Хелпикс

Главная

Контакты

Случайная статья





O Jogo Da Sedução



O Jogo Da Seduç ã o

The Dance Of Courtship

Flora Kidd

 

 

 

Pobre Cherry! Trê s anos de espera até que Edwin se formasse... e ele agora ia se casar com outra. Sim, o melhor era aceitar aquele emprego na Bolí via. Ia conhecer os Andes, viver uma bela aventura e esquecer tudo. Só que seu novo patrã o era RicSomervell, um homem irô nico, desconfiado e diabolicamente atraente. Com sua forç a perturbadora, ele a envolveu num jogo irresistí vel, de pura seduç ã o. Na presenç a dele, Cherry se sentia enfeitiç ada — e se transformava numa mulher impulsiva, guiada só pelas emoç õ es. Nã o, Cherry nã o podia ouvir os apelos do seu coraç ã o, nem entrar naquele jogo: ela tinha medo de amar!

 

 

Digitalizaç ã o: Ana Cris

Revisã o: Crysty


Copyright: FLORA KIDD

Tí tulo original: " THE DANCE OF COURTSHIP'"

 

Publicado originalmente em 1976

pela Mills& BoonLtd., Londres, Inglaterra

 

Traduç ã o: MARIA HELENA FIGUEIREDO

Copyright para a lí ngua portuguesa: 1980

 

ABRIL S. A. CULTURAL E INDUSTRIAL — 1980

Composto e impresso nas oficinas da

ABRIL S. A. CULTURAL E INDUSTRIAL

Caixa Postal 2372 — Sã o Paulo

Foto da capa: ERIC BACH


CAPÍ TULO I

— Tio Vic me perguntou se você estaria interessada no emprego, Cherry — disse Cathy Graham à moç a que havia sido babá dos seus dois filhos menores durante quatro anos. — Parece feito sob medida para você. Tem experiê ncia com crianç as, conhece um pouco de castelhano... graç as à s fé rias que passamos na Espanha, é amadurecida e muito há bil no trato com as pessoas.

— Obrigada — disse Cheryl Hilton, Cherry para os amigos e parentes.

A patroa sorriu do tom irô nico da moç a.

— Desconfia dos bajuladores, nã o é? — disse Cathy. — Sei que a Bolí via é um paí s muito distante, um lugar meio selvagem onde tudo pode acontecer. Mas acho que essas sã o as ú nicas objeç õ es que pode fazer.

— Vic me disse que teria ficado lá, se pudesse — murmurou Martin Graham por trá s do jornal que lia. — Estava fascinado pelo povo" e pelo cená rio.

— O que mais terei que fazer, alé m de levar a crianç a para a avó? — perguntou Cherry, interessada. Necessitava com urgê ncia de uma mudanç a de vida. Queria afastar-se da Inglaterra, afastar-se de Edwin, que breve ia se casar com Joanna, afastar-se da angú stia e da frustraç ã o.

— Nã o sei — respondeu Cathy. — Tio Vic sabe que Tina logo vai para a escola e que você estará livre para aceitar outro emprego. Por isso me pediu que lhe fizesse a proposta. Se quiser outras informaç õ es, posso telefonar a ele pedindo que arranje um encontro com o sr. Fidel Diaz, da embaixada boliviana aqui em Londres. Titio mantinha contatos com a embaixada britâ nica em La Paz, capital da Bolí via.

Cathy parou de falar e examinou, preocupada, a expressã o triste de Cherry. Nos ú ltimos dias vinha notando certa palidez no rosto normalmente corado, e olheiras profundas em torno dos olhos acinzentados: Cherry Hilton estava com algum problema.

— A nã o ser, é claro, que tenha outros planos. Será que logo teremos uma festa de casamento? — perguntou, percebendo que o marido baixava o jornal e olhava para ela com reprovaç ã o. Tinha acabado de quebrar uma das regras mais importantes no relacionamento com os empregados: jamais falar sobre assuntos pessoais.

— Nã o... ainda nã o. — Cherry aparentava frieza. — Gosto muito da minha independê ncia. Agradeç o se disser ao sr. Sutton que estou interessada no emprego.

— Ó timo. É pra já. — Cathy levantou de um salto, aliviada por se ver livre daquela situaç ã o desagradá vel... graç as a Cherry!

Em poucos minutos, combinou um encontro entre Cherry e Victor Sutton para o dia seguinte.

— Pode tirar folga amanhã — ofereceu Cathy. — Posso cuidar das crianç as sozinha, nã o tenho nada de importante para fazer. Alé m disso, elas precisam se acostumar com a idé ia de perder você. Agora vá dormir e descanse bastante. Parece cansada. Espero que nã o esteja gripada.

Nã o, nã o era gripe. A doenç a de Cherry era muito mais grave: desilusã o amorosa.

— Essa doenç a nã o existe — lembrou de ter dito a uma estudante, quando trabalhava como enfermeira num hospital da cidade. Tinha sido sempre uma pessoa serena e equilibrada, capaz de superar sem dramas todas as crises emocionais, e jamais esperara da vida mais do que julgava merecer. Mas tinha chegado à conclusã o de que merecia Edwin Baker e esperava que ele a pedisse em casamento, assim que recebesse o diploma de mé dico.

Por causa de Edwin tinha deixado o hospital e aceitado o emprego na casa dos Graham, convencida de que seria melhor para os dois nã o se verem todos os dias sob o olhar crí tico das irmã s e das enfermeiras. A vida com os Graham era agradá vel. Em companhia deles, tinha passado fé rias em lugares que jamais poderia visitar com o magro salá rio de enfermeira. Assim, o tempo de espera paciente pela formatura de Edwin tinha passado alegre e rapidamente.

Trê s anos de espera! Ser independente e cautelosa tinha lhe feito mesmo muito bem! Estava com quase vinte e quatro anos, e pronta para casar. Só que, em vez de se casar com ela, Edwin ia se casar com Joanna, sua irmã mais nova. Joanna, a brilhante e bela Joanna, que tinha decidido vir para Londres estudar Medicina; por coincidê ncia, no mesmo hospital-escola que Edwin.

Seria possí vel odiar uma irmã? Nã o para Cherry Hilton. Ela nã o conseguia odiar Joanna, a mais inteligente das filhas da famí lia Hilton, cujo cé rebro privilegiado unia-se a uma beleza rara. Cherry nã o via motivos para odiar a perfeiç ã o e nã o condenava Edwin por ter preferido sua impulsiva irmã de cabelos negros e olhos azuis.

Parou no alto da escada. Era muito cedo para ir para a cama: ficaria acordada, martirizando-se com pensamentos tristes, até sentir a cabeç a doendo e o coraç ã o em pedaç os ao imaginar um futuro sem Edwin.

Precisava se ocupar com alguma coisa e talvez fosse mais sensato estar preparada para o encontro do dia seguinte, já que sabia muito pouco sobre a Bolí via. Das aulas de Geografia, só lembrava que era um paí s da Amé rica do Sul.

