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CAPÍTULO II



 

Ela podia ter pedido a ele que se identificasse no aeroporto, mas nã o tinha tido chance; o homem havia apanhado a cesta de Felipe e saí do com aquele jeito arrogante, sem ao menos informá -la quem era e o que estava fazendo ali.

— Estou perguntando agora — retrucou fria, erguendo o queixo. Pequenos demô nios azuis pareciam danç ar nos olhos que a observavam.

— Entã o vou lhe dizer. Sou Ricardo Somervell Matino, filho ú nico de Arthur Somervell, fazendeiro, que se casou com Bianca Matino Benitez, viú va do general Pablo Benitez; portanto, meio-irmã o de Juan Benitez. També m sou fazendeiro e mais conhecido como RicSomervell — respondeu, suave.

Cherry sentiu-se um pouco abalada, mas procurou esconder a pró pria perturbaç ã o e retribuiu o olhar zombeteiro com um olhar lí mpido e câ ndido. Entã o estava face a face com a ovelha negra da famí lia, aquele que, segundo Fidel, tinha um parafuso solto. Seria bom se tivesse mais informaç õ es sobre ele, pois continuava sentindo a hostilidade que ele demonstrava em relaç ã o a ela e a Felipe.

— Bem-vinda a La Paz e a esta casa. Meu irmã o morou aqui quando trabalhou na embaixada da Bolí via.

Naquele momento, Felipe se mexeu no cesto e chorou, anunciando que já era hora de comer. Cherry deu um passo em direç ã o a ele, mas sentiu os pé s pesados como chumbo, a cabeç a girando assustadoramente, os pulsos acelerados. Era como se algué m tivesse lanç ado um feitiç o sobre ela.

— Josefa, cuide da crianç a — Ricardo ordenou. — Vou levar a senhorita até a biblioteca. Faç a um chá e traga para ela, por favor.

Si, senor— respondeu a mulher morena, de rosto impassí vel, adiantando-se.

— Nã o, nã o é preciso — protestou Cherry. Assustada, viu Felipe ser erguido em braç os estranhos e levado para fora da sala. Quis ir atrá s da mulher, mas foi impedida por RicSomervell.

— Fique tranqü ila, senorita— ordenou, a voz perigosamente suave. — Josefa nã o vai machucá -lo. Ela sabe lidar com crianç as. Era ela quem cuidava da filha de Juan.

Cherry nã o conseguiu reprimir uma exclamaç ã o de surpresa, o que provocou um sorriso irô nico de Ricardo.

—Vejo que ainda nã o sabia que Juan també m tinha uma filha, srta. Hilton — disse. — Ela tem dez anos de idade e vive com a avó, minha mã e, em Vallera, perto de Betanzos, a algumas centenas de quilô metros daqui.

O coraç ã o de Cherry acelerou ainda mais com as novas informaç õ es. Fidel devia ter dito que Juan fora casado com outra mulher, antes da mã e de Felipe; assim ela nã o pareceria tã o ignorante. Tal ignorâ ncia tornava-a suspeita aos olhos de Ricardo Somervell.

— Venha até o escritó rio. Vai se sentir melhor depois que tomar o chá preparado por Josefa — disse Ricardo. — Quero lhe fazer algumas perguntas a respeito do bebê e da sua presenç a aqui em La Paz. Nã o vou tomar muito do seu tempo e logo poderá descansar da viagem. Depois... — Calou-se e olhou-a fixamente por alguns instantes, depois deu de ombros. — Quiensabe? — murmurou. — O que vai acontecer depois depende inteiramente das suas respostas.

A atitude autoritá ria e fria a perturbou. Sem outra alternativa, obedeceu e entrou no escritó rio, um cô modo de teto alto e paredes cobertas de prateleiras cheias de livros. A decoraç ã o era antiga, complementada por um espesso tapete verde e ouro.

— Sente-se, por favor — disse Ricardo. Falava com voz suave e educada, mas sob a delicadeza Cherry detectou uma inflexibilidade muito difí cil de ser vencida.

Ele se dirigiu à imensa escrivaninha de madeira escura e se sentou em um dos cantos, em atitude negligente. Cherry notou que usava botas de couro, aparentemente muito caras. Sob o terno areia, vestia uma camisa azul, do mesmo tom que seus olhos, bordada a mã o. A julgar pelas roupas, devia ser muito rico.

Ele parecia nã o ter pressa alguma e, antes de começ ar a fazer perguntas, serviu-se de uma bebida dourada que se encontrava num fino recipiente de cristal. Notou que ela o observava, curiosa, e explicou:

— Isto é pisco, uma bebida local. Gostaria que provasse, mas, como ainda nã o se acostumou à altura, é melhor que evite o á lcool. Um chá é mais recomendá vel e vai tranqü ilizá -la.

Um pouco aborrecida com a insinuaç ã o de que nã o estava tranqü ila, Cherry ergueu o queixo e decidiu que já era hora de tomar a iniciativa, caso contrá rio ficaria ali sentada durante todo o dia. Para Ricardo Somervell, hoje ou amanhã pareciam ser palavras sem muito sentido.

— Gostaria de saber por que fui trazida para cá, e nã o levada diretamente até dona Bianca. O sr. Fidel Diaz, de Londres, me recomendou que nã o deixasse Felipe um só instante, até que ele estivesse nos braç os da avó. É um bebê muito valioso — disse com firmeza.

Ele a olhou com aprovaç ã o e nã o respondeu logo. Tomou um gole de pisco, colocou o copo sobre a escrivaninha e falou:

— Entã o conhece Fidel. Ele é divertido, nã o acha? E mestre em intrigas. Provavelmente por isso é diplomata.

Cherry nã o teve chance de responder, pois a porta se abriu sem ruí do e Josefa entrou, trazendo uma bandeja de prata, sobre a qual brilhava um conjunto de porcelana chinesa. Alé m do chá, havia na bandeja um prato de doces e outro de nozes. Josefa sorriu de leve e Cherry, animada por aquele raiozinho de simpatia, sorriu també m.

— Obrigada, Josefa.

—De nada, senorita— respondeu a mulher, saindo sem ruí do.

Cherry se sentia um pouco trê mula. Na verdade estava meio assustada. Segundo a descriç ã o de Fidel, o filho de Arthur Somervell tinha um cará ter fraco e pouca inteligê ncia, mas o homem parado diante dela nã o parecia nem fraco nem pouco inteligente. Na verdade, Cherry o achava formidá vel, e tinha dú vidas sobre a pró pria habilidade em lidar com ele.

