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CAPÍTULO IV



 

Vanessa atravessava o hall, logo depois do lanche, quando encon­trou o secretá rio de don Rafael e aproveitou a oportunidade para marcar uma entrevista com o señ or. Ficou combinado que Carlitos mandaria avisá -la, assim que o patrã o chegasse de uma reuniã o de negó cios. Afastou-se, mais aliviada.

Mas ele chegou quase na hora do jantar e pediu desculpas, porque ainda precisava receber um de seus capatazes. Só poderia falar com ela depois das dez.

— Está certo, señ or.

Olhou fixo para Vanessa e pareceu que ia perguntar alguma coisa, mas foi interrompido pela chegada de Bá rbara. Parecia uma princesa, descendo a escada, o vestido de chiffon branco flutuando a cada pas­so, o cabelo negro preso por um pente espanhol enfeitado de pé rolas. Encarou Vanessa e seu olhar revelou as dú vidas que lhe passavam pela cabeç a. Era como se dissesse: " O que estã o conversando? O que foi que contou a ele? "

Nã o era nenhuma crianç a e devia saber que Ruy Alvadaas seria o ú ltimo homem do mundo que don Rafael aprovaria. Se tivesse esco­lhido um bom rapaz, de sua idade, Vanessa apoiaria o namoro e até facilitaria as coisas para os dois. Mas Ruy era um lobo, e a melhor maneira de afastá -lo da garota era aceitar o emprego que don Rafael lhe oferecia.

Durante todo o jantar, Bá rbara ficou calada. Vanessa tentou igno­rar seus olhares suplicantes. A afliç ã o da moç a era de dar pena. Vanessa procurou acalmá -la, sorrindo para mostrar que nã o tinha nada a temer: seu segredo estava bem guardado e continuaria assim.

Nã o pretendia mesmo contar a don Rafael o que descobrira na­quela tarde. Em primeiro lugar, porque nã o confiava no temperamento explosivo dele; depois, porque temia transformar Ruy numa espé cie de heró i aos olhos da garota, se o padrinho tomasse alguma atitude violenta contra ele. Bá rbara podia fazer uma tolice, como fugir com o amado, obrigando don Rafael a ir buscá -la à forç a. E ela o odiaria por isso. O carinho que havia entre eles era tã o grande como o que unia Vanessa ao tio. Nã o ia permitir que nenhum Ruy Alvadaas pu­sesse tudo a perder.

Na cabeceira da mesa, o señ or jantava, indiferente à s preocupaç õ es de Vanessa, mas nada indiferente à s atenç õ es de Lú cia Montez. Os dois conversavam e riam baixinho e, cada vez que a espanhola se inclinava para ele, as á guas-marinhas e os brilhantes do colar que usava ofuscavam o brilho dos candelabros. A sala, com seus mó veis de estilo, pesadas cortinas de veludo vermelho, tapeç arias antigas e arranjos de rosas em jarros de prata, era um cená rio perfeito para a beleza aristocrá tica daquela mulher.

Mesmo contra a vontade, Vanessa teve que admitir que formavam um lindo casal: ela, toda de negro; ele, de terno branco.

A voz pastosa de Ruy Alvadaas interrompeu suas divagaç õ es. Tinha bebido mais do que de costume e parecia ter recuperado a autoconfianç a, seriamente abalada desde o incidente na torre.

— É verdade, srta. Carrol — perguntou, atrevido —, que as ingle­sas sã o muito liberais?

A insinuaç ã o estava clara; pelo menos, para ela e Bá rbara.

— Depende do que chama de liberal, señ or Alvadaas. Se quer saber se nã o somos exigentes na escolha de nossos amigos e nossos. . . namorados, a resposta é nã o. Mas é claro que há na Inglaterra, como em qualquer outro lugar, garotas que deixam homens irresponsá veis fazê -las de bobas. Felizmente, sã o minoria.

— Oh, deixei você zangada? Sinto muito. — Nã o sentia. O que disse a seguir provou isso: — Deve estar ansiosa para voltar ao seu paí s, agora que nada mais a prende a estas ilhas, nã o é?

— Claro. Partirei assim que as autoridades tiverem providenciado os meus papé is. Nã o pretendo dar trabalho a don Rafael por muito tempo mais.

— Meu bom primo leva muito a sé rio as responsabilidades, nã o acha? — Deu um olhar na direç ã o de Bá rbara, que sorriu para ele de um jeito tã o apaixonado que Vanessa teve medo de que os outros notassem.

Nã o aceitou a provocaç ã o. Cada vez ficava mais convencida de que Bá rbara corria perigo. Nã o era justo que a natureza fizesse as jovens tã o sensí veis ao amor e nã o lhes desse nenhuma defesa contra os homens errados.

— Agora, é você quem está muito sé ria, señ orita — Ruy Alvadaas murmurou, enquanto enchia novamente o cá lice de vinho. — Só há duas coisas que deixam uma mulher assim: ser amada... ou nã o ser.

Insinuava, é claro, que havia uma sombra em seus olhos verdes porque era a ú nica à mesa que nã o conhecia o amor, que nã o se sentia desejada por ningué m. Coincidê ncia ou nã o, naquele exato momento don Rafael virou-se para Lú cia e sorriu. Vanessa sentiu como se ele risse dela, e nã o pô de acreditar que aquele era o mesmo homem que, de manhã, havia falado com tanto entusiasmo de seu trabalho e suas viagens; que amava a gente simples da ilha e gostava de tomar vinho sentado sob as á rvores, ouvindo o canto dos pas­sarinhos e as ondas. Qual seria o verdadeiro? O impecá vel fidalgo que ignorava a presenç a dela ou o pirata que a levara para ler a sorte?