Num impulso, desceu outra vez a escada e foi até a biblioteca, pegar o volume apropriado da enciclopé dia. Voltou ao quarto e leu tudo sobre a Bolí via. Ficou sabendo que o paí s nã o tinha saí da para o mar, mas que possuí a uma quantidade fantá stica de " lugares mais altos do mundo".

Lá se localizava a cidade mais alta, o aeroporto mais alto, o lago mais alto, as mais altas pistas de esquis, o mais alto campo de golfe, tudo isso por ser um paí s encravado no alto da cordilheira dos Andes.

Quando Cherry se deitou, seu cé rebro vibrava com os nomes estranhos: Potosi, a remota cidade da prata; Titicaca, o frio lago azul; o altiplano, muitos milhares de metros acima do ní vel do mar; as yungas, vales tropicais localizados ao pé das montanhas, alguns dos quais ainda inexplorados.

A Bolí via parecia ser uma terra de contrastes, dominada pelas alturas titâ nicas dos Andes; uma terra presa entre o cé u e a terra.

Antes de dormir, Cherry tomou uma decisã o: aceitaria o emprego, fossem quais fossem as tarefas exigidas dela. Iria para a Bolí via, nem que fosse apenas para poder dizer, na volta, que tinha visto o Illimani, a montanha brilhante que dominava a cidade de La Paz.

O dia seguinte amanheceu esplendoroso, um daqueles dias de junho em que Londres parece mais bela que nunca; o cé u azul nã o tinha uma só nuvem, e o sol suavemente dourado batia sobre os edifí cios, suavizando as velhas pedras acinzentadas e o concreto impessoal. No Parque St. James a mesma luz dourada atravessava as folhas verdes das á rvores, lanç ando reflexos sobre as á guas tranqü ilas do pequeno lago onde marrecos e cisnes nadavam. Na calç ada por onde Cherry caminhava, um bando de pombas andava de um lado para outro à procura de migalhas, arrulhando alegremente.

No pré dio onde trabalhava Victor Sutton reinava um estranho silê ncio, como se problemas graves estivessem sendo resolvidos por trá s das portas fechadas. Cherry foi dominada pela gravidade do ambiente. A secretá ria do sr. Sutton conduziu-a até um escritó rio de paredes cobertas com madeira escura, cujas janelas davam para o parque. A mobí lia era pesada, de mogno, e as poltronas, de couro escuro. No ar, pairava um forte cheiro de charuto.

— O sr. Sutton estará aqui dentro de alguns minutos. Fique à vontade. — A secretá ria sorriu e saiu, deixando-a a só s.

Cherry parou no meio da sala e olhou ao redor. Uma das paredes era totalmente tomada por prateleiras repletas de livros pesados e escuros, mas o que mais chamou a atenç ã o foram as fotografias que decoravam a outra parede.

Eram fotos coloridas de pontos turí sticos de diversos paí ses. Com uma sensaç ã o de prazer, ela reconheceu a Porta do Sol, de Tihuanaco, a cidade em ruí nas localizada junto ao lago Titicaca. Uma outra fotografia da Bolí via mostrava uma enorme está tua cinza, de forma quase humana, sem dú vida representando um deus antigo.

A porta se abriu de repente e algué m entrou. Para surpresa de Cherry, nã o era Victor Sutton, mas um homem mais jovem, de mais ou menos trinta e quatro ou trinta e cinco anos, cabelos lisos e muito negros, pele morena e olhos castanhos, sem dú vida de origem estrangeira. Tinha mais ou menos a mesma altura que ela, ombros largos, peito forte, vestia-se com apuro e trazia nos lá bios um sorriso simpá tico, de dentes muito brancos.

— É a srta. Hilton? — perguntou. Pela pronú ncia da vogai " i", percebia-se que o inglê s nã o era sua lí ngua natal. — Sou Fidel Diaz. Victor me pediu para lhe dizer que vai se atrasar um pouco.

Estendeu a mã o para Cherry, num cumprimento franco e caloroso.

— Estava olhando com interesse para a fotografia do Deus que Chora. Gostou?

— Estava tentando imaginar que está tua seria essa. Por que o nome? — perguntou Cherry.

Quien sabe? É um dos misté rios arqueoló gicos de meu paí s. Ele traz lá grimas esculpidas no rosto. Talvez chore pelo seu povo, a quem, segundo a lenda, ele transformou em pedra. Gostaria de ver a está tua original?

Ele a observava com atenç ã o, sem perder nenhuma das reaç õ es dela, mas nã o havia insolê ncia naquele olhar.

— Gostaria muito.

Bueno, sente-se e fique à vontade. Nã o é sempre que tenho a oportunidade de fazer sala para uma moç a bonita logo pela manhã e quero aproveitar ao má ximo.

As maneiras francas e o sorriso simpá tico de Fidel Diaz a encantaram. Sentaram-se ambos nas confortá veis poltronas de couro.

— Sabe alguma coisa sobre a missã o que pretendemos lhe confiar? — perguntou, sé rio.

Missã o! Ele conferia ao trabalho uma importâ ncia exagerada. Cherry pensou nos missioná rios escolhidos pelas comunidades religiosas para converter pagã os em terras distantes; pensou em diplomatas escolhidos para levar a cabo delicadas negociaç õ es secretas com chefes de governos estrangeiros. A palavra a impressionou e despertou sua curiosidade.

— Sei que algué m precisa de uma babá para levar uma crianç a até a avó, na Bolí via.

— Correto. O bebê é filho de Juan Benitez, que foi um importante membro da nossa embaixada aqui em Londres. Infelizmente o sr. Benitez morreu num acidente de aviã o... você deve ter lido a notí cia nos jornais. Ele adorava pilotar seu pró prio aviã o.

Cherry relembrou as manchetes: " Aviã o explode na neblina. Morto diplomata playboy".

— Eu me lembro. Nã o houve sobreviventes.

— Só Felipe,

— Felipe?

— O bebê. Sobreviveu à catá strofe de maneira inexplicá vel.

— Incrí vel! Quantos anos ele tem?

— É muito pequeno. Ainda nã o tem dois meses. Na é poca do acidente tinha apenas um mê s de idade. O sr. Benitez estava levando a mulher e o filho para visitar uns parentes em Paris; depois iam passar fé rias na Espanha, na vila que possuí a lá. Era um homem muito rico, que herdou boa parte da fortuna acumulada pelo avô, Alfonso Matino d'Aubigny, e sua esposa era inglesa, como você. Foi um acidente muito triste. Percebe a tragé dia, srta. Hilton? A crianç a ó rfã, os paí s mortos tã o tragicamente?

Ele parecia viver aquela emoç ã o, pois tirou um lenç o do bolso e assoou o nariz, os olhos brilhantes.

— Sim, é muito triste — murmurou Cherry.

— O pequeno Felipe é uma crianç a valiosa — continuou Fidel, devagar e com certa pompa. — A ú nica soluç ã o é enviá -lo para a avó paterna, a respeitá vel Bianca Matino d'AubignyBenitezSomervell, que vai orientar a educaç ã o do menino até que ele tenha idade suficiente para assumir o controle da fortuna dos Matino. Admirada?