Assim que Josefa saiu, Ricardo levantou-se, foi até a mesinha, pegou a xí cara e o aç ucareiro e passou-os a Cherry. Ela aceitou, incapaz de controlar o tremor das mã os. O lí quido dentro da xí cara tinha uma cor esverdeada e sobre ele boiavam partí culas de folhas secas'.

— Beba, vai lhe fazer bem — ordenou Ricardo, suave.

Sentindo necessidade de um tranqü ilizante, ela bebeu. O gosto nã o era dos melhores, mas aliviou a secura da garganta de Cherry, que tomou mais um gole.

— O que é? — perguntou ela.

— Mate de coca.

— Coca? — exclamou, colocando a xí cara de volta sobre a bandeja. Tinha aprendido com Fidel que a coca era extensamente cultivada

na Bolí via, nos vales verdes dos yungas, e que das suas folhas se extraí a a cocaí na.

— Algumas coisa errada? — perguntou Ricardo.

— Nã o quero me tornar uma viciada — respondeu, lanç ando a ele um olhar acusador.

Ele riu, revelando os dentes muito brancos, que contrastavam com o bronzeado atraente do seu rosto.

— Mas aqui todo mundo toma esse chá. Nã o é mais perigoso do que o chá que você s tomam na Inglaterra. Quantas xí caras toma por dia? Acho que nunca lhe passou pela cabeç a dizer que é viciada.

— Ouvi dizer que aqui os í ndios mascam coca para se drogar.

— Para fazer a vida aqui no altiplano mais suportá vel — completou ele. — Tem razã o, eles se drogam mastigando folhas de coca juntamente com um torrã o de quinoa. Um reage ao outro e produz uma sensaç ã o de tranqü ilidade e resignaç ã o. A mistura també m acalma a fome e a dor, mas tomada em excesso provoca danos irrepará veis, tanto fí sicos quanto mentais. Mas isto — apontou para a xí cara — é ú til, especialmente para acalmar a soroche. Tome sem susto, nã o vai lhe fazer mal. — Fez uma pausa e acrescentou, malicioso: — Nem eu vou lhe fazer mal.

Cherry ergueu os olhos e sustentou o olhar azul, percebendo que ele havia notado que ela estava um pouco assustada.

— Por que me trouxe aqui? — perguntou Cherry.

— Já lhe disse... quero fazer algumas perguntas. A notí cia da existê ncia de um outro neto aborreceu mamã e profundamente; ela já nã o é mais jovem e nã o tem boa saú de. A morte trá gica de Juan abalou-a demais, por isso me pediu que viesse em lugar de Francisca. Ela quer se assegurar de que nã o vã o impingir um impostor como neto.

— Impostor? Nã o, Felipe é mesmo filho do seu meio-irmã o. Tenho papé is que provam isso — explicou Cherry. Fidel bem que a avisara dos problemas que enfrentaria, e nã o era de admirar que fossem provocados por Ricardo. Abriu a bolsa para pegar os papé is que provavam a identidade dos pais de Felipe e a legalidade do casamento deles.

— É claro que você nã o faria toda essa viagem sem trazer qualquer prova — disse Ricardo, com um tom de desprezo que a alarmou. — Quem providenciou os papé is para você? Fidel? Quando o conheceu? Antes ou depois de conhecer Juan?

— Nã o conheci seu irmã o.

— Nã o? — Sua incredulidade era evidente. — Deve tê -lo visto ao menos uma vez. Ou nã o disseram os nomes um ao outro, na ocasiã o?

Cherry mal acreditava no que ouvia, parecia estar vivendo um sonho, um pesadelo terrí vel do qual nã o conseguia acordar. Chocada com o insulto, sentiu um repentino enjô o e nã o conseguiu falar.

— Juan nã o era nenhum santo, no que se refere a mulheres — continuou Ricardo, com o mesmo tom de desprezo. — Você nã o é a primeira que tenta tirar proveito da amizade com ele. Quanto quer?

Aquela pergunta foi um golpe duro, mas trouxe Cherry de volta à realidade. Ela lutou contra a moleza que a invadia, sentou-se muito ereta na poltrona, ergueu o queixo e disse com frieza:

— Acho que nã o o entendi, senor.

Ele suspirou, como se també m estivesse farto daquele conversa.

— Quero saber quanto deseja receber para voar de volta à Inglaterra com o bebê e esquecer que um dia conheceu Juan Benitez.

— Mas Felipe nã o é meu filho! — Negou com veemê ncia, sentindo uma pontinha de triunfo ao perceber que ele tinha ficado impressionado com o tom sincero da sua voz. — O sr. Diaz nã o lhe explicou? A mã e també m morreu no desastre. Sou apenas uma babá contratada para trazer Felipe até aqui. — Tirou da bolsa o passaporte e os papé is de Felipe. — Pode comprovar por si mesmo. Estiveram casados por algum tempo... e este é o meu passaporte, que prova que sou realmente eu, Cheryl Hilton, solteira, um metro e setenta, cabelo loiro, olhos acinzentados.

Ela nã o conseguiu evitar o tom zombeteiro, apesar do olhar ameaç ador que ele lanç ou na direç ã o dela. Pegando o passaporte e os papé is, ele foi até a escrivaninha, abriu o envelope e examinou com cuidado o conteú do. Cherry chegou a se arrepender de ter entregue os documentos, pois Ricardo poderia facilmente destruí -los.

Cherry tremia: estava fazendo tudo errado, permitindo que levassem Felipe para longe dela, deixando que aquele homem a insultasse abertamente, entregando a ele as provas da identidade de Felipe, bem como os pró prios documentos.

— Obrigada, srta. Hilton. Peç o que me desculpe. A senoritanã o é o que eu pensava.

Falava outra vez em tom educado; geladamente educado, como se o humilhasse pedir desculpas. Cherry olhou para ele e percebeu, surpresa, que estava pá lido e ligeiramente trê mulo, como se lutasse contra uma profunda emoç ã o. Possivelmente, como Fidel e Isabella, també m estivesse sofrendo com a morte do meio-irmã o.

Como ele nã o fizesse menç ã o de devolver o passaporte, retirou-o da mã o dele e guardou-o na bolsa, aliviada por estar de posse dele outra vez.

— Gostaria de obter provas mais seguras — disse Ricardo, guardando o envelope no bolso do casaco.

— Tenho esta prova — respondeu ela, triunfante. Graç as a Deus Fidel lhe dera o medalhã o!

— Posso ver?

