irô nico, zombando de si mesmo.

— Você disse que conheceu a mã e de Felipe. Onde? Na Inglaterra?

— Nã o. Aqui em La Paz. — Ele parecia nã o estar disposto a falar sobre aquele assunto.

— O que é que ela estava fazendo aqui?

— Trabalhava para a Organizaç ã o das Naç õ es Unidas, como voluntá ria. Temos muitos estrangeiros aqui ensinando novas té cnicas de Medicina, Agricultura, etc.

— Conheceu seu irmã o em algum acontecimento diplomá tico?

— Nã o. Fui eu que os apresentei. Vamos embora?

Ele ajeitou o chapé u e, virou-se para o volante, a expressã o dura e impenetrá vel como a de um í ndio. Havia algo estranho na maneira como procurava evitar o nome de Elizabeth. Será que nã o gostava da moç a?

— Vamos. Vou segurar Felipe no colo para que ele possa exercitar um pouco as pernas.

Quando o veí culo se colocou em movimento, o menino começ ou a agitar as pernas vigorosamente, balanç ando os bracinhos e dando gritinhos de alegria. O sol batia na cabecinha morena, produzindo reflexos dourados.

Cherry permaneceu em silê ncio. Seus esforç os para animar Ricardo pareciam haver falhado, pois ele també m estava silencioso. Por vá rias vezes ela fez menç ã o de dizer alguma coisa, mas desistiu. Ele parecia tã o fechado em si mesmo, que poderia se zangar com uma intromissã o nã o desejada.

Ficou mais alegre quando Ricardo decidiu parar em Challapata para o almoç o. Era uma oportunidade para estirar um pouco as pernas e conhecer a vida da cidade. Comeram em um pequeno hotel, que, apesar da aparê ncia desagradá vel da fachada, era muito limpo por dentro. Foram servidos por uma mulher sorridente, de rosto escuro e roupa colorida, que usava um chapé u negro e alto.

— Por que o chapé u dela é diferente? — perguntou Cherry. Ricardo continuava silencioso, imerso em pensamentos desagradá veis.

— Como? — perguntou, levantando o rosto do prato.

— O chapé u da mulher. Ê diferente.

— Ela é uma quecha, e nã o uma aymaran. O chapé u das mulheres tê m caracterí sticas regionais. Daqui para a frente você vai ver muitos chapé us como esse.

— Prefiro os chapé us altos, mas por que as mulheres aymaranusam chapé us arredondados?

— Ningué m sabe. Elas os usam desde o começ o do sé culo. À s vezes imagino que algum comerciante estrangeiro trouxe milhares desses chapé us para a Bolí via quando caí ram de moda no paí s onde ele vivia. Vamos dar a mamadeira para o bebê antes de irmos embora?

Ele parecia ansioso para chegar a Potosi e nã o fez mais nenhuma parada depois de Challapata. Aos poucos, saí ram do altiplano e entraram na regiã o montanhosa, onde a estrada serpenteava pelas gargantas, muitas vezes beirando precipí cios profundos.

O sol foi baixando no horizonte e as sombras começ aram a descer sobre eles. Naquela terra de montanhas onipotentes, o crepú sculo chegava à s trê s horas da tarde.

Com o entardecer, veio o frio, agudo e penetrante, invadindo o carro e envolvendo-os com seus dedos gelados. Depois de atravessarem trê s pontes, chegaram a Potosi, semi-obscura e misteriosa, um conjunto de tetos pontiagudos e muros altos ladeando ruazinhas estreitas.

Ricardo encontrou o caminho sem dificuldade e logo estavam diante de um hotel, uma velha estalagem com uma fonte no centro do pá tio e vá rios bebedouros para cavalos. Uma escada corria paralela a um dos muros, conduzindo até uma varanda para onde davam os quartos.

Daquela vez Cherry ficou com um quarto apenas para ela e Felipe, enquanto Ricardo dividiu o dele com outros dois viajantes. No refeitó rio, foram servidos por um garç om desarrumado, com um chumaç o de cabelo caindo sobre os olhos, parecendo um personagem dos contos de Grimm. A gentileza e o bom humor do rapaz, no entanto, fizeram com que esquecessem um pouco o frio e a aparê ncia pobre do hotel.

Quando Cherry decidiu ir para o quarto, Ric a acompanhou, entrando para ver se estava tudo em ordem. Depois de se certificar de que havia cobertores suficientes e de que Felipe estava bem aquecido, parou na porta e se virou para Cherry, que estava tremendo, apesar das malhas e do poncho que usava.

— Quer que eu fique para aquecê -la durante a noite? — perguntou provocativo, os olhos brilhando de malí cia.

— Nã o, obrigada — respondeu Cherry. — Já tenho muito para recordar desta minha aventura boliviana, quando voltar para Londres.

— Sua aventura boliviana! — repetiu Ric, suave, um olhar demoní aco que colocou Cherry de sobreaviso. — Eu poderia torná -la ainda mais interessante — acrescentou, sugestivo.

— Nã o. E nã o vai me beijar outra vez. Já lhe disse, nã o estou... nã o estou disponí vel — replicou Cherry seca, apesar de sentir o coraç ã o batendo forte.