— Claro. Todos esses sobrenomes! Eles sã o mesmo necessá rios?

— Ê um costume espanhol. No caso de um homem, o ú ltimo nome do pai sempre vem primeiro, seguido pelo nome de solteira da mã e. No caso da mulher, quando ela casa, conserva o nome do pai e o nome da mã e. Como a sra. Bianca se casou duas vezes, usa o nome do primeiro marido, general Pablo Benitez, juntamente com o nome do segundo, Arthur Somervell.

— Ele é inglê s?

Si. O sr. Somervell era inglê s. Mas amava a Bolí via com mais intensidade que ao seu pró prio paí s, e dedicou grande parte de sua vida aos meus conterrâ neos, ensinando a eles modernos mé todos de agricultura. Está menos confusa agora?

— Estou, obrigada.

Cherry nã o conseguiu controlar uma risada. A formalidade daquele homem era demais para ela, e estava certa de que nã o era seu comportamento normal. Ele estava apenas querendo impressionar. Riu alto e, para sua surpresa, ele riu també m, deixando de lado toda a formalidade e revelando-se um jovem vivo e agradá vel.

— Geralmente nó s usamos apenas o nome de batismo e o sobrenome, como você s. É menos complicado. Mas ainda existem pessoas que gostam de seguir os antigos costumes espanhó is. Para ser sincero, tenho que esclarecer que a sra. Bianca nã o é uma dessas pessoas. O primeiro marido foi um lí der revolucioná rio, e ela mesma pode ser considerada uma revolucioná ria por ter preferido que os filhos fossem educados na Bolí via, em vez de mandá -los estudar na Europa, como era costume entre os Matino e outras famí lias ricas do passado.

— Nã o há ningué m da sua embaixada que possa levar o menino? — perguntou Cherry, curiosa.

— Fiquei encarregado disso porque sou parente de Juan. Mas, como sou solteiro e nã o tenho filhos... nã o entendo de crianç as, nã o sei como alimentá -las, nã o sei... como é mesmo que se diz? Nã o sei trocar as fraldas. — Abriu os braç os, num gesto de impotê ncia, e Cherry nã o pô de evitar nova risada. Realmente, ele era encantador.

— Entendo. Uma pessoa da famí lia da mã e nã o poderia ajudá -lo? Por um momento ele pareceu pouco à vontade. Depois, aproximou-se dela e falou em tom confidencial:

— Por favor, que este assunto fique só entre nó s dois. A famí lia da mã e da crianç a cortou relaç õ es com ela, alguns anos atrá s, e nã o quer saber da crianç a. Ela se casou secretamente com o sr. Benitez: mesmo nó s, aqui da embaixada, nã o sabí amos. Foi um choque para mim saber do bebê e tive muita dificuldade em estabelecer a identidade de Felipe, bem como a da mã e. Temo que algumas pessoas, lá na Bolí via duvidem da identidade do menino. Mas, como agora os papé is já estã o quase em ordem, só preciso de algué m que entenda de crianç as e que saiba enfrentar alguns desafios. Quando contei meu dilema a Victor, ele me falou de você. Acha que será capaz de levar Felipe até a Bolí via e entregá -lo à avó paterna?

— Sozinha? — perguntou Cherry, com uma calma que na verdade nã o sentia.

Si. Gostaria muití ssimo de acompanhá -la, mas no momento é impossí vel. Victor me garantiu que você é digna de toda confianç a, alé m de muito capaz. E agora vejo, por mim mesmo, que ele estava certo.

— E como vou até lá?

— De aviã o. Há vô os diretos daqui até Lima, com escalas em Antí gua e Caracas; de Lima você toma outro aviã o até La Paz. Um representante de dona Bianca vai esperá -la no aeroporto e levará você até ela. É possí vel que ela a contrate como babá de Felipe, mas esse é um assunto que deve ser tratado entre você s duas. Ah, aí está Victor, finalmente. Victor, ajude-me com seu poder de persuasã o.

Victor Sutton entrou no escritó rio como se nã o desejasse ser visto por ningué m. Era um homem pequeno, de careca rosada e brilhante, e olhos de um azul infantil. Em comparaç ã o ao vigoroso Fidel, parecia mais um bondoso tio inglê s, e nã o um diplomata capacitado.

Pendurou o guarda-chuva no porta-chapé us ao lado da porta e caminhou silenciosamente até sua escrivaninha.

— Olá, Cherry! Prazer em vê -la. Vejo que Fidel nã o perdeu tempo em se tornar seu amigo.

— E gostaria muito de aprofundar nossa amizade — disse Fidel, lanç ando um olhar significativo na direç ã o dela.

— Claro — disse Victor, rindo. — Precisa tomar cuidado com esses bolivianos, Cherry. Eles trabalham depressa. O que achou do trabalho?

— Aceito, sr. Sutton.

— Ó timo. Moç a igual a ela, só uma em um milhã o, Fidel. Pode confiar nela. Dou-lhe minha palavra de que fará o bebê chegar em seguranç a à avó.

— Sua recomendaç ã o me basta — respondeu Fidel. — Agora que conheci Cherry... É assim que você diz? — perguntou, com uma encantadora mistura de malí cia e timidez.

— Nã o exatamente. — Victor riu. — Mas nã o importa, pois ela é uma pessoa adorá vel, sempre calma... Acho que jamais a vi aborrecida ou irritada.

— Agora que já a conheç o — continuou Fidel, sorrindo para ela —, gostaria de levá -la até Felipe, que está numa casa para crianç as ó rfã s. Será que podemos almoç ar juntos, antes?

— Eu nã o disse? — resmungou Victor. — Ele trabalha depressa e faz questã o de unir o prazer aos negó cios. Alguma pergunta, Cherry?

— Quais as providê ncias que devo tomar para a viagem?

— Deixe-me ver — disse Fidel. — Precisa tomar as vacinas de praxe. Se já tomou a vacina contra a varí ola, restam... febre amarela, có lera, tifo, febre tifó ide e té tano. Sua saú de geral é boa? Nã o tem problemas respirató rios?

— Fiz um exame mé dico completo há pouco tempo: está tudo em ordem.

Bueno. Nesse caso, só preciso preveni-la da altitude de La Paz. O ar lá é bastante rarefeito, o que torna a respiraç ã o um pouco difí cil para os estrangeiros. Nó s, que nascemos e fomos criados lá, nã o temos esse problema. Temos pulmõ es grandes e peitos largos. — Bateu no pró prio peito, com o punho fechado.

— Que efeito isso terá sobre mim?

— Vai sentir algum desconforto, durante um dia mais ou menos. Dor de cabeç a e talvez enjô o de estô mago, por isso nã o se canse muito e nã o se agite. Vive-se devagar na Bolí via... afinal existe o dia de amanhã e, mesmo, o depois de amanhã. No começ o, faç a refeiç õ es leves para evitar o soroche, o mal-estar da montanha. Victor pode lhe explicar o que é isso, pois viveu lá seis anos.