Ele estendeu o braç o, a mã o aberta. Por baixo da camisa azul, entrevia-se um reló gio de ouro. De repente Cherry se sentiu oprimida pela riqueza e elegâ ncia das roupas de Ricardo Somervell e pelo luxo da casa. Que chance teria algué m como ela diante de tal poder? Como poderia se recusar a mostrar o medalhã o?

Com as mã os trê mulas, tirou o medalhã o da bolsa e estendeu-o a ele. Para sua surpresa e alí vio, ele nã o tentou pegá -lo. Apenas respirou fundo e empalideceu ainda mais, lutando para recuperar o autocontrole.

— Reconhece-o?

— É um medalhã o. Objetos como este podem ser comprados aqui no mercado — respondeu com indiferenç a. — Onde o conseguiu?

— Foi o sr. Diaz quem me entregou. E nã o é uma bugiganga qualquer; é de prata maciç a e pertence à famí lia Matino.

— Fidel lhe disse onde o encontrou?

— Estava no cestinho onde Felipe foi encontrado depois do acidente. Mais que os papé is, foi esse medalhã o que levou o sr. Diaz a concluir que o menino é mesmo filho do seu irmã o.

— Entendo. Posso vê -lo mais de perto, por favor?

Com alguma relutâ ncia, ela permitiu. Ele foi até a escrivaninha, abriu uma das gavetas e retirou uma lente de aumento, com a qual examinou atentamente o medalhã o.

Caiu um silê ncio pesado sobre a sala quente e ensolarada. Lá fora, no pá tio, os pá ssaros cantavam. E mais longe, na estrada, ouvia-se o ruí do de um carro que subia a colina.

Enquanto esperava, ela examinou os livros encadernados, com inscriç õ es douradas. Entre os quadros pendurados em outra parede, teve a impressã o de reconhecer um autê ntico Dali. Na bandeja de prata, uma pantera se erguia nas patas traseiras, como no medalhã o.

A lente de aumento foi pousada sobre a mesa com ruí do. Ricardo brincava com o medalhã o, passando-o de uma mã o para a outra, como se lidasse com um objeto sem valor. Depois colocou-o no bolso do casaco.

— Vou ficar com isto e com os papé is — anunciou.

— Mas... — Cherry calou-se, ao olhar para ele.

— Quero mostrá -los a minha mã e. Faz alguma objeç ã o?

Ela sacudiu a cabeç a. Seria perda de tempo discutir com ele: tinha todo o direito de ficar com o medalhã o e com os papé is. Mas como saberia se ele estava mesmo falando a verdade e se iria mostrá -los a dona Bianca?

Já estava vencida antes mesmo de completar a missã o que lhe haviam confiado. Sentiu um profundo ressentimento pelo homem que a vencera.

— Talvez possa me dizer por que algué m como você se envolveu neste assunto deprimente — perguntou em voz baixa. Tinha recuperado o controle e estava novamente sentado no canto da mesa.

— Sou uma babá experiente e fui recomendada ao sr. Diaz, pelo tio da minha ú ltima patroa, como pessoa capaz de cuidar do bebê durante a longa viagem e entregá -lo sã o e salvo à avó. O senhor me impediu de cumprir minha missã o, e isso me preocupa — respondeu Cherry. — Compreendo que tenha suspeitas. Nã o quer acreditar que Felipe seja filho do seu irmã o, pois ele se colocaria entre o senhor e a heranç a dos Matino, nã o é?

Em dois passos rá pidos ele estava diante dela, ameaç ador.

— Tenha cuidado, senhorita. Está fazendo comentá rios a respeito de assuntos que nã o lhe dizem respeito. — Falava com falsa suavidade, em tom de advertê ncia.

— O que mais posso fazer? — retrucou, maliciosa. — Alé m de raptar a Felipe e a mim, també m me insultou. Como posso ter certeza de que é mesmo Ricardo Somervell? Tem algum documento de identidade para me mostrar?

Os olhos dele brilharam por um instante; depois ele riu e balanç ou a cabeç a.

— Ponto para você. Nã o tenho. Tenho apenas a palavra de Josefa para provar que sou o filho de minha mã e e de meu pai. Pode perguntar a ela, se quiser. Ou nã o fala castelhano?

— Falo o suficiente — respondeu, desarmada pelo bom humor dele. — Mas imagino que ela vá tomar o seu partido, e nã o o meu; por isso nã o vou me preocupar em falar com ela. O que pretende fazer com Felipe?

— Vou levá -lo a Vallera, para minha mã e. O problema mais imediato é o que fazer com você. Está livre para partir quando quiser. Já tomou as providê ncias necessá rias para voltar à Inglaterra?

A decepç ã o tomou conta dela como uma onda enorme, tirando toda a sua energia. Explicar a ele por que queria terminar o trabalho para o qual havia sido paga parecia uma tarefa impossí vel.

Ricardo se sentou ao lado dela e seus joelhos se tocaram de leve. Cherry afastou os dela depressa, perturbada pelo contato com os mú sculos rijos envolvidos pelo tecido macio.

— Ficou decepcionada — murmurou ele. — Por quê?

Surpresa pela mudanç a de atitude, correspondeu ao interesse dele e tentou explicar:

— Gostaria de fazer o que o sr. Diaz me pediu: entregar Felipe pessoalmente à avó.

Ele correu os olhos pelos cabelos e pelo rosto de Cherry, como se a estivesse vendo pela primeira vez.

— Entendo — murmurou. — O mí nimo que posso fazer para reparar o rapto e os insultos é convidá -la a permanecer nesta casa por mais um dia ou dois. Preciso terminar um trabalho aqui na cidade e em seguida vou levar Felipe até Vallera. Pode vir comigo para cuidar dele durante a viagem, e també m... — fez uma pausa e acrescentou, irô nico — e també m para ter certeza de que nã o vou fazer mal a ele.

A ironia fez com que ela se sentisse uma tola, como se tivesse feito uma tempestade em copo d'á gua.

— Mudou de idé ia? Afinal acredita que ele é filho do seu irmã o?

— Tenho menos razõ es para duvidar. Vejo que você nã o compreende minha desconfianç a, mas garanto que estou apenas tentando proteger minha mã e. Nã o tí nhamos a menor idé ia de que Juan havia se casado outra vez. Como já disse, houve situaç õ es semelhantes, no passado.

— Compreendo.

— Quer dizer que vem comigo? Vallera fica nos vales de Potosi. Se vier, pode terminar seu trabalho e voltar à Inglaterra com a consciê ncia tranqü ila.