O café, como sempre, foi servido no salã o. Vanessa desculpou-se e saiu para dar um passeio, antes de ir ao encontro de don Rafael, no escritó rio. A noite estava quente e estrelada. O ar, perfumado pelas roseiras em volta de uma velha fonte que, segundo Bá rbara, tinha sido trazida da Espanha, pedra por pedra, pelo primeiro Rafael de Domerique. Esse antepassado aventureiro foi o primeiro espanhol a chegar à s ilhas. Recebeu Luenda como prova da gratidã o real e, desde entã o, a bandeira vermelha e dourada de Castela tremulava em seus domí nios.

Vanessa sentou-se no banco de pedra do jardim. Começ ava a com­preender que nã o sabia absolutamente nada sobre o homem que du­rante cinco anos freqü entara a casa do tio. De repente, ele revelava uma personalidade complexa e intrigante. Era menos rude do que parecia ser; tinha problemas, claro, mas encontrava tempo para se preocupar com um casal de camponeses que precisava de um filho para salvar o casamento.

Sentiu um calafrio, como se algué m a tocasse com dedos gelados. De repente, estava correndo de volta pela alameda de jasmins, cheia de um pâ nico inexplicá vel. O coraç ã o batia feito louco e as palmas das mã os estavam ú midas quando entrou no castelo. O reló gio do hall batia o quarto de hora. Eram dez e quinze, e don Rafael a esperava.

Bateu, e as portas duplas do escritó rio foram abertas quase imediatamente. Era uma sala luxuosa e confortá vel, dominada por uma enorme mesa de carvalho. Na parede atrá s dela, estava pendurado e mais lindo quadro da Madona e o Menino que já tinha visto.

— Gosta mais dessa, nã o é? — perguntou don Rafael. — É a mi­nha pintura favorita. Me inspira e me transmite paz.

Na noite anterior, ele a levara à galeria do castelo. Ela havia ficado impressionada com tantas obras de arte, e horrorizada diante de uma tela que mostrava a crueldade de um auto-de-fé da Inquisiç ã o espa­nhola.

— Que coisa terrí vel! Eu nunca teria um quadro assim em casa.

— Acha que eu devia, simplesmente, jogar fora um quadro que custa uma fortuna?

— Pelo menos, tirar da parede e guardar no só tã o. Afastara-se, mas, pelo canto do olho, tinha visto que ele observava atentamente os inquisidores encapuzados que aç oitavam a ví tima e a expressã o de terror da mulher devorada pelas chamas da fogueira. Depois, ouviu que ria baixinho, como se achasse muito divertida a reaç ã o daquela inglesa sentimental.

Agora, comparando o incidente na galeria com o que acabava de dizer sobre a Madona, Vanessa chegou à conclusã o de que, definiti­vamente, nunca entenderia ò que se passava na cabeç a e no coraç ã o de don Rafael de Domerique. Jamais seriam amigos, como Jack e ela, porque eram incapazes de compartilhar os mesmos sentimentos.

— Estranhei muito seu pedido para me ver, Srta. Carrol. Tem alguma coisa a ver com nossa conversa desta manhã?

— Sim...

— Entã o, vamos nos sentar e conversar tranqü ilamente. — Levou-a até um sofá de couro e perguntou, sorrindo: — Tem alguma coisa contra um cá lice de rum durante uma reuniã o de negó cios?

— Nã o é mais estranho do que vinho no café da manhã.

Ele foi até um bar embutido na parede e voltou com dois cá lices. Ofereceu um a Vanessa e se sentou numa poltrona, de frente para ela.

Salud!

Salud!

O rum, produzido na propriedade, aquecia seu corpo como o sol da ilha, mas podia provocar, como o vinho já tinha provocado antes, a mesma sensaç ã o de vertigem. Provou só um pouquinho e colocou o cá lice na mesinha ao lado.

Don Rafael seguia todos os movimentos dela com um olhar obser­vador. Balanç ou a cabeç a e brincou:

— Nunca faremos de você uma verdadeira señ orita. Quer que peç a um suco de laranja?

Fez que nã o e, para fugir daqueles olhos que a estudavam, foi até a estante de livros que tomava uma das paredes. Havia livros em inglê s e espanhol, todos encadernados em couro gravado a ouro.

Um volume, menor e mais antigo do que os outros, chamou a atenç ã o de Vanessa: o diá rio de dona Mariana de Domerique y Granquist, mã e do homem que a olhava, recostado nas almofadas de veludo, tamborilando de leve no cristal da taç a.

— Estamos sozinhos e à vontade, e já estou perdendo a paciê ncia. Afinal, o que tem de tã o importante para dizer, que nã o tem coragem nem de me encarar?

Embora falasse baixo, o tom era ameaç ador. Vanessa foi tomada por um pâ nico repentino: talvez ele tivesse notado o estranho compor­tamento de Bá rbara durante o jantar, os olhares de ansiedade que lhe dava. Mas tentou tranqü ilizar-se: estava distraí do demais com a viú va para perceber o que acontecia à sua volta. Nã o podia se deixar levar pelos nervos.

— Entã o? Está com medo de quê?

— De nada, señ or. Ao contrá rio, acho que vai gostar do que tenho a dizer. Resolvi aceitar a sua oferta.