— E adorei cada minuto desses anos — murmurou Victor. — Sua passagem de ida e volta será paga pela sra. Bianca. Vou entrar també m em contato com David Fuller, da embaixada inglesa no Peru, para que vá esperá -la no aeroporto de Callao, em Lima. Ele vai providenciar um lugar para você passar a noite e vai levá -la até o aeroporto, no dia seguinte. A viagem é longa, e talvez você se canse.

— Quando devo partir? — Cherry mal podia acreditar.

— Dentro de duas semanas. Está bem para você?

— Acho que sim. Gostaria de ver meus pais antes da viagem e, naturalmente, tenho que conversar també m com os Graham.

— Quanto a isso nã o há problema — garantiu Victor. — Por falar nisso, Fidel, Arthur Somervell ainda está vivo?

— Nã o, já morreu há alguns anos,

— Era um grande sujeito. Um colonizador da velha tradiç ã o de colonizadores, que fez na Bolí via um trabalho dos melhores. Trabalhava para o governo, ensinando aos nativos novos mé todos de agricultura. Visitei a propriedade pertencente à sra. Bianca, em Vallera, e constatei que ele a transformou num modelo. Ele e Bianca nã o tiveram um filho, um meio-irmã o de Juan Benitez?

— Exatamente.

— Quando estive lá, alguns anos atrá s, eles pareciam estar tendo problemas com ele.

— Sim. — Fidel suspirou, desanimado. — Ele era a ovelha negra da famí lia. Tã o rebelde que muitas vezes imaginei que devia ter um parafuso solto.

— É uma pena que ele seja assim, mas infelizmente acontece nas melhores famí lias — disse Victor.

— Mesmo nas melhores famí lias bolivianas — admitiu Fidel, sorrindo. — Mas agora, se você me dá licenç a, Victor, gostaria de levar Cherry para almoç ar.

— Está bem. Entrarei em contato com você, Cherry, para falarmos sobre o passaporte e as passagens.

Algumas horas mais tarde, depois do almoç o, Cherry estava no orfanato e olhava para o pequeno Felipe Benitez, adormecido no berç o. Fidel garantia que já se podiam ver nele traç os de Juan Benitez, embora Cherry o achasse parecido com qualquer outro bebê de pele morena e cabelo escuro.

— Juan també m tinha a pele morena e cabelo negro — disse ele.

— Você també m tem — disse Cherry, rindo da expressã o de surpresa do diplomata. — Podia ser seu filho.

— Isso é terrí vel! — exclamou.

— Por quê? Muitos bebê s, filhos de pais bolivianos, tê m essa cor de pele. t)a mesma maneira que muitos bebê s, filhos de pais ingleses, tê m cabelo claro e olhos azuis. Numa maternidade, é difí cil distinguir uma crianç a da outra quando elas sã o da mesma raç a. Só as mã es reconhecem seus filhos, e, mesmo assim, já vi mã es se enganarem. Será que Felipe herdou algum sinal de nascenç a ou outras marcas do pai?

— Para ser sincero, nã o sei. Existe uma marca caracterí stica dos Matino, mas que só se revela na adolescê ncia,

— Qual é?

— Uma mecha de cabelo branco na parte de trá s da cabeç a.

— O sr. Benitez herdou essa marca?

— Nã o. . Ele se parecia muito com o pai, o general, Nem todos os Matino herdam esse traç o.

— Isso é mau. Nã o podemos esperar que Felipe chegue à adolescê ncia.

— Tem razã o, mas há o registro de nascimento para provar que ele é filho de Juan. E també m há isto, que só um descendente da famí lia Matino possuiria. — Enquanto falava, enfiou a mã o no bolso do casaco e retirou um medalhã o de prata, preso a uma corrente també m de prata.

— O que é isso? — perguntou Cherry.

— É uma heranç a dos Matino. Estava na cesta do bebê. Observe de perto e vai notar um puma ou pantera, que é o sí mbolo da famí lia.

Cherry pegou o medalhã o. Era feito de prata só lida, com delicadas folhas de ouro esculpidas na borda e, no centro, um animal estilizado — uma pantera orgulhosa, apoiada nas duas patas traseiras.

— É lindo — comentou Cherry. — Por que isso estaria na cesta? Nã o é um brinquedo, e, alé m disso, Felipe é pequeno demais para apreciar um objeto como esse. A nã o ser que algué m estivesse segurando o medalhã o, fazendo-o girar sobre o bebê. Os bebê s muito pequenos ficam fascinados com objetos brilhantes girando diante deles.

— Talvez tenha razã o! — disse Fidel, entusiasmado. — Talvez ele estivesse inquieto durante o vô o e a mã e tenha usado a corrente com o medalhã o para distraí -lo, deixando-o cair na cesta. Se estava com ela, só poderia ter ganho de Juan.

Cherry fez um sinal com a cabeç a, concordando. Parecia uma explicaç ã o plausí vel. Entregou a jó ia a ele.

— Nã o, fique com ele — pediu Fidel. — Quero que o leve com você para La Paz e o entregue à sra. Bianca juntamente com a crianç a. Mas, lembre-se: nã o deve entregar'o medalhã o a ningué m mais, nem se separar de Felipe a nã o ser que ele esteja nos braç os da avó.

— Fala como se algué m fosse raptá -lo — brincou Cherry, quando saí ram do berç á rio.

— Coisas estranhas acontecem na Bolí via — respondeu ele, sorrindo. — Agora vou levá -la de volta à casa dos Granam. Vamos nos encontrar outra vez... e breve, espero. Pretendo vê -la muitas vezes, antes que viaje para La Paz.

No fim de semana que se seguiu à entrevista com Fidel e Victor Sutton, Cherry viajou para a cidadezinha onde havia nascido e crescido, e onde ainda viviam seus pais. Na minú scula saleta da velha casinha, que como tantas outras erguia-se junto aos pâ ntanos e à s velhas chaminé s de pedras, contou-lhes sobre a viagem à Bolí via.

Dizer que ficaram surpresos seria muito pouco. Ficaram verdadeiramente estupefatos. Mas assim que o espanto diminuiu e as exclamaç õ es cessaram, Cherry sentiu certo orgulho nos olhos dos pais... orgulho que só havia se revelado antes diante dos feitos escolares de Joanna.

—O sr. Sutton deve admirá -la muito, para indicá -la para esse trabalho — comentou o pai. — Disse a ele que sou da Forç a Pú blica?

Ele pertencia à polí cia desde que saí ra da escola, e exercia, no momento, a funç ã o de inspetor dos quarté is locais.

— Nã o, nã o disse — respondeu Cherry, com uma expressã o de riso nos olhos. — Gostaria que eu tivesse dito, papai?

—Nã o, nã o acho necessá rio. Só estava tentando imaginar como ele chegou à conclusã o de que você é digna de confianç a, só isso.

— A recomendaç ã o da sobrinha deve ter sido suficiente para ele — disse Eunice Hilton. — A sra. Graham sabe que Cherry é muito discreta, alé m de entender muito de crianç as. Acho que a oportunidade é maravilhosa, querida, e faz muito bem em aproveitá -la. Mas ainda é muito jovem e deve tomar cuidado! Os homens bolivianos se julgam superiores à s mulheres em tudo: orgulho, energia, forç a... e se consideram os melhores amantes do mundo...