Cherry olhou para ele com frieza. Ele havia jogado uma cartada decisiva, como se adivinhasse que a lealdade dela para com Felipe nã o permitiria que ela recusasse o convite. Era muito mais esperto do que a descriç ã o de Fidel deixava suspeitar. Por que a mudanç a de atitude em relaç ã o a ela? Devia confiar nele? Ao que tudo indicava, nã o tinha outra alternativa, se quisesse se desincumbir da missã o que lhe fora confiada.

— Sim, vou — respondeu fria, sem revelar as dú vidas que a assaltavam.

Bueno. — Por alguma razã o, ele pareceu aliviado. — Vamos naperua e em dois dias e meio estaremos lá... caso nã o ocorram acidentes. É agradá vel dirigir nesta é poca do ano. No inverno as estradas ficam praticamente intransitá veis.

Ele se calou, e um silê ncio constrangedor caiu entre ambos. A sú bita mudanç a no relacionamento deles deixava-os incertos a respeito do que fazer em seguida.

— Gostaria de conhecer La Paz e os arredores, enquanto está aqui? — perguntou Ricardo, num sú bito interesse pelo bem-estar dela.

— Gostaria muito, se possí vel.

— Lamento muito nã o poder levá -la pessoalmente, mas vou pedir à minha vizinha que a acompanhe. Ela é inglesa e casada com um homem de negó cios boliviano. Chama-se Betty Garcia e provavelmente vai ficar encantada em conhecer uma pessoa recé m-chegada da Inglaterra. — Fez uma pausa e sorriu com ironia. — Talvez possa até ouvir suas queixas a meu respeito.

Ele tinha percebido as desconfianç as de Cherry em relaç ã o a ele e estava oferecendo a ela uma oportunidade de conferir com a vizinha as informaç õ es recebidas. Sendo també m inglesa, a mulher provavelmente a ouviria com simpatia.

— Obrigada. É muita gentileza sua — respondeu, ainda fria. Outra vez houve um silê ncio entre eles. Cherry começ ava a desejar

que ele se afastasse um pouco, pois aquela proximidade estava provocando nela uma estranha reaç ã o. Jamais sentira aquilo por nenhum outro homem, nem mesmo por Edwin. Nã o conseguia mais sustentar o olhar penetrante de Ricardo.

— Entã o estou perdoado? — perguntou com suavidade, surpreendendo-a.

— Perdoado? Por quê?

— Pelo que pensei e disse a seu respeito.

Cherry sentiu a cabeç a girando outra vez. Tinha um imenso desejo de se inclinar sobre ele, acariciar o rosto moreno, passar os dedos pelos cabelos encaracolados. Queria sentir as carí cias daquelas mã os fortes e elegantes, o contato daqueles lá bios má sculos e sensuais.

Amedrontada com as pró prias emoç õ es, virou a cabeç a bruscamente e levantou o queixo. Rejeitando os pró prios sentimentos, ela parecia estar rejeitando a aproximaç ã o dele.

— Vejo que nã o me perdoou. — A frieza daquelas palavras fez com que ela olhasse para ele outra vez. Ricardo tinha se levantado e caminhava em direç ã o à porta.

Percebendo o que havia acabado de fazer, ela també m se levantou.

— Nã o tive essa intenç ã o... — apressou-se a explicar, mas foi interrompida por um gesto rí spido.

— Nã o tem importâ ncia — disse ele, frio — Tem todo o direito de se sentir ofendida. Vou dizer a Josefa que prepare um quarto para você e para o menino. Nã o vai ser difí cil fazer amizade com ela, já que ambas falam castelhano. Ela é uma chola.

— O que quer dizer isso?

— Aqui na Bolí via, a palavra tem um sentido diferente do que lhe atribuem em outros paí ses da Amé rica do Sul. Aqui, cholaé a mulher de sangue í ndio que ainda se apega aos costumes e tradiç õ es da sua raç a. Agora preciso ir. Tã o logo quanto possí vel, será informada do dia em que partiremos para Vallera. Vou falar com a sra. Garcia antes de ir para o trabalho. Adios, senorita.

Abriu a porta e saiu em silê ncio. Quando Cherry percebeu, estava murmurando um tí mido adiospara a porta fechada.

Ela passou o resto do dia descansando, procurando fazer amizade com Josefa, e cuidando de Felipe. Tentou fazer tudo com calma, sem se agitar, para que o ataque de tontura nã o se repetisse.

Josefa revelou ser muito gentil, competente e ansiosa por cuidar de Felipe. A casa era confortá vel e bem equipada, embora à noite fosse um pouco fria. Cherry só comeu alimentos leves, evitando tudo que pudesse provocar enjô os. Mesmo assim, à noite, ao deitar, respirava com dificuldade.

Sem conseguir dormir, tentou analisar tudo que havia acontecido desde a chegada ao aeroporto de El Alto. Sua acolhida tinha sido bem diferente do que esperava: em vez de uma mulher de meia-idade, -bondosa e gentil, tinha sido recebida por um homem determinado, rico e simpá tico. Em lugar de calorosas palavras de boas-vindas, tinha recebido insultos; e depois, para seu espanto, recebera um convite, praticamente uma intimaç ã o, para ir até Vallera.                                   

Devia acompanhar Ricardo Somervell? Confiar nele? Que outra; alternativa ela tinha? Tomar um aviã o e voltar para a Inglaterra, deixando a ele a tarefa de levar o bebê para a avó? Mas isso ela nã o queria. Queria ficar e terminar sua missã o.

O som de um violã o e um canto suave subiram até ela, partindo dd andar té rreo. Percebeu que Ricardo tinha voltado e que tinha convidados. Os pensamentos agitavam a cabeç a de Cherry, fantasiosos e tristes, provocando uma forte dor de cabeç a. Imaginou que Ricardo a abandonava na selvagem Bolí via, em companhia de Felipe. " Tudo pode acontecer na Bolí via. " As palavras das suas companheiras de viagem voltaram a atormentá -la, enquanto a mú sica prosseguia lá embaixo.

Desesperada, levantou e tomou duas aspirinas, esforç ando-se para relaxar e dormir. No dia seguinte conheceria Betty Garcia, que lhe diria se podia ou nã o confiar em Ricardo Somervell. Cherry riu de si mesma. No dia seguinte... amanhã... Já estava começ ando a agir como uma boliviana.