— Ah, sei. — Ele pousou o cá lice de rum na mesinha. — Muito estranho que tenha tomado uma decisã o tã o cedo. Nã o parecia entu­siasmada, hoje de manhã. Cheguei a pensar que só prometeu pensar no assunto por delicadeza. — Levantou-se, sé rio. — O que a fez mudar de idé ia tã o de repente, Srta. Carrol?

— O senhor mesmo disse que sou uma pessoa muito inde­pendente. .

— Nã o me venha com evasivas. Diz que quer o emprego, mas posso ver nos seus olhos que preferia nã o aceitar. Vamos, seja sincera. É por você ou é por Bá rbara que quer ficar na ilha?

— E tenho outra escolha?

— Claro que tem. Se está mesmo tã o ansiosa para voltar para a Inglaterra, nã o precisa esperar que as autoridades paguem a indeni­zaç ã o. Posso lhe emprestar o suficiente para viver confortavelmente no seu paí s, até receber o dinheiro ou conseguir um bom emprego.

Vanessa estava surpresa demais para responder logo. Desde o co­meç o, ele tinha insistido para que ficasse ali; agora, sem mais nem menos, vinha com aquela histó ria de empré stimo. Estava livre para, partir, mas. . .

Don Rafael pediu licenç a e acendeu um havana, cujo aroma forte encheu o escritó rio. Voltou a sentar-se, os olhos fechados, saboreando o charuto. Nã o parecia mais ter pressa. Homem desconcertante aquele, que mudava de um momento para outro.

E quanto a ela? Nã o teria mudado també m? " Se está mesmo tã o ansiosa para voltar à Inglaterra", ele tinha dito. Estaria tã o ansiosa assim? Nos primeiros dias, com certeza. Agora, começ ava a duvidar.

Depois de cinco anos no Caribe, conseguiria se adaptar ao mesmo tipo de vida de antes? As amigas mais í ntimas deviam estar casadas ou ter uma carreira; talvez nã o tivessem mais nada em comum com algué m que passara tanto tempo numa plantaç ã o de café, cercada de florestas e de nativos.

Quando o tio morreu, pensou que seria fá cil voltar e retomar a vida de onde tinha parado. Agora que conseguia pensar com mais clareza, isso parecia quase impossí vel. Tinha criado raí zes naquelas ilhas e, como geralmente acontece com plantas tropicais, nã o acre­ditava que se desse bem num clima mais frio e menos vibrante.

— Nã o tem nada a dizer sobre a minha proposta, Srta. Carrol?

— Se quer mesmo saber, don Rafael, estou confusa demais para decidir. Num minuto, o senhor diz que é absolutamente indispensá vel que eu fique; depois, me dá permissã o para partir. Primeiro, me ofe­rece um emprego; a seguir, resolve que nã o sou a pessoa mais indi­cada e praticamente retira a oferta.

— Sei que pode parecer que estou brincando com você, mas nã o tire conclusõ es apressadas. Perder seu tio, o ú nico parente que tinha, foi um grande choque, e é natural que sua primeira reaç ã o tenha sido o desejo de voltar para casa. Nã o lhe passou pela cabeç a que seu lar nã o é mais lá, que nada mais a liga aos amigos que deixou. Por isso, achei melhor lhe dar algum tempo para pensar em tudo isso. Nã o se pode tomar decisõ es importantes, quando se está sob forte tensã o emocional e com o coraç ã o ferido.

Atravessou a sala e abriu as portas que davam para a varanda. Durante alguns momentos pareceu ausente, o olhar perdido no mar prateado pelo luar. Depois, disse:

— Como todo inglê s, seu tio era um sentimental em relaç ã o à sua terra natal, mas foi conquistado pelo ar, pelo sol e pela gente destas ilhas. Vivia feliz em Ordaz e, pelo que pude notar, você tam­bé m se adaptou muito bem. Aqui em Luenda, no entanto, sei que nã o se sente tã o à vontade. Aqui você é uma estranha, uma depen­dente. Estou certo?

Ela fez que sim. Conhecia-o há cinco anos, mas continuavam estranhos um para o outro. Alguma coisa sempre impediu que se aproximassem, como se uma amizade entre os dois fosse impossí vel.

Ao luar, o rosto dele brilhava como feito de aç o. De onde se encon­trava, Vanessa podia ver apenas uma das faces; a outra estava na sombra. Este é o verdadeiro Rafael de Domerique, pensou; nem o aristocrata, nem o pirata, mas a figura inflexí vel e complexa, divi­dida entre a luz e a escuridã o. Completamente diferente dos ingleses que conhecia, incapazes de fazer promessas de manhã e retirá -las à noite. Como pô de dizer que a levaria à pró xima festa da colheita? Sentiu alguma coisa morrer dentro de si.

— Bem, Srta. Carrol, tem toda liberdade para fazer o que quiser. Pode partir para a Inglaterra, assim que desejar.

— E Bá rbara?

— Parece preocupada com a garota. Por quê? Sabe de alguma coisa que eu nã o sei?

— Nã o exatamente. — Estava com a garganta tã o seca que pegou o cá lice e o esvaziou, sem mesmo perceber. Sentiu-se reanimada pelo rum, embora o olhar de suspeita dele ainda a desconcertasse. — Agradeç o por se oferecer para me sustentar na Inglaterra, mas prefiro esperar pela indenizaç ã o aqui mesmo. Quero o emprego de gover­nanta de Bá rbara. . . para o bem dela e para o meu.

— Mais por você, nã o é? Prefere qualquer coisa a aceitar a mi­nha ajuda. A sus ordenes, señ orita. Por ahora.

— Desculpe, mas o que quer dizer isso, señ or?