— Do que está falando, Eunice? — interrompeu Frank Hilton.

— Como pode saber? A viagem mais longa que já fez comigo foi até Paris.

— Eu sei, mas já li muitos livros de viagens — retrucou Eunice.

— Como é mesmo que eles chamam esse culto da masculinidade? Você sabe, Cherry?

— Machismo?

— Isso mesmo. E podem ter idé ias erradas a seu respeito. Porque você é independente e livre para viver sua pró pria vida, talvez pensem que é livre també m em outros sentidos.

— Que outros sentidos? — perguntou Frank, malicioso.

— Sabe muito bem do que estou falando, Frank Hilton — respondeu a esposa, com os olhos faiscando. — O que quero dizer, querida — acrescentou, virando-se para a filha —, é que precisa ser mais cuidadosa que habitualmente. Nã o deixe que ningué m tire vantagem do seu jeito amistoso.

— O ú nico boliviano que conheç o nã o coincide com a sua descriç ã o — respondeu Cherry, pensativa. — Saí vá rias vezes com Fidel Diaz e ele sempre agiu com a maior correç ã o. Para falar a verdade, o comportamento dele é melhor que o de muitos ingleses que conheç o. Ele sabe como deixar as pessoas à vontade.

— Nã o percebe? É exatamente aí que estou querendo chegar — insistiu a mã e. — Eles sabem como controlar uma mulher. E, alé m do mais, ele precisa dos seus serviç os. É natural que procure dar a melhor das impressõ es a você.

— Ora, amor, deixe de bobagens! — interrompeu Frank, impaciente. — Cherry já é adulta e sabe viver a pró pria vida. Tenho certeza de que ela sabe muito bem como manter um homem indesejá vel à distâ ncia, nã o é, querida?

— Faç o o possí vel — respondeu, Cherry, com um sorriso. — Infelizmente nã o posso dizer que já tenha sofrido muitas investidas.

— Só estou aconselhando, como faria qualquer mã e. Mas é uma pena que tenha que ir tã o depressa. Nã o pode esperar até o casamento? Joanna está contando com você para ser sua madrinha, e eu ficaria agradecida se me ajudasse nos preparativos para a festa.

— Desculpe, mas nã o posso — respondeu Cherry, fria. — Preciso voltar a Londres na segunda-feira e estar em La Paz dentro de dez dias. Já está tudo combinado e nã o posso faltar com a palavra.

— Joanna vai ficar triste — suplicou Eunice, lanç ando um olhar significativo ao marido, que balanç ou a cabeç a sem dizer nada. Eles sabiam que Cherry e Edwin tinham sido muito chegados, antes que Joanna o conhecesse.

— Sinto muito, mamã e.

Nada, nem mesmo o desapontamento de Joanna, ia fazê -la mudar de idé ia, pensou Cherry. Daquela vez ia ser honesta com ela mesma.

Percebendo a determinaç ã o nos olhos da filha, tã o parecida com ela, Eunice suspirou e desistiu de lutar. Nã o adiantava mesmo discutir com Cherry quando ela dizia nã o.

Tudo correu conforme os planos de Fidel Diaz e Victor Sutton: exatamente dez dias depois da conversa com os pais, Cherry embarcava com Felipe Benitez em direç ã o a Lima, no Peru.

Quando o aviã o decolou, ela olhou para baixo, admirando as manchas verdes, amarelas e marrons dos campos ingleses, mas já com a mente voltada para o outro lado do Atlâ ntico. Nã o via razã o para ficar presa, morbidamente ao passado. Tinha diante de si uma oportunidade e esperava aproveitá -la ao má ximo.

O vô o, como todos os outros de longa distâ ncia, teve momentos tediosos. Mas o pequeno Felipe comportou-se admiravelmente, comendo e dormindo como se nada de anormal estivesse se passando, como se atravessar o oceano num jato, depois cruzar montanhas e planí cies, fosse normal. Mas, considerando quem era o pai do bebê, até que tudo aquilo poderia realmente ser considerado normal, pensou Cherry, quando o aviã o finalmente começ ou a descer, na escuridã o, no aeroporto de Callao.

Abriu a bolsa e conferiu os papé is, para ter certeza de que estava tudo em ordem: o passaporte, os papé is provando a identidade de Felipe, as passagens para La Paz. Enquanto mexia na bolsa, seus dedos tocaram a caixinha onde havia guardado o medalhã o de prata que devia entregar à sra. Bianca.

Recostando-se na poltrona, Cherry fechou os olhos e se preparou para a parte da viagem de que menos gostava: a descida. Mas tudo correu tranqü ilamente, o aviã o nã o saltou muito, e o ruí do dos motores foi diminuindo suavemente até que o aparelho parou na pista do aeroporto, cujas luzes brilhavam, preguiç osas, em meio à né voa.

Meia hora depois, Cherry atravessava uma passagem elevada, carregando Felipe nos braç os e decidida a nã o se separar dele de maneira alguma. No escritó rio da Imigraç ã o, um jovem de cabelos loiros, olhos azuis e rosto de querubim, muito parecido com Victor Sutton, apresentou-se a ela como David Fuller, da embaixada britâ nica.

— Como estava a velha Londres quando você a deixou? — perguntou ele, enquanto a conduzia para fora do pré dio. — Chovendo muito?

— Nã o. Para falar a verdade, o tempo estava maravilhoso.

— Melhor do que aqui, entã o. Temos tido uma garoa constante nestes ú ltimos dias; muita né voa e umidade, o que aliá s é natural aqui nesta é poca do ano. Espero que o tempo melhore amanhã, para que você possa ver Lima à luz do sol. A cidade é linda nos dias ensolarados, com todas as suas paredes brancas e torres espanholas... Dê -me a crianç a enquanto sobe no carro, em seguida eu a entrego a você. Ele tem a mesma idade que o meu caç ula.

— Quantos filhos tem? — perguntou Cherry, recebendo Felipe dos braç os dele.

— Dois. James nasceu aqui.

Ele bateu a porta do Austin, assegurou-se de que toda a bagagem de Cherry estava no porta-malas e entrou també m. Em breve aproximavam-se das luzes brilhantes de Lima.

— Vou levá -la para a casa de uma grande amiga nossa — explicou David. — O nome dela é Isabella Murillo Kelly e é casada com um engenheiro americano, que trabalha aqui. Minha esposa Angie e eu gostarí amos muito que ficasse conosco. Mas acabamos de mudar de casa e, para falar a verdade, ainda nã o temos acomodaç õ es para visitas. Por isso Isabella ofereceu a casa dela. Pensamos que seria melhor para você do que ficar num hotel com o bebê. Deve estar exausta, e lá poderá dormir tranqü ila.

— Mais ou menos — concordou Cherry. Olhou com interesse para a fachada magní fica de uma catedral em estilo espanhol.

— Este é o Jiró n de Ia Union, a principal rua de compras — explicou David, apontando para a extensa rua localizada entre dois blocos de enormes arranha-cé us. — É aqui que os limenos, os habitantes de Lima, gostam de se reunir à noite.