Na manhã seguinte o dia estava fresco e ensolarado, e o ar tã o leve e puro que chegava a brilhar. Depois de trocar e alimentar Felipe e tomar o café da manhã, Cherry conversou um pouco com Josef a e deu um passeio pelo pá tio, onde pá ssaros cantavam entre as flores perfumadas. Os pequeninos pá ssaros moviam-se com tanta rapidez que ela nã o conseguia ver direito; mesmo enquanto retiravam né ctar das flores, eles cantavam sem parar.

Estava tentando determinar as cores das avezinhas quando uma mulher entrou no pá tio.

—Você deve ser a moç a que chegou da Inglaterra — disse. — Sou Betty Garcia, a vizinha. Ricardo me pediu que a procurasse. Muito prazer!

Tinha mais ou menos trinta e cinco anos, era alta e magra. Os cabelos castanhos, entremeados de fios prateados, cortados muito curtos, acentuavam os traç os firmes de seu rosto. Examinou Cherry com curiosidade enquanto se cumprimentavam.

— Achei que gostaria de dar um passeio até o lago — disse Betty. — O dia hoje está ideal.

— Gostaria muito. Será que podí amos també m passar pelas ruí nas de Tihuanaco? — perguntou Cherry.

— Claro! Mas vista uma roupa bem quente e traga um lenç o para cobrir a cabeç a, pois o vento lá é cortante.

Maravilhada com a perspectiva de sair de casa, Cherry entrou para avisar Josefa do passeio e pedir a ela que cuidasse de Felipe. Depois vestiu uma malha grossa, apanhou um lenç o e desceu para encontrar Betty.

— Vamos no meu velho quebra-ossos — disse Betty. — A aparê ncia dele nã o é das melhores, mas o motor funciona maravilhosamente, e é isso que conta aqui.

Logo estavam atravessando uma regiã o rochosa, semelhante a uma paisagem lunar. À frente delas estendia-se o planalto, que parecia interminá vel: escuro, sem vida, " o fim do mundo". Lá longe, na linha do horizonte, montanhas azuis e prateadas erguiam-se assustadoras, como uma visã o de outro mundo.

Em volta de pequenos lagos cresciam margaridas amarelas e minú sculas flores azuis, quebrando a monotonia marrom. Encontraram piais cores nos ponchos dos habitantes de uma pequena vila de casebres que surgiu mais adiante. As torres de uma igreja recortavam-se contra o azul profundo do cé u e os sons plangentes de um sino ecoavam no ar.

A cidade de Tihuanaco era um conjunto de telhados vermelhos, paredes muito brancas e muitos arcos. Estacionaram o carro numa rua lateral e foram até as ruí nas de basalto e pedra, onde pirâ mides perfeitas haviam sido erguidas por mã os humanas há centenas de anos.

Um vento frio gemia entre as rochas, agitando o lenç o de Cherry, que admirava a Porta do Sol, maravilhada e muda. Um rosto de pedra, semelhante a uma esfinge, ligado a um corpo desproporcionalmente pequeno, parecia olhar para ela.

— A primeira vez que vi esta porta foi numa foto pendurada em uma parede de um escritó rio, em Londres — comentou. — Mal posso acreditar que estou diante dela. É enorme!

— Foi esculpida em um ú nico bloco de pedra — respondeu Betty.

— Estamos tã o distantes de tudo aqui em cima. Estou começ ando a sentir que o resto do mundo nã o existe.

— Compreendo o que sente. També m tive a mesma impressã o dez anos atrá s, quando estive aqui pela primeira vez. Impossí vel imaginar que existem ô nibus de dois andares e trens subterrâ neos, nã o é?

— Por que veio para cá? — perguntou Cherry. Até aquele momento, a conversa tinha sido impessoal, embora Cherry adivinhasse que Betty morria de curiosidade sobre a presenç a dela na casa de Juan Benitez.

— Estava cansada de ensinar castelhano numa escola de meninas e decidi conhecer o mundo. Entrei em contato com a Organizaç ã o das Naç õ es Unidas, que me mandou aqui para ensinar inglê s. Nã o saí mais, a nã o ser para duas visitas a meus pais. No escritó rio de quem você viu a fotografia da Porta do Sol?

— De Victor Sutton.

— É mesmo? Que coincidê ncia! Vic estava aqui quando cheguei à Bolí via. Viajamos juntos pelo paí s, mostrando dois filmes das peç as Hamlet e Henrique V em diversas universidades e organizaç õ es culturais. Foi divertidí ssimo. Nessa é poca fiquei conhecendo Pedro, meu marido. Ele estava hospedado na casa de um professor universitá rio que convidou a Vic e a mim para um jantar.

— Entã o foi amor à primeira vista — brincou Cherry.

— Nã o exatamente, mas quase! — Betty riu. — Quando voltei a La Paz, ele me convidou para sair, e depois disso passamos a nos encontrar regularmente. O que estava fazendo no escritó rio de Vic? També m trabalha na embaixada?

— Nã o, meu trabalho nã o é assim tã o importante, embora seja de natureza diplomá tica. O sr. Somervell nã o lhe disse por que estou aqui?

— Nem uma palavra. Disse apenas que estava hospedando uma pessoa da Inglaterra que gostaria muito de conhecer a regiã o e me perguntou se gostaria de acompanhá -la. Para falar a verdade, fiquei tã o surpresa ao vê -lo que até me esqueci de perguntar o que você estava fazendo aqui.

— Ficou surpresa por quê?

— Tinha ouvido falar dele, mas nã o o conhecia pessoalmente. Ele é uma figura dominadora, nã o acha? Aquela mecha prateada e aquele ar de pantera deixam a gente sem fô lego. Brrr! Este vento penetra nos ossos. Vamos descer até as ruí nas do pá tio?

Desceram alguns degraus de pedra localizados entre dois só lidos pilares, també m de pedra. O vento assobiava entre o mato que crescia no meio das rochas, levantando a poeira que se acumulava no piso do pá tio.

— Supõ e-se que estes sejam os restos de um altar — disse Betty, apontando para um grupo de pedras. — Mas nã o há certeza de que o lugar tenha algum significado religioso. Existem muitas teorias a respeito.

— O que significam as figuras esculpidas? — Cherry olhou para as estranhas cabeç as humanas esculpidas na rocha.

— Sã o seres criados por Virajocha, o Senhor Criador. Transformou-os em pedra porque nã o quiseram ouvir a um dos seus profetas.

— Ah, e o Deus que Chora? — perguntou Cherry, lembrando da outra fotografia. — Onde está a está tua?