— Qual a relaç ã o entre você nã o estar disponí vel e o meu beijo? — desafiou, estendendo a mã o. — É só um abrazo, nã o leve a sé rio. É um costume entre nó s e significa apenas " muito obrigado pela sua companhia e boa-noite". A nã o ser, é claro, que você queira dar a ele um significado maior.

Será que nas vezes anteriores ela havia dado um significado maior aos beijos? O prazer nã o havia sido mú tuo? Para ele os beijos nã o tinham significado nada? Olhou-o nos olhos, tentando adivinhar o significado da expressã o zombeteira que via neles.

— Cherry, se recusar o abrazovou começ ar a pensar que está se apaixonando outra vez... e desta vez por mim.

— Como você gosta de atormentar as pessoas, nã o? — exclamou irritada, estendendo a mã o, sem pensar nas conseqü ê ncias.

Fez o possí vel para nã o demonstrar emoç ã o, mas foi incapaz de ficar impassí vel ao contato dos lá bios dele. Mente e corpo uniram-se num incontrolá vel desejo de permanecer nos braç os dele, sentindo o calor e a forç a de seu corpo e a magia de suas mã os dominadoras.

Afastou-se dele com relutâ ncia, evitando encará -lo.

Buenos noches— murmurou, mas Ric nã o respondeu e se afastou em silê ncio. Quando ela levantou a cabeç a, a porta estava se fechando com suavidade.

Embora Ricardo nã o tivesse ficado para aquecê -la, como havia ameaç ado, ele permaneceu nos pensamentos dela a maior parte da noite. Depois de se agitar muito tempo na cama, inquieta e respirando com dificuldade, finalmente adormeceu, para acordar na manhã seguinte com o choro de Felipe e o tilintar de vá rios sinos, o que fez com que ela se lembrasse de que Potosi era uma cidade de muitas igrejas, construí das no passado pelos homens que haviam explorado as minas.

Tremendo de frio, Cherry tirou Felipe da cama e trocou-o. Ele começ ou a chorar quando sentiu o ar frio sobre a pele delicada e só se acalmou depois de tomar a mamadeira no refeitó rio.

Ricardo entrou, alegre è bem-disposto, para tomarem juntos o café da manha, mas Cherry nã o conseguiu comer os ovos mexidos.

— Hoje quem é o urso com dor de cabeç a? — brincou ele.

— Nã o dormi bem — respondeu Cherry, meio tonta e enjoada. — A culpa é sua — exclamou, e depois, lembrando-se do beijo da noite anterior, corou.

— Minha? — Ele perguntou, com aquela expressã o irô nica que ela detestava. — Nã o, acho que nã o. É a altitude. Potosi nã o é um bom lugar. Deve tomar bastante chá de coca esta manhã. Quero chegar a Vallera ainda hoje, por isso nã o se deixe dominar pela soroche.

Aquele tom frio e cheio de desprezo a deixou de sobreaviso. Era como se estivesse outra vez na biblioteca ensolarada de Juan Benitez pela primeira vez. Quando chegou o chá, ela bebeu sem discutir e se sentiu um pouco melhor. A ansiedade diminuiu e até conseguiu comer um pouco.

— Está melhor? — perguntou Ricardo.

— Estou, obrigada. — Sorriu para ele, mas Ric nã o devolveu o sorriso. — Vai me transformar numa viciada em coca — acrescentou brincalhona, sentindo que uma vez mais o relacionamento deles havia mudado. Ricardo estava mais fechado que nunca. Seria a proximidade da casa?

— E qual é o mal? Nã o é melhor seguir os costumes da terra em lugar de lutar contra eles?

—Costumes como o abrazo, o flerte e dormir no mesmo quarto? Por um instante passou um brilho de humor pelos olhos dele, mas logo desapareceu.

— Está começ ando a compreender — murmurou Ricardo. — Agora que está se sentindo melhor, quero lhe fazer uma proposta. Gostaria de continuar como babá de Felipe, se lhe pedissem?

— Você nã o disse que ia procurar uma esposa que cuidasse dele e de Marita?

— Disse, mas estava só brincando com você quando lhe disse que considerava a possibilidade de fazê -la minha esposa. Queria ver sua reaç ã o e fiquei conhecendo muito da sua personalidade, Cherry.

Os olhos de ambos se encontraram: os dela, confusos, e os dele, frios e enigmá ticos.

— Ó timo. Espero que tenha se divertido bastante — respondeu, ofendida.

— Ficou ofendida outra vez — disse Ricardo, com um suspiro. — Acho que à s vezes sou meu pior inimigo. Vai pensar na minha proposta? Você nã o precisa voltar à Inglaterra com urgê ncia. Em Vallera, nã o há ningué m para cuidar de Felipe. Minha mã e já está muito velha e Francisca nã o gosta de crianç as.

— Por que nã o oferece o emprego a Josefa?

— Poderia oferecer, mas nã o faz sentido. Você está disponí vel para o trabalho, embora nã o esteja para o casamento. Uma mulher moderna e liberada, nã o é?

Sentiu vontade de esbofeteá -lo, mas se conteve.

— Está bem, vou pensar — concordou, fria.

Bueno. É o má ximo que posso esperar antes que você conheç a Vallera e minha mã e. Agora, se você e Felipe estã o prontos, podemos ir. Vai achar o clima no vale bem mais agradá vel.



  

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