— O que significa Jiró n? — perguntou Cherry.

— Ê o nome dado a um bloco de edifí cios. Sã o cinco blocos nesta rua, cada um com um nome diferente.

A rua dava numa praç a imensa, de onde saí am ruas em todas as direç õ es. Cherry admirou-se da facilidade com que David encontrou a rua que desejava.

— Agora nã o estamos longe — disse ele. — Isabella é meio parente do pai do menino que você está trazendo, um parentesco um pouco

distante e complicado. Deve se preparar para as complicaç õ es das famí lias sul-americanas; existem sempre dú zia, s de primos e todos falam de todos. Eles adoram dramas e discussõ es. Vai trabalhar para a sra. Bianca?

— Ainda nã o sei. Se ela precisar de uma babá para Felipe...

— Pelo que sei, ela é muito rica e tem uma casa muito confortá vel. Ou melhor, vá rias casas: uma em La Paz, uma no campo. Bem, chegamos.

Cherry se sentia voltando no tempo, do ruí do e da poluiç ã o de uma cidade do sé culo XX para a Espanha do sé culo XVII. Estavam em um pá tio iluminado por vá rias lâ mpadas presas a suportes de ferro trabalhado. Na fachada muito branca da casa, destacavam-se as grades de madeira dourada que protegiam uma das janelas do andar inferior e uma porta dupla de madeira trabalhada, localizada a um canto, sob um arco decorado com frutas e flores. No andar superior, um balcã o també m de madeira dava para o pá tio, enfeitado com imensos vasos onde floresciam arbustos de diversas espé cies.

— Sabe o que os americanos e ingleses que vivem em La Paz dizem da cidade? — perguntou David, desligando o carro.

— Nã o — respondeu Cherry, voltando do sé culo XVII.

— Dizem que fica acima da linha do beijo.

— O que é isso?

— Uma linha imaginá ria/localizada a grande altitude. As grandes altitudes diminuem sensivelmente as necessidades bioló gicas, e fazer amor torna-se um esforç o.

Quando ela descia do carro, a grande porta se abriu e surgiu uma mulher pequena e magra, de vestido vermelho muito simples, que realç ava seus traç os espanhó is. Tinha a pele clara e macia, cabelos negros ondulados e olhos acinzentados. Cumprimentou David com entusiasmo e foi muito simpá tica com Cherry.

Olhando para Felipe, que piscava, sonolento, os olhos presos ao brilho do lustre de cristal do teto do vestí bulo, Isabella exclamou, num inglê s carregado:

— Ele é lindo! Que mã ozinhas perfeitas... como gostaria que fosse meu!

— Há muito tempo para isso — disse David. — E, depois, você e Bob estã o casados só há alguns meses.

— Mas ele fica fora tanto tempo! Agora, por exemplo, está lá no alto da cordilheira, supervisionando qualquer coisa. Fico muito sozinha. Desculpe minhas lamentaç õ es, srta. Hilton. Vou levá -la até o quarto que preparei para você e o bebê... deve estar cansada da viagem. Se precisar de alguma coisa, por favor, diga. Gostaria que se sentisse à vontade aqui.

Conduziu Cherry por uma escada, e David foi atrá s, levando as malas e o carrinho vazio. O quarto, mobiliado com simplicidade, nã o deixava de ser agradá vel; uma porta ampla se abriu sobre o balcã o que dava para o pá tio.

— É uma viagem muito longa, da Inglaterra até aqui — comentou Isabella, que observava enquanto Cherry colocava Felipe na cama e começ ava a trocá -lo. — Nã o acha estranho estar cuidando do filho de outra pessoa num paí s desconhecido?

— Nã o muito. No meu ú ltimo emprego, costumava tomar conta dos filhos da minha patroa quando viajavam para a Espanha, em fé rias.

— Á h, Espanha... també m já estive lá — disse Isabella. — Minha famí lia é uma das mais antigas, de origem espanhola-peruana. Meus ancestrais vieram para o Peru com Pizarro e o ajudaram a construir a Cidade dos Reis. Durante muito tempo, e até há pouco, os há bitos sociais daqui eram os mesmos da Espanha. As mocinhas nã o saí am sem uma acompanhante e ningué m se casava com pessoa de classe social diferente. Agora tudo mudou. As moç as sã o livres para viver a pró pria vida, trabalhar e casar com quem bem entenderem. Eu, por exemplo... casei com um americano de classe mé dia, para horror e indignaç ã o de minha avó, que me criou. Srta. Hilton, quem a contratou para trazer Felipe?

— O sr. Fidel Diaz — respondeu Cherry, sorrindo.

— Fidel! Como ele é alegre e encantador, nã o acha? També m é primo de Juan, como eu. Conheceu Juan?

— Nã o.

— Era bonito e imprevisí vel... estranho pensar que Felipe é filho dele. Nã o sabia que havia se casado na Inglaterra. Conheceu a esposa dele?

— Parece que se chamava Elisabeth. O sobrenome era Humphreys. — Cherry ficou surpresa com a reaç ã o de Isabella.

— Tem certeza?

— Tenho... mas posso lhe mostrar os papé is, se quiser.

— Nã o, nã o... nã o se preocupe. Madre de Dios! — Isabella estava pá lida e, percebendo que Cherry e David olhavam para ela com espanto, cobriu o rosto com as mã os. — Como é triste pensar em Juan, tã o cheio de vida e entusiasmo, morto... e esse bebê ó rfã o, sem os pais! Sinto muití ssimo. Quem vai esperá -la no aeroporto de La Paz, srta. Hilton?

— A srta. Francisca Sorata — respondeu David. — É provavelmente uma outra prima — acrescentou malicioso, piscando para Cherry.

Si, tem razã o — disse Isabella, sé ria. Parecia já ter se recuperado e Cherry supô s que ela, como Fidel, fosse muito emotiva e estivesse habituada a expressar as emoç õ es de forma intensa, sem reservas. — Francisca é uma prima do outro lado. O pai dela era metade Matino e parente de dona Bianca. Ela vive com dona Bianca... uma espé cie de dama-de-companhia. Mas vamos deixar que você cuide do bebê e. depois durma. Quer alguma coisa para comer ou beber?

— Nã o, obrigada. Comi muito bem no aviã o e nã o. conseguiria enfrentar outra refeiç ã o agora.

— Mas precisa dar de comer ao menino. Por favor, esteja à vontade para usar a cozinha... fica no andar debaixo, no fundo da casa.

— Obrigada — disse Cherry.

David avisou que passaria no dia seguinte para levá -la ao aeroporto e, em seguida, desceu com Isabella.

Depois de trocar Felipe e colocá -lo na cama, Cherry tomou um banho e se deitou, satisfeita, dormindo profundamente até o dia seguinte, quando Felipe acordou para a mamadeira.

Depois de alimentá -lo e vesti-lo, preparou-se para o vô o até La Paz, vestindo uma blusa branca e um conjunto azul de saia e casaco. Desceu para o café da manhã antes da chegada de David. Ele chegou na hora marcada e logo em seguida estavam se despedindo de Isabella.