— Na cidade, no Prado, a rua principal. Posso mostrá -lo à você amanhã, se quiser vir comigo fazer compras. Difí cil é acreditar que isso é tudo o que restou de uma grande civilizaç ã o que existiu antes da civilizaç ã o inca.

— Que civilizaç ã o?

— Provavelmente seus ancestrais — respondeu Betty, apontando para dois meninos de roupas rasgadas e enormes chapé us, que olhavam com curiosidade para as duas mulheres desconhecidas. — í ndios aymaran. Vivem no altiplano, embora o governo tenha feito esforç os no sentido de transferi-los para regiõ es de climas mais amenos. Apegam-se teimosamente a suas casas. Ia me dizer o que está fazendo na casa dos Benitez?

— Trouxe o filho de Juan Benitez da Inglaterra.

— Santo Deus! — Betty parecia perplexa. — Nã o sabia que ele unha um filho, nem que havia casado outra vez.

— Ficou sabendo que ele morreu num desastre de aviã o, na Inglaterra?

— Claro, os jornais de La Paz deram destaque à notí cia, pois ele era muito conhecido no paí s. Mas nã o se falou nada sobre seu casamento, ou sobre um filho.

— A esposa també m morreu no acidente, e só o bebê sobreviveu. Acho que o casamento era secreto.

— Entã o deve ter sido um choque para a famí lia.

— Sim — respondeu Cherry, pensando na palidez de Ricardo Somervell ao ler os papé is que provavam a identidade de Felipe.

— Foi dona Bianca quem mandou Ricardo buscar você e o menino e levá -los até Vallera? — perguntou Betty.

— Bem... foi — respondeu Cherry, constrangida. — Betty, cá entre nó s, acha que posso confiar nele?

— Em que sentido? — perguntou Betty, curiosa. — Ele tem fama de conquistador, mas nem de longe sua reputaç ã o é tã o famosa quanto a do meio-irmã o.

Cherry corou ao relembrar a reaç ã o que havia sentido diante da poderosa atraç ã o fí sica de Ricardo Somervell, no dia anterior.

— Nã o falo por mim. Sei lidar com esse tipo de situaç ã o. É pela crianç a que estou preocupada.

— Santo Deus! — repetiu Betty. — Nã o está imaginando que ele seria capaz de fazer mal a um bebê!

— Nã o sei o que pensar a respeito dele. No começ o, foi muito hostil em relaç ã o a mim e à crianç a; queria que voltá ssemos os dois para a Inglaterra. Depois mudou tã o completamente de atitude que minhas suspeitas cresceram ainda mais. Acha que estou exagerando?

— Nã o sei dizer. Nã o sei muita coisa sobre você s dois, mas, pelo rá pido contato que tive com ele, me deu a impressã o de que sob aquelas maneiras educadas existe uma violê ncia contida. Parece que, na juventude foi bastante rebelde. Isso faz dele um homem fascinante, imprevisí vel.

— Você o descreveu com exatidã o — exclamou Cherry. — Fico satisfeita que sinta a mesma coisa que eu. Ê desconcertante.

— A melhor coisa que você tem a fazer é vir tomar chá comigo depois de conhecer o lago. Gostaria que conhecesse Pedro, É um homem muito perspicaz e sabe avaliar com precisã o as pessoas, especialmente seus compatriotas... eles sã o um pouco misteriosos e paradoxais, como estas velhas ruí nas. A famí lia dele trabalha com mobí lias antigas há anos, e ele conhece tudo sobre as velhas famí lias bolivianas descendentes de espanhó is. Pode dizer a Pedro o que sente a respeito da " pantera prateada"...

— " Pantera prateada"? — interrompeu Cherry. — Por que o chama assim?

— Nã o é apropriado? RicSomervell tem a marca. dos Matino no cabelo. Ê imprevisí vel e, alé m disso, a pantera é o sí mbolo da famí lia.

— Você costuma dar apelidos descritivos à s pessoas?

— Se elas possuem caracterí sticas marcantes, sim. — Os olhos Betty brilharam, maliciosos. — Você, por exemplo, pode ser a " vermelhinha".

— Sofri muito com esse apelido, na escola! — Foi o que pensei. Vamos até o lago, agora? Acho que sei do encanto sombrio deste lugar. Podí amos ter ido até Huatajata, ele e eu somos só cios de um clube de lá.

Na volta, cruzaram com uma mulher ayamaran, que conduziarebanho de lhamas, animais de pernas longas e corpo de carneiro se adaptam bem à s grandes altitudes.                                          

À distâ ncia, o lago parecia simplesmente uma linha azulada, à medida que elas se aproximavam, a terra se tornava mais e mais fé rtil. Pelas encostas da montanha, até o lago de um azul profundo, estendiam-se terras bem cultivadas.

Pessoas trabalhavam no campo ou teciam panos rú sticos com a lã das lhamas, sentadas à porta das casas. O gado pastava, tranqü ilo e pescadores com suas balsas de proa e um ú nico mastro cortavam as á guas tranqü ilas.

— Nã o se pode nadar — disse Betty, estacionando o carro do lado de fora do edifí cio do clube. — A á gua é fria demais. Mas os peixessã o muito bons, especialmente a truta, que aqui cresce muito mais do que em qualquer outra parte do mundo. Os í ndios uros, que vivem aqui dizem que o lago foi formado com as lá grimas das suas mulheres, devem ter chorado um bocado, pois o lago é imenso, e bastante fundo. Por falar nisso, como está se dando com a altitude?

— Passei mal, ontem — admitiu Cherry. — Por mais estranho que pareç a, Felipe se adaptou com mais facilidade que eu.

— Os bebê s saudá veis se adaptam com facilidade. Quando você s vã o para Vallera?

— Nã o sei. O sr. Somervell disse que me avisaria quando chegassea hora. Nã o o vejo desde ontem à tarde, embora ele estivesse aqui à noite. Parece que havia uma festa: muita mú sica e canto.

— E danç as e risos, imagino — disse Betty, com uma risada. — Os bolivianos adoram festas, e danç ar as velhas danç as folcló ricas, um passatempo popular, especialmente nas casas dos profissionais-

Depois do almoç o farto — o almoç o é a principal refeiç ã odos bolivianos, que assim tê m bastante tempo para fazer a digestã o, antes de dormir —, as duas deram um passeio de balsa pelo lago, conduzidas por um í ndio de rosto sé rio e seu filho pequeno. Mais tarde viajaram a La Paz por uma estrada diferente daquela por onde haviam vindo.