— Que será tudo como você quiser. — Fez uma ligeira reverê n­cia para ela. — Sem dú vida, vai se sentir mais em casa conosco, se nã o tiver mais a sensaç ã o de estar aceitando. . . caridade.

Reconheceu o mesmo tom cí nico que ele havia usado naquela noite, na lancha. Ele nã o parecia exatamente ansioso para assumir a respon­sabilidade por ela; agora, també m nã o. Havia em seu rosto uma mis­tura de impaciê ncia e sombria resignaç ã o, como se apenas seu rí gido có digo de honra o impedisse de colocá -la no primeiro aviã o para a Inglaterra.

Vanessa estava grata por sua hospitalidade mas, aceitando o em­prego de acompanhante de Bá rbara, sabia que haveria uma mudanç a em seu relacionamento com o anfitriã o. Numa casa espanhola, uma duena é tratada com todo respeito e deferê ncia, mas nã o é conside­rada como algué m da famí lia. Portanto, a partir daquele momento, don Rafael nã o tinha mais necessidade de se mostrar amigá vel. Va­nessa passava de hó spede a empregada e preferia essa nova situaç ã o.

— Estamos combinados, entã o, señ or?

— Parece. Quer que eu avise Bá rbara, ou prefere fazer isso você mesma?

— Eu mesma — respondeu rapidamente, temendo que pudesse haver uma cena entre os dois, se ele contasse a novidade à garota. Do modo como Bá rbara estava amedrontada e apaixonada, talvez interpretasse a nova posiç ã o de Vanessa na casa como uma conspira­ç ã o entre ela e o padrinho superprotetor para destruir seu romance com Ruy. Conhecendo o temperamento dela, sabia que era bem possí vel que se descontrolasse e acabasse revelando a verdade. Nã o queria nem pensar no que don Rafael faria, se soubesse que o mis­terioso navio da afilhada era seu primo conquistador.

Antes que Vanessa pudesse dar boa-noite e escapar dali, ele pegou um livro na estante, folheou-o e, com aquela desconcertante maneira de mudar de assunto de repente, disse:

— É uma pena que nã o saiba espanhol. Tenho certeza de que ia gostar muito deste livro: o clá ssico Poema del Cid, uma fascinante mistura de lenda e realidade. Já ouviu falar de El Cid?

Ela fez que sim, sem muita certeza de que gostaria mesmo. Sempre imaginara que El Campeador, o famoso heró i da Espanha na é poca em que os mouros dominavam o paí s, seria bem parecido com aquele homem que a encarava com um sorriso arrogante.

— Que tempo para se viver — ele murmurou, depois de ler alguns trechos do poema. — El Cid é uma espé cie de sir Lancelot espanhol. Podia ser tanto um tirano quanto um ousado lí der. Interessante com­binaç ã o, nã o acha?

— Muito interessante — repetiu, apenas porque seu novo patrã o esperava uma resposta.

Ele colocou o livro de volta na estante e fez um gesto para que se aproximasse. Segurando-a pelo braç o, levou-a até um armá rio, do outro lado da sala.

— Vou lhe mostrar algo de que vai gostar.

Sempre com a mã o no braç o dela, abriu a pesada porta de carva­lho, que revelou uma fantá stica coleç ã o de leques de brocado e mar­fim, pentes espanhó is preciosos, berloques lavrados em ouro e prata e incrustados com pedras, xales bordados, e uma infinidade de jó ias.

— Esses eram os " brinquedos" da minha mã e — disse, sorrindo. — Lembro-me de vê -la, quando ainda era um garoto, sentada diante deste armá rio, experimentando um bracelete ou um colar e olhando, cheia de carinho, para meu pai, com seus grandes olhos castanhos brilhantes. Eu morria de inveja, porque ela nunca olhava para mim daquele jeito. Que criancice! Eu tinha ciú me, muito ciú me.

Tirou de uma bandeja de veludo preto um brilhante colar de prata e pedras verdes.

— Essas sã o as famosas esmeraldas da Colô mbia. Lindas, nã o? Vanessa reconheceu a fantá stica jó ia que enfeitava o pescoç o longo e moreno da mulher do grande quadro que ficava no salã o.

— Sã o maravilhosas.

— Quer experimentar?

— Oh, nã o. — Deu um passo para trá s, nervosa. — Nã o sã o o tipo de coisa que. . . que combina comigo.

— Mesmo? — Rafael ergueu as sobrancelhas e olhou-a demoradamente, dos pé s à cabeç a. — É um há bito das inglesas se menospreza­rem desse jeito? Pois acho que você tem olhos e pele perfeitos para esmeraldas. O que nã o combina nada com você é esse vestido em­prestado.

Instintivamente, Vanessa olhou para o vestido azul-escuro, uma cor que nã o favorecia em nada seus olhos verdes e seu cabelo claro, quase ruivo. Incrí vel que ele reparasse em coisas assim!

Don Rafael colocou de volta o colar na bandeja e guardou-a. Va­nessa nã o pô de deixar de pensar que ele era muito negligente por manter aqueles tesouros ao alcance da mã o de qualquer um. O armá ­rio nã o tinha sequer chave. Devia confiar cegamente na lealdade de seus empregados. Tinha que admitir que era um homem fora do co­mum. Havia, inclusive, alguma coisa de infantil na maneira como, agora, acariciava um xale vermelho de seda bordada a ouro.

— Minha mã e ficava magní fica com isto. Tinha a pose altiva das mulheres de Castela.

— Ela. . . morreu há muito tempo, señ or?