— Se voltar a Lima outra vez, nã o deixe de nos visitar — disse Isabella. — Adoro receber visitas. Nã o esqueç a de mandar lembranç as minhas a dona Bianca e.. . — calou-se de repente, depois acrescentou: — ao resto da famí lia. Adios.

O pequeno Austin se afastou, veloz, enquanto Isabella continuava acenando em despedida. Na Lima do sé culo XX, a leve neblina da noite anterior tinha desaparecido e o sol iluminava as cruzes douradas das velhas igrejas e os vidros das janelas dos arranha-cé us brancos, de tal maneira que tudo parecia brilhar.

O aviã o que devia levar Cherry e Felipe até La Paz nã o era dos mais modernos. Mas, como dizia David, era melhor que nada, já que à s vezes a companhia local costumava cancelar vô os por falta de dinheiro.

Mais tranqü ila ao pensar que a primeira parte da viagem havia transcorrido sem incidentes, Cherry relaxou e começ ou a prestar atenç ã o à conversa de duas senhoras de meia-idade, vindas de Ohio, nos Estados Unidos. Era a primeira viagem delas à Amé rica do Sul e pareciam muito entusiasmadas com a perspectiva de conhecer a Bolí via, paí s onde, segundo elas, tudo podia acontecer.

Cherry nã o acreditou muito e pensou na chegada a El Alto, aeroporto de La Paz. A srta. Sorata estaria à espera deles. Sem dú vida era també m uma senhora de meia-idade, de brilhantes olhos castanhos e sorriso simpá tico, uma espé cie de versã o feminina de Fidel. Admiraria a beleza de Felipe e comentaria a semelhanç a do menino com o pai. Depois os levaria até um carro com motorista. — Cherry estava certa de que dona Bianca tinha um motorista — e iriam direto para a casa de dona Bianca. Lá, Cherry entregaria o pequeno Felipe à avó.

Nã o chegou a tentar adivinhar a aparê ncia de dona Bianca pois as duas americanas chamaram sua atenç ã o para a paisagem lá fora da janela. Picos cobertos de neve emergiam de um mar de granito, separados uns dos outros por profundas ravinas: eram os Andes insolentes, iluminados em algumas partes pelo sol brilhante, profundamente sombrios em outras.

De repente o aviã o estremeceu e pareceu sofrer um baque. As americanas gritaram, apavoradas. Que sensaç ã o terrí vel seria bater contra aquela massa de rocha e ficar perdida para sempre nos picos gelados!

Mas o aparelho estava apenas descendo, aproximando-se do aeroporto.

Ela e Felipe foram os ú ltimos a sair do aviã o e foram acompanhados ao edifí cio do aeroporto por uma das aeromoç as, que levou as bagagens. Passaram sem problemas pela alfâ ndega, onde ningué m parecia interessado na chegada do filho de Juan Benitez.

— Há algué m esperando por você s? — perguntou a aeromoç a.

— Sim — respondeu Cherry, olhando o salã o quase vazio. Aparentemente nã o havia nenhuma senhora de meia-idade à espera deles. Aqui e ali, apenas alguns homens, todos com pastas de executivos, pele morena, olhos escuros e bigodes.

— Nã o está vendo ningué m? — perguntou a aeromoç a. — Porque nã o senta e descansa um pouco enquanto espera?

Cherry precisou admitir que se sentia um pouco estranha, da mesma forma que Felipe, que abria muito a boca e esfregava o nariz com as mã ozinhas.

— Preciso ir agora. Espero que sua amiga nã o demore. Adios, senorita— disse a aeromoç a, se afastando.

Tentando ignorar a onda de pâ nico que ameaç ava tomar conta dela, ao se ver sozinha naquele lugar estranho, Cherry olhou em volta. Ningué m mais havia chegado, e restavam poucas pessoas na sala de espera.

Recostou-se na poltrona, tentando seguir os conselhos de Fidel. " Nã o fique agitada, ou se sentirá mal. O ritmo de vida nos lugares altos é lento. Existe sempre um amanhã... "

Por mais otimista que tentasse parecer, esperava que a srta. Sorata nã o esperasse até o dia seguinte para aparecer.

Mergulhou numa espé cie de sonolê ncia durante uns quinze minutos, e foi acordada por uma voz masculina, uma voz profunda e fascinante, mas ao mesmo tempo carregada de ironia.

— Você é Cherry Hilton? — Só pela pronú ncia das vogais notava-se que o inglê s nã o era a lí ngua natal dele.

Cherry olhou para cima, num gesto que pareceu levar horas, tal o peso que parecia ter sobre a cabeç a. O que viu foi um homem alto, de bigodes, usando terno areia e chapé u de feltro negro, de abas largas; os olhos tinham cor indefinida.

— Sim. — Sua voz soou como um suspiro. Vim buscá -la — disse ele, educado.

Sob o casaco, ele usava uma camisa azul, aberta no peito, deixando ver um lenç o vermelho e branco, amarrado num nó descuidado.

— E a srta. Sorata? — perguntou Cherry, começ ando a sentir algumas suspeitas.

— Ela nã o pô de vir — respondeu ele, com voz suave. — Meu carro está lá fora. Deixe que levo o bebê para você.

Antes que Cherry pudesse falar ou se mexer, ele pegou Felipe e uma das malas e afastou-se em direç ã o à saí da.

Felipe estava sendo raptado bem sob o nariz dela! Cherry levantou de um salto e olhou em volta, mas ningué m parecia demonstrar o menor interesse por ela ou pelo homem que acabara de sair com Felipe. Nã o tinha outra alternativa senã o seguir o peruano, que já havia atravessado todo o salã o e estava lá fora.

Sentindo-se estranhamente fraca, apanhou a outra mala, a bagagem de mã o e caminhou em direç ã o à saí da, cambaleante como se estivesse bê bada. Lá fora, sentiu-se ainda pior, com falta de ar e enjô o de estô mago.

O ar estava seco, e o cé u, azul. Blocos maciç os de nuvens lanç avam sombras sobre as montanhas que se erguiam em direç ã o ao cé u.

Exausta da pequena caminhada, Cherry parou um instante, imaginando para onde teria ido o homem e se algum dia veria Felipe outra vez.

Naquele instante, um carro estranho, parecido com uma caminhonete, parou ao lado dela. A pintura vermelha e creme, coberta de poeira, parecia indicar que o carro havia percorrido muitos quilô metros para chegar até ali.

O homem desceu e caminhou até ela, abrindo a porta e fazendo sinal para que entrasse. No banco de trá s, Felipe dormia tranqü ilamente em seu cestinho. Cherry sentou-se atrá s, ao lado do menino.

O homem abriu a porta traseira do veí culo e acomodou a bagagem num espaç o atrá s do banco. Quando a porta bateu, Cherry suspirou aliviada: seu pâ nico era totalmente injustificado. Talvez até uma reaç ã o do organismo à altitude.

O homem com certeza devia trabalhar para dona Bianca, pensou ela. Ele entrou no carro e fechou a porta, lanç ando a ela um olhar penetrante; seus olhos, surpreendentemente, eram azuis, mas de um azul tã o escuro que pareciam negros.