Encontraram Pedro Garcia já na casa, um edifí cio de estilo espanhol construí do em tomo de um pá tio. Era um homem alto, magro, de rosto cadavé rico; de cabeç a grande e nariz pontiagudo, lembrava um pouco um papagaio. Cumprimentou Cherry com entusiasmo, mas ficou admirado ao ouvir a histó ria de Felipe.

— Filho de Juan Benitez? — exclamou. — Por Dios! Que misté rio! Tem certeza de que o filho é dele?

A incredulidade dele, unida à de Ricardo Somervell, era demais para Cherry. Incapaz de se conter, ela contou tudo, desde a conversa com Fidel e Victor, em Londres, até seu " rapto" no aeroporto de El Alto, os insultos de Ric e a conseqü ente desconfianç a dela.

— Mas isso é demais! — exclamou Betty, ao tomar conhecimento dos insultos e do " rapto". — Que arrogâ ncia! Vê -se pela maneira como anda e olha para a gente. Você ri, Pedro, porque nã o conhece o homem.

—Conheç o, sim. Conheç o-o desde menino, pois viveu nessa casa até os tempos de universidade — retrucou Pedro. — Era muito vivo.

— Ah, era desse tipo — disse Betty, com desdé m. — Que maneira de tratar Cherry! Deve ter uma opiniã o muito desfavorá vel das mulheres inglesas.

— Possivelmente das mulheres em geral — murmurou Pedro, pensativo. — Parece que uma vez ouvi um comentá rio de que ele estava pensando em casamento, mas que a moç a em questã o mudou de idé ia.

— Nã o me admira que ela tenha mudado. Pela maneira como tratou Cherry, dá bem uma amostra do que é — comentou Betty, servindo mais chá ao marido.

— Ele era muito amigo de Fidel Diaz... os dois estudavam juntos. Fidel nã o lhe contou nada sobre ele? — perguntou Pedro.

— Ele disse que Ricardo era a ovelha negra da famí lia — respondeu Cherry.

Pedro riu outra vez.

— Ovelha negra — repetiu. — Acho que sim, por algum tempo. Sabe como é, nã o se entendia bem com o pai. Arthur Somervell já estava com quarenta anos quando se casou. Assim, quando o filho chegou à adolescê ncia, ele já tinha quase sessenta anos. Nessa idade um pai nã o costuma mostrar muita tolerâ ncia pelo comportamento dos jovens. Mas o que os separava era mais que o conflito de geraç õ es, era o conflito entre duas personalidades fortes. Arthur era um disciplinador rí gido, um puritano inglê s que exigia que o filho obedecesse, sem discutir. Esqueceu-se de levar em conta que Ric tinha també m sangue boliviano. Sabe o que se diz de nó s, bolivianos?

— Nã o — disse Cherry.

— Nó s sabemos lutar, sabemos comandar, mas nã o sabemos obedecer. — Riu mais uma vez. — E é verdade, somos um bocado rebeldes. Mas acho que agora Arthur está descansando em paz.

— Por quê? — perguntou Betty.

— Sua ovelha negra, depois de uma carreira agitada de estudante e de uma temporada nã o mais tranqü ila na Europa, finalmente voltou para casa e assumiu a direç ã o da fazenda. Atualmente, é um fazendeiro tã o bom e consciencioso quanto o pai, se nã o melhor. Sabe quem ele me lembra, Betty?

— Nã o, nã o tenho idé ia.

— O jovem prí ncipe inglê s, que era um grande desordeiro, mas que apó s a morte do pai assumiu o trono e tornou-se o lí der ideal do seu povo.

— Henrique V — exclamou Betty. — Vê como ele conhece bem a histó ria inglesa, Cherry? Quantas vezes viu esse filme, Pedro?

— Nã o me lembro. Estava interessado demais na inglesinha que projetava o filme, para prestar atenç ã o — respondeu brincalhã o, olhando para a esposa. — Mas, voltando a RicSomervell, nã o é de estranhar que tenha dú vidas a respeito da identidade da crianç a. A famí lia dele, como todas as famí lias ricas, já sofreu muitas tentativas de extorsã o. E Juan, por seu estilo de vida, era muito vulnerá vel. Ric deve ter, em relaç ã o a você, as mesmas suspeitas que você tem em relaç ã o a ele.

— Cherry quer saber se pode ir com ele para Vallera sem problema — disse Betty.

— Nã o vejo por que nã o. Agora que já se convenceu de que o menino é mesmo de Juan, acredito que vai cuidar bem dele. A responsabilidade vai recair toda sobre ele, já que dona Bianca está velha e nã o tem boa saú de.

— Quer dizer entã o que ele vai ter que ser pai de dois ó rfã os — murmurou Betty. — Nã o é uma tarefa das mais agradá veis, especialmente sendo solteiro. O que aconteceu à primeira esposa de Juan?

— Acho que morreu num acidente — respondeu Pedro. Virou para Cherry e sorriu. — Nã o se deixe impressionar pelo comportamento arrogante de Ric. Afinal, ele descende nã o só de uma linha de puleros... mercadores de origem hispano-boliviana, aventureiros acostumados a agarrar uma oportunidade e tirar dela o má ximo proveito, mas també m de uma longa linhagem de fazendeiros ingleses, independentes e apegados à s suas propriedades.

— Uma mistura realmente formidá vel — concordou Betty. — Nã o admira que seja imprevisí vel.

Vá com ele — continuou Pedro. — Tenho certeza de que, quando chegarem a Vallera, já estarã o se entendendo melhor. — Fez uma pausa, os olhos brilhantes. — Acho que farã o uma viagem muito interessante!

Tranqü ilizada pela opiniã o de Pedro, Cherry voltou para casa com o coraç ã o mais leve. Felipe e Josefa tinham tido um dia maravilhoso, juntos, e Cherry teve apenas o trabalho de levá -lo para a cama.

Tinha acabado de dar a mamadeira, e conversava com ele em voz baixa e suave, quando teve a impressã o de estar sendo observada. Virou para a porta e encontrou o olhar azul de RicSomervell, encostado ao batente.

— Nã o o ouvi chegar — murmurou, surpresa — Entrei em silê ncio. Como está usted?

Bien, gradas, y usted, senor?

— Bem, obrigado — respondeu delicadamente, entrando no quarto. — Vendo você com o menino, é fá cil pensar que é seu. É sempre tã o carinhosa com os bebê s sob seus cuidados?

— Claro que sou, mas nã o por obrigaç ã o. Um bebê é um seis humano e completamente indefeso. Como é possí vel que outro ser humano nã o o trate bem?