— Minha mã e nã o está morta, señ orita — respondeu, parecendo surpreso. — Logo depois da morte de papai, ela foi para um con­vento, na Segó via. Os dois se amavam muito, e o mundo nã o tinha mais nada a oferecer a dona M ariana, depois que o perdeu. Está cho­cada que uma mulher possa preferir a solidã o de um convento? Nã o compreende um amor tã o intenso entre duas pessoas feitas uma para a outra?

Sim, compreendia um amor assim, mas nã o conseguiu se controlar e disse:

— E quanto ao senhor, don Rafael? Nã o tinha ainda nem vinte anos quando seu pai morreu. Como dona Mariana pô de deixá -lo sozi­nho com tantas responsabilidades?

Arrependeu-se da pergunta, mas ele nã o se ofendeu.

— Numa casa espanhola, um rapaz, seja qual for a soa idade, torna-se automaticamente o chefe da famí lia quando o pai morre. Eu sabia que minha mã e desejava muito voltar à Segó via, depois de viú va, e embora quisesse mantê -la a meu lado, aqui na ilha, nã o podia insistir para que ficasse num lugar onde seu coraç ã o nã o estava mais. Dona Mariana era uma mulher de verdade. Amava acima de tudo o homem a quem foi dada em casamento, porque nã o é direito uma mulher amar mais os filhos do que o marido. As crianç as cres­cem e vã o embora, mas marido e mulher devem continuar sempre juntos, tendo apenas um ao outro. Minha mã e, infelizmente, nã o pô de envelhecer ao lado do companheiro, e eu já era quase um homem. Por isso, partiu. Pertence a uma ordem que vive em clausura. . .

Terminou a frase com um dar de ombros, deixando claro que rara­mente via a mã e que amava tanto. Dela, restavam apenas o retrato e aqueles tesouros, preciosos principalmente por terem pertencido a dona Mariana.

Que grande amor devia ter sido o daquela mulher!

Um calafrio percorreu o corpo de Vanessa, e ela ficou contente quando ele fechou o armá rio de leques, pentes, jó ias e recordaç õ es. Havia uma sombra de melancolia no rosto moreno. Talvez por isso tenha aceitado o convite que lhe fez para irem até o terraç o: nã o podia negar sua companhia a algué m que estava sofrendo.

Era um terraç o particular, em forma de meia-lua, coberto com mosaicos e com jardineiras de faianç a, onde damas-da-noite abriam suas flores de perfume exó tico para o luar. A balaustrada de pedra esculpida reproduzia guirlandas de flores, conchas, querubins e era abaulada na parte de baixo.

— Este era um tipo de balcã o muito usado antigamente. O for­mato especial permitia que as damas sonhadoras se debruç assem, sem amarrotar as saias volumosas. Os costumes antigos tinham um certo charme, nã o acha?

— As mulheres eram indefesas e os homens, para manter as coisas assim, eram capazes até de alterar a arquitetura de suas casas. Sin­ceramente, nã o vejo nenhum charme nisso.

Toda a compaixã o de alguns momentos atrá s tinha desaparecido do coraç ã o de Vanessa. Compaixã o pelo altivo senhor de Luenda! Que absurdo! Era algo que nunca esperou sentir por tal homem, e agora, ao lado dele, vendo os vaga-lumes piscando entre as palmeiras, e meio tonta pelo perfume doce das damas-da-noite, ficou com raiva de si mesma por se deixar levar pelo sentimentalismo.

Suas mã os apertaram firme b parapeito de pedra, quando ele se virou para ela. Tensa, esperou por uma resposta desagradá vel. Mas, inexplicavelmente, ele estava de bom humor.

— Mesmo assim, havia um romantismo naquela é poca que nunca acontecerá novamente. Nã o sente um desejo secreto de ter vivido num tempo de galanteria, de duelos, de flertes atrá s dos leques? Nã o acredita em romance, logo você que defende as escapadas de Bá rbara e me censura tanto?

— O senhor e eu nã o acreditamos no mesmo tipo de romance.

— Em outras palavras, acha que sou antiquado, nã o é? — Riu. — O que é o romance para você? Um jogo? Estranho que os ingle­ses sejam tã o racionais a respeito de amor e ao mesmo tempo sua terra produza homens que sabem falar de amor com intensidade:

" Alma da minha alma, minha como sou teu. Somos parte um do outro, como o fogo e a chama".

Se Vanessa estivesse sozinha sob as estrelas com qualquer outro homem e ele lhe recitasse aquele poema, pensaria que era uma decla­raç ã o de amor. Mas nã o com don Rafael de Domerique.

— Talvez os ingleses se expressem melhor com palavras do que com atos — disse, controlando a irritaç ã o.

— Para um latino, seria um desastre casar com uma dessas mu­lheres frias — ele zombou. — Logo seu fogo seria apagado pelo gelo. Ou aconteceria o contrá rio? Com certeza, até uma inglesa fria pode ser despertada para o amor.

— Está me perguntando isso, ou me dizendo?

— Perguntando. Por acaso, o luar e o amor do sr. Conroy nã o despertaram você?

— Isso é um assunto muito pessoal, señ or.

— Nã o há motivo para se ofender. Estou apenas tentando desco­brir que tipo de mulher você realmente é. Explorar a personalidade das pessoas é um passatempo que nó s, espanhó is, achamos fascinante.

— Acontece que nã o sou espanhola! — Todo o seu pudor britâ nico se ofendera com a insinuaç ã o a respeito de Jack Conroy.

— Por isso mesmo você me deixa curioso. Vamos, chica, é só uma brincadeira, um jogo. — Deu uma risada. — Onde está seu espí rito esportivo inglê s?

Suspeitava de que, desde o começ o daquela conversa, ele só queria provocá -la. Pois conseguira. Nã o havia sombra de espí rito esportivo na maneira como encarou o rosto sorridente dele.

— Nã o acho graç a nenhuma em ter meus sentimentos í ntimos dis­secados e discutidos com essa frieza. É uma invasã o que.. . nã o admito.

— Uma reaç ã o surpreendente numa mulher — ele disse, cá ustico. — Minha experiê ncia com mulheres sempre me fez acreditar que você s gostam dessa invasã o. É o tipo de intimidade que podem acei­tar, sem pô r em risco suas reputaç õ es.

— Sua experiê ncia com mulheres parece bastante cí nica.

— Talvez, para muitos homens, isso seja inevitá vel. Nã o se pode adquirir experiê ncia com moç as inocentes. Essas sã o as que escolhe­mos como esposas, depois de conhecer as outras. É preciso ter visto o diabo para reconhecer os anjos.

Será? Vanessa tinha suas dú vidas. Dificilmente chamaria Lú cia Montez de anjo, mas homens apaixonados costumam ser cegos para os de­feitos das amadas. Inocente, a viú va certamente també m nã o era.

Ele interpretou o silê ncio dela como um ponto final naquela con­versa perigosa. Mas ainda havia uma pontinha de ironia em sua voz, quando se desculpou:

— Sinto muito, señ orita, acho que me excedi. Acontece que você sempre fica em guarda quando estamos sozinhos e, para um espanhol, é difí cil resistir à provocaç ã o desse tipo de comportamento. Nã o que­ria ofendê -la. Vamos entrar?

Enquanto o seguia de volta ao escritó rio, Vanessa jurou a si mes­ma que, no futuro, evitaria ficar a só s com don Rafael sempre que possí vel. Acompanhou-a até a porta e despediu-se com frieza, como de nã o fosse o mesmo homem que, ainda há pouco, lhe fazia indis­cretas perguntas pessoais.

Buenos noches, srta. Carrol.

Vanessa atravessou o hall apressada e subiu a escada, direto para o seu quarto.

Como sempre, Concepció n deixara a cama preparada, com o pija­ma e o robe de seda cuidadosamente arrumados na cabeceira. A pri­meira coisa que ia fazer com seu salá rio era comprar roupas. Talvez assim se sentisse um pouco como em Ordaz, quando nã o era uma entranha e uma dependente. Don Rafael nã o mencionara salá rio, mas Imaginava que seria generoso. Nã o generoso demais, esperava. Nã o queria mais do que uma duena espanhola costumava ganhar.

Mas tudo isso podia esperar até o dia seguinte. Precisava estar bem descansada e segura de si para começ ar a nova vida que a esperava. Apagou o abajur e sentiu no rosto o friozinho gostoso da fronha de cetim. O canto das cigarras e dos grilos, lá fora no jardim, embalou seu sono.

O dia amanheceu rosado, o mar e os corais, brilhantes. Despertou pela brisa suave que entrava pelas janelas abertas, Vanessa se levantou bem-disposta e desceu, com vontade de dar um passeio.

Por sorte, o portã o de ferro que levava ao pá tio nã o estava tran­cado. Caminhou por entre os arbustos e os canteiros floridos, sen­tindo no cabelo o vento que soprava do mar. Seu bem-estar aumentava, à medida em que se afastava do castelo e descia os degraus de pedra, em direç ã o à lagoa.

Tirou as sandá lias. A areia já estava quente, mas nã o o bastante puni queimar os pé s. Foi até a beira da á gua. As ondas atiravam na praia pedacinhos de coral que pareciam pé talas de rosa.

Um paraí so, pensou Vanessa, olhando encantada ora para o mar, orapara as palmeiras, ora para as montanhas. Quanta tranqü ilidade! Continuou a andar, em direç ã o à cabana de bambu que servia como uma espé cie de vestiá rio, tomando cuidado para nã o ferir os pé s nos corais.

A cabana nunca ficava trancada e oferecia todo o conforto para os banhistas. Os mó veis eram de vime, rú sticos, e havia um bar com todo o tipo de bebida, e um rá dio. Sobre uma grande mesa com tampo de vidro, revistas e jornais estavam arrumados ao lado de caixas de cigarros e cinzeiros. E o convidado que quisesse dar um mergulho podia escolher uma roupa de banho no grande armá rio do closet. Desde que tinha chegado ao castelo, ela e Bá rbara eram praticamente as ú nicas que usavam a cabana, mas a garota lhe dissera que, na é po­ca da festa da colheita, a propriedade chegava a parecer pequena para tantos hó spedes.

Pegou um maio verde-claro e uma touca de banho no armá rio e foi se trocar. Ansiosa por um mergulho, nã o percebeu que nã o estava sozinha na praia. A pouca distâ ncia estava um homem musculoso, vestindo um calç ã o e com uma toalha nos ombros. Com interesse, ele a olhou mergulhar e nadar até umas rochas nã o muito distantes da arrebentaç ã o.

Vanessa deitou-se na pedra quente, protegendo os olhos contra o sol com o braç o. Ainda nã o desistira completamente de pegar um bronzeado. Ficaria ali durante uns quinze minutos; mais do que isso seria se arriscar a ficar toda queimada.

Um barulho de braç adas perto dela fez com que abrisse os olhos e se sentasse, assustada. Nã o sabia o que esperava ver, mas certa­mente nã o estava preparada para se achar frente a frente com um estranho bronzeado e forte, que a observava com atrevimento, um brilho cí nico nos olhos cinzentos.

Muy buenos dias, señ orita — disse, com um ligeiro sotaque. — Su seguro servidor.

Na opiniã o de Vanessa, ele nã o parecia o " obediente criado" de ningué m, mas achou divertido ele imaginar que ela era uma espanhola.

Só esperava saber bastante castelhano para corrigir aquele absurdo engano. Seu criado... francamente! Quem pensava que ela era para tratá -la com tanta intimidade?

Abraç ou os joelhos e ele aproveitou o pequeno espaç o a seu lado para se sentar. Nã o parava de olhar para ela, e nã o era difí cil ima­ginar o que estava pensando.

— Bom dia, señ or. Acho que devo avisá -lo de que esta lagoa é propriedade particular.

— Ora, você é inglesa! — Pareceu surpreso e, depois, encantado, — Acho que o sol deve ter derretido os meus miolos, para me passar pela cabeç a a idé ia de que fosse uma espanhola.

Vanessa teve que rir e aceitou a mã o que ele lhe estendia.

— Sou Gary Elsing, americano, e pode ficar certa de que é um prazer conhecê -la, senhorita...

— Carrol — completou, omitindo de propó sito o primeiro nome.

— É um turista, sr. Elsing?

— Nada disso. — Nã o estava interessado em falar sobre si mesmo.

— É Carol, com um " R" só?

Vanessa fez que sim, sem disposiç ã o para corrigir o mal-entendido. Nã o sabia explicar por quê, mas preferia que continuasse pensando que ela era a Srta. Carol.

— Trabalho na ilha, fazendo prospecç ã o de petró leo para a com­panhia Tex-Rique. Que, por sinal, pertence a El Grande, proprietá ­rio també m desta lagoa, na qual nó s dois estamos nadando sem auto­rizaç ã o.

— É mesmo? — Começ ava a se divertir com o jeitã o pretensioso do rapaz. — Talvez você esteja onde nã o devia estar, mas acontece que sou empregada do castelo e tenho permissã o para vir aqui.

— Ora, a segunda grande surpresa do dia! — exclamou, observando-a atentamente. Era evidente que ele tentava descobrir que tipo de serviç o ela fazia no castelo. — Nã o posso imaginá -la espanando mó veis e arrumando camas. Portanto, acho que é enfermeira ou qual­quer coisa assim da velha señ ora. Diga-me uma coisa: El Grande nã o fica maluco, trancado o tempo todo no escritó rio? Ou ele se diverte por lá mesmo?

— Sou a acompanhante da afilhada de don Rafael — respondeu, com frieza. Como aquele sujeito ousava insinuar que ela prestava algum outro tipo de " serviç o" ao dono da casa? — Ele me trouxe de Ordaz, quando estourou a revolta. Meu tio, que era como um pai para mim, morreu naquela noite. Don Rafael tem me ajudado muito, desde entã o, e sou grata a ele.

— Claro que é, garota — insistiu, no mesmo tom atrevido. Levan­tou a mã o, quando percebeu que ela ia protestar. — Calma. Eu estava de fé rias nos Estados Unidos e só voltei ontem. Mas sempre que posso venho nadar aqui. Acho que don Rafael sabe disso, porque os criados contam tudo o que se passa na ilha. Mesmo assim, nunca mandou me expulsar nem sequer disse nada. Por isso, concordo com você: o homem nã o é tã o ruim assim com os estranhos.

— Somos forasteiros aqui, nã o somos, sr. Elsing? A ilha é um protetorado espanhol.

— Olhe, vamos acabar com essa histó ria de senhor e senhorita. So­mos dois estrangeiros cercados de espanhó is por todos os lados. Temos que nos unir. — Os olhos cinzentos brilharam no rosto claro dourado pelo sol. — Vamos! Gary é um nome pequeno e fá cil de dizer.

Tente.

E porque ele lembrava um pouco Jack Conroy, ela sorriu e desfez o mal-entendido:

— Meu nome é Vanessa. Vanessa Carrol, com dois " R". — Era bom poder falar livremente com algué m que, se nã o era de sua terra, tinha muito mais em comum com ela do que qualquer espanhol. No castelo, nunca se sentia à vontade como agora.

— Vamos ser amigos — disse, deitando-se apoiado num coto­velo. — Sinto que vamos. E você, Vanessa? Sabe que tem um belo nome? É exó tico.

— Nã o confio muito no sexto sentido feminino, mas acho que podemos ser amigos, sim.

— Você nã o precisa dessas coisas. Entã o, vivia em Ordaz? Ouvi dizer que o problema por lá foi sé rio. Incendiaram tudo, nã o é? O que aconteceu? Ou prefere nã o falar a respeito?

Por baixo da aparê ncia cí nica, havia em Gary Elsing uma simpatia que agradava a Vanessa. Durante dez minutos, contou tudo. Gary ouviu, sem interromper, franzindo a testa em certos momentos Termi­nou falando da oferta de emprego de don Rafael, sem mencionar o romance de Bá rbara com Ruy Alvadaas.

— Dizem que o señ or de Luenda nã o faz nada sem um motivo pessoal — disse, pensativo. — Qual é o motivo dele... no seu caso?

— Oh, Deus, nenhum! — Vanessa riu. — Ele nem sequer gosta de mim, mas era um grande amigo de meu tio. Por isso, seu exage­rado senso de responsabilidade fez com que resolvesse tomar conta de mim. Eu queria um emprego e gosto de Bá rbara... assim, juntei o ú til ao agradá vel. E nã o preciso deixar tã o cedo a beleza e a paz da ilha.

— Este é um lugar incrí vel, nã o é? — Deitou-se, e Vanessa sentiu que ele a observava disfarç adamente. — Uma ilha quente como uma mulher, cheirosa, langorosa, sedutora. Importa-se que eu tome banho de sol com você?

— E nã o e isso mesmo que está fazendo esse tempo todo? — Riu e sentiu que, apesar de ser muito atraente, Gary Elsing nã o represen­tava nenhum perigo. Porque gostava dele, e nã o há nada pior do que isso para um homem que espera conquistar uma mulher.

— Tem alguma garota esperando por você na Amé rica?

— Uma porç ü 0 Quando um cara tem um emprego como o meu e vive viajando, nã o pode se envolver seriamente com ningué m. A ú nica maneira de conseguir isso é namorar um monte de garotas ao mesmo tempo. Mas eu nã o estava preparado para o encontro fatal desta manhã. Cabelos avermelhados e olhos verdes! Meu Deus!

— Está tentando me cantar, sr. Elsing? — brincou.

— Grrr. . . Sou um lobo perigoso, menininha. Nã o quer tentar me domesticar?

— Já tenho emprego, obrigada. E por falar nisso, já está na hora de começ ar a merecer o meu salá rio.

Gary levantou-se imediatamente e ajudou Vanessa.

— Esses espanhó is tê m costumes muito rí gidos, nã o é? Quantos anos tem Bá rbara del Quiros?

— Dezoito.

— Crescidinha para precisar de babá. Ou você está encarregada de defender a virtude dela, até que don Rafael a entregue a um ma­rido que ele mesmo vai escolher?

— É mais ou menos isso, sim.

Vanessa olhou para as torres do Castelo de Ouro, brilhando ao sol, como na primeira vez em que o viu. A beleza fantá stica daque­les muros de pedra tinha feito com que, naquela manhã, enquanto a lancha se aproximava, ela se sentisse um trofé u, conquistado pelo pirata e levado para seu esconderijo.

Mergulhou, e Gary a seguiu. Apostaram corrida até a praia. Talvez por galanteria, ele a deixou ganhar. Era um atleta. Foi com ela até a cabana.

— Amanhã, à mesma hora? — perguntou, antes que ela entrasse.

— Eu. . . eu nã o sei — disse, pensando em Bá rbara. A garota podia querer nadar ou dar um passeio a cavalo. Nã o podia prometer nada a Gary, nem queria levar Bá rbara com ela. Preferia que ningué m no castelo soubesse de sua amizade com o americano. — Olhe, nã o garanto nada. Mas, se estiver livre, eu virei. Está bem assim?

— Ó timo. Só venha se pudermos ficar sozinhos, como hoje. Nã o quero dividir você com mais ningué m.

Vanessa balanç ou a cabeç a e riu.

— Muito ousado, você.

— Nunca conheci uma ú nica mulher que nã o gostasse disso. — segurou uma mecha de cabelo que havia escapado da touca de banho caí ra no ombro de Vanessa. — Até a vista, entã o, loirinha.

— Tchau!

Sorriu para ele e entrou. Tomou um demorado banho de chuveiro, vestiu-se e penteou os cabelos. Diante do espelho notou que, pela primeira vez desde que deixara Ordaz, a ruga de preocupaç ã o em sua testa desaparecera. Nã o estava mais tã o sozinha. Tinha um amigo na ilha, algué m parecido com ela e que a compreendia.

Ainda sorria quando chegou ao castelo e alcanç ou o portã o de ferro do pá tio. Vinha tã o distraí da com seus pensamentos que quase tro­peç ou em don Rafael.

Buenos dias!

Seu sorriso sumiu como que por encanto. Vestindo um terno de linho claro, ele parecia mais moreno e mais espanhol do que nunca. Ou seria só porque ela, instintivamente, o comparou a Gary Elsing?

— Estava tomando banho de mar, Srta. Carrol? f

— Sim, señ or. A á gua está ó tima.

— Esqueci de avisá -la para nã o se afastar muito dos rochedos, quando nadar sozinha. Há correntes fortes por lá.

— Bá rbara já tinha dito, mas sou boa nadadora.

Alé m do mais, pensou, nã o estava sozinha. Esperava que ele nunca desconfiasse de seu encontro com o americano. Certamente nã o apro­varia que uma mulher permitisse que um estranho falasse com ela do jeito como Gary lhe falara. E podia proibir o rapaz de nadar na lagoa. Seria terrí vel nã o poder mais estar com ele, a ú nica pessoa em toda a ilha com quem se sentia à vontade.

— Ningué m é forte o bastante para vencer a natureza, Srta. Carrol.  

— Será que tinha sempre de dizer as coisas daquele jeito irô nico, que a fazia sentir-se uma tola? — Quanto mais confiantes somos, maior é o perigo. Agora, vá tomar o café da manhã.

— Sorriu e se despediu.

Que estranha, enigmá tica pessoa ele era! O que, diabo, queria dizer com aquela histó ria de forç a da natureza e da inutilidade de lutar con­tra ela? Era mesmo um aviso sobre o perigo de nadar alé m dos recifes de coral... ou estaria insinuando alguma outra coisa?

Entrou no castelo, pensando em como ele era capaz de mudar de um momento para outro, de provocador para quase carinhoso. O que foi mesmo que Bá rbara disse uma vez? Que tinha pena da mulher que se apaixonasse por ele, porque sua raiva podia ser tã o destruidora como seu amor.

Colheu uma flor de hibisco e colocou-a