— A mudanç a para quem chega aqui de aviã o é muito repentina? — disse ele. — Aqui em cima os movimentos e os pensamentos ocorrem em dimensõ es diferentes para as pessoas que nã o estã o acostumadas, como você. Talvez tivesse sido melhor se fizesse uma viagem mais lenta, de trem ou de carro.

As suspeitas de Cherry começ aram a se desfazer. Um simples motorista nã o demonstraria tanto interesse pelas reaç õ es dela à altitude, nem falaria um inglê s tã o perfeito. Quando ele se virou para a frente e deu a partida no carro, ela procurou relaxar.

— Nã o havia tempo — respondeu fria, recostando-se no assento. Estava decidida a conhecer tudo que pudesse e a aproveitar ao má ximo o tempo que ia passar ali.

Mas seus esforç os para relaxar duraram pouco, pois em poucos minutos estava agarrada ao banco dianteiro, apavorada, enquanto o veí culo ziguezagueava por uma estradinha estreita, parecendo prestes a despencar montanha abaixo. O coraç ã o aos saltos, ela avistou a cidade, à distâ ncia, muitos metros abaixo.

O veí culo diminuiu a marcha. Logo à frente, uma placa com os seguintes dizeres surgiu diante deles: " Atenç ã o! Cuidado! A velocidade poderá conduzi-lo ao cemité rio". Com um sú bito tremor, Cherry avistou os restos de um carro presos a uma rocha saliente, mais em baixo, no precipí cio, numa demonstraç ã o prá tica do que aconteceria a eles se nã o diminuí ssem a velocidade. O motorista desviou o carro para a beira da estrada, a fim de permitir que um enorme caminhã o vindo da cidade passasse por eles.

Depois que o caminhã o passou, eles prosseguiram em direç ã o à cidade, e à medida que desciam as montanhas iam se tornando mais e mais altas, verdadeiras muralhas cercando a cidade que escaldava sob o sol. Um pico surgiu diante deles, muito branco e brilhante, com sombras azuladas aqui e ali.

— Aquele é o Illimani? — perguntou Cherry, entusiasmada por reconhecer a montanha.

Si. — Com a resposta, ela percebeu que nem sempre ele pensava em inglê s. Continuou a falar em castelhano, mas bem devagar, para que ela o entendesse. — É o guardiã o de La Paz. Um amigo meu, que se considera poeta, o chama de " festa de beleza".

Cherry olhou-o, novamente cheia de suspeitas. Mas na posiç ã o em que estava, nã o conseguiu vê -lo direito. Percebeu o cabelo castanho que aparecia sob o chapé u; os ombros largos apoiados no encosto; o queixo de linhas bem marcadas; o bigode bem aparado; o nariz dominador; as mã os bronzeadas e elegantes apoiadas à direç ã o.

Tentando afastar as suspeitas, recostou-se outra vez no assento. Naquele momento, passavam por um conjunto de casebres muito rú sticos, construí dos de barro, que pareciam se projetar da montanha. Pessoas de aspecto pouco comum para Cherry caminhavam pela regiã o, todas de feiç õ es semelhantes, pela morena e olhos estreitos.

As mulheres usavam saias longas, blusas largas e xales sobre os ombros. Na cabeç a, o inconfundí vel chapé u redondo, de cores muito vivas, de onde longas trancas negras caí am até os ombros. Embora os homens vestissem roupas bem mais discretas, basicamente calç as, camisas e casacos, alguns usavam ponchos coloridos em lugar do casaco.

À medida que o carro se aproximava da cidade, as casas iam se tornando maiores e melhores. Avenidas cercadas de á rvores surgiam diante deles, repletas de modernos edifí cios de escritó rios, como qualquer cidade grande, mas nã o muito altos, talvez devido à altitude do lugar.

Depois de sacolejar desconfortavelmente sobre as pedras antigas de uma ruazinha estreita que corria ao longo de um muro alto, o veí culo atravessou um portã o em forma de arco e entrou no pá tio ensolarado de uma casa em estilo colonial espanhol. Flores de diferentes espé cies e cores enfeitavam o lugar: jasmins amarelos em forma de estrelas, dentelá rias azuis e trepadeiras douradas caí am em cascatas sobre cravos-de-defunto e canteiros de zí nias. No centro, uma graciosa fonte de bronze, decorada com cabeç as de panteras.

As panteras da fonte acalmaram um pouco as suspeitas de Cherry: a casa devia pertencer à famí lia Matino. Ela desceu do carro e se virou para pegar o cestinho de Felipe, mas o motorista foi mais rá pido: pelo outro lado, apanhou a cesta e caminhou em direç ã o à porta da casa. Cherry o seguiu, feliz por nã o precisar carregar peso. Estava passando mal outra vez, e as cores das flores se misturavam diante dos olhos dela.

— Por aqui, senhorita, por favor — murmurou ele, abrindo uma porta onde se via uma pantera esculpida.

Ela entrou na frente e ficou maravilhada com o hall de piso de terracota. A mobí lia de madeira escura, pesadamente trabalhada, contrastava com a brancura das paredes; uma escada em espiral, com corrimã os de madeira també m trabalhada, conduzia a uma galeria superior.

A porta se fechou e o homem colocou o cesto de Felipe sobre um baú de madeira escura. Virando-se, Cherry se surpreendeu com a presenç a de outra mulher, de pele ocre e cabelos negros, presos numa tranç a; tinha um rosto impenetrá vel e olhos profundos e escuros. Vestia uma saia vermelha e uma blusa branca; usava brincos de ouro e trazia um broche em forma de peixe prendendo o xale de lã cinza.

A impassividade da mulher deixou Cherry nervosa. Procurou o motorista em busca de proteç ã o. Ele estava de costas e tinha tirado o chapé u, jogando-o sobre uma cadeira, num gesto de senhor da casa e nã o de criado.

Atraí dos por uma estranha forç a, os olhos de Cherry ergueram-se do chapé u para a cabeç a do homem. Surpresa, notou uma mecha de cabelo branco destacando-se entre os cabelos do seu acompanhante.

Mas o cabelo dele nã o era escuro; era de um castanho quase dourado, crespo como o de uma crianç a. O tipo de cabelo que atraí a as carí cias.

Mas a mecha prateada, tã o cruel como a cicatriz deixada por uma ferida, desconcertou-a tanto quanto a mulher parada ao lado da porta.

— Onde está a sra. Somervell? — perguntou, insegura.

— Lamento dizer que ela nã o pô de vir a La Paz — respondeu o homem com delicadeza, virando-se e olhando-a.

— Entã o quem é você? — perguntou Cherry, desejando ter o cé rebro mais á gil. Tinha a sensaç ã o de que ele demonstrava hostilidade em relaç ã o a Felipe e a ela pró pria.

— Estava começ ando a pensar que você nã o ia me fazer essa pergunta — respondeu, com um sorriso irô nico.

 



  

© helpiks.su При использовании или копировании материалов прямая ссылка на сайт обязательна.