Ele olhou para o bebê aninhado no colo de Cherry, quase adormecido, as mã ozinhas fechadas sobre o peito.

— É muito pequeno — comentou Ricardo

— Os bebê s geralmente sã o pequenos — respondeu Cherry com suavidade. — Segure-o enquanto preparo o berç o.

Cherry quase riu alto ao vê -lo arregalar os olhos e segurar desajeitadamente o menino, tentando acomodá -lo no colo da mesma maneira que ela.                                                                                    

— Infelizmente os bebê s crescem e se transformam em homens que só se interessam por poder e dinheiro, e que nã o se preocupam com os sentimentos alheios — observou Cherry, alisando o lenç olzinho do berç o. — Muitas vezes, enquanto cuido de um bebê, fico imaginando como é que uma coisinha tã o inocente pode um dia se transformar num megalomaní aco, num assassino ou num raptor.

— Uma babá filosó fica — brincou ele, devolvendo Felipe a ela. Correu os olhos pelos cabelos loiros de Cherry, pelos seus lá bios vermelhos, por seus olhos lí mpidos. — Você é bonita demais para filosofar.

O sangue subiu imediatamente ao rosto dela. Virou-se para colocar o menino no berç o, furiosa consigo mesma por permitir que o elogio a desconcertasse. Ningué m antes, a nã o ser o pai, tinha dito que era bonita.

Decidiu que o melhor seria ignorar as palavras de Ricardo. Deitou Felipe no berç o e cobriu-o com cuidado, satisfeita por nã o precisar olhar para o dono da casa.

— Os homens, e as mulheres també m, transformam-se no que sã o em conseqü ê ncia da hereditariedade e do meio em que vivem — continuou Ricardo, inclinando-se sobre o berç o e observando os movimentos dela. — Um ambiente adequado pode fazer maravilhas por pessoas que herdaram tendê ncias negativas dos antepassados. Por outro lado, a hereditariedade se manifesta de forma estranha, à s vezes. Por exemplo, nenhum traç o sugeria que eu fosse um Matino até a adolescê ncia, quando surgiu esta mecha branca no meu cabelo. Olhando para Felipe, pode-se dizer que nã o herdou nada da mulher que supostamente é mã e dele.

Supostamente. Entã o ele ainda tinha dú vidas a respeito da identidade de Felipe.

— Você a conhece? — perguntou Cherry surpresa, voltando-se para ele.

Ele observava Felipe e tinha no rosto uma expressã o amarga, como se pensamentos tristes o atormentassem.

— Sim, conheç o. Muito bem, mas nã o o suficiente — respondeu, com voz tensa. — Mas nã o vim aqui para falar dela. Vim lhe dizer que terminei o trabalho antes do que esperava e que gostaria de viajar para Vallera amanhã de manhã.. O bebê vai precisar de alguma coisa especial?

— Posso preparar as mamadeiras antes de partirmos, mas elas precisam ser aquecidas durante a viagem.

— Nã o há problema. Geralmente levo á gua e um fogareiro, quando viajo. Espero que tenha trazido roupas bem quentes. Ah, e nã o se esqueç a de levar cobertores extras para o menino.

— Está bem. — Cherry virou-se para apanhar as roupas sujas. — Vamos dormir no caminho?

— Duas noites. Esteja preparada, pois as acomodaç õ es aqui nã o tê m o padrã o a que você está acostumada; a Bolí via ainda nã o recebe um turismo regular. Talvez precise dividir um quarto.

— Com Felipe? Mas isso nã o tem importâ ncia. — Os dois saí ram do quarto e, depois de fechada a porta, pararam um instante, olhos nos olhos.

— Depende do nú mero de pessoas que houver nos alojamentos. No campo, o pagamento é por cama, e nã o por quarto; e se algué m quer privacidade, tem que pagar por todas as camas. Vou fazer o possí vel para encontrar um lugar confortá vel e conveniente para você. Mas, se nã o conseguir, talvez tenhamos que dormir na parte de trá s da perua.

Ela ficou em silê ncio, pensando no espaç o que teriam na parte de trá s de uma perua: o suficiente para duas pessoas deitadas lado a lado e nã o muito mais.

— Vejo pela sua expressã o que nã o é do seu agrado, Srta. Hilton — disse ele, irô nico.

— Nã o, nã o é, sr. Somervell — respondeu, fria. — Um hotel seria preferí vel.

— Tenho a impressã o de que você nã o confia em mim!

— Nã o, nã o confio. Acha que estou errada?

Ele pareceu espantado por ser alvo de tanta desconfianç a:

— É uma pena que nã o confie em mim — continuou ele, com voz suave —, pois pretendia danç ar a cueca com você esta noite.

— A cueca? — perguntou Cherry, divertida.

— É uma danç a de origem espanhola. Os habitantes deste paí s adoram danç ar, mas se nã o confia em mim nã o vale a pena convidá -la. A menos que... — Fez uma pausa deliberada, criando um clima de suspense para envolvê -la.

— A menos que o quê?

— A menos que declaremos uma tré gua por esta noite e pelos pró ximos dias e esqueç amos que nosso primeiro encontro nã o foi propriamente auspicioso. Que tal?

Ele era um mestre na arte da tentaç ã o. Tudo o que ela queria naquele momento era ir com ele e aprender a danç ar a cueca.

— Onde vamos danç ar? — perguntou, tentando parecer cautelosa.

— Na casa de uns amigos meus, Gabriel e Victoria Lorca. Ele tem um posto administrativo na universidade e ambos sã o muito respeitá veis. Disseram para levar uma moç a, mas nã o tenho ningué m para levar, a nã o ser você.

Ela nã o acreditou na ú ltima parte. Claro que nã o lhe faltavam acompanhantes; estava apenas tentando sensibilizá -la.

— Quem vai cuidar de Felipe? — perguntou, sabendo muito bem que Josefa faria isso com prazer.

— Quem você acha? — a frase foi abertamente irô nica. — Pare de; fingir, senorita. Sabe muito bem que quer danç ar comigo.

Diante de tanta autoconfianç a, as defesas de Cherry caí ram por terra e ela capí tulou. Riu e estendeu a mã o para ele.

— Entã o vamos fazer uma tré gua, senor. Gostaria de ir com você e de aprender a danç ar a cueca.

Gradas, senorita. Espero você s à s oito horas no hall. Provavelmente faremos uma refeiç ã o ligeira na casa dos Lorca. Tem um lenç o branco que possa levar?

— Tenho, mas por quê?

— Você vai ver.

 



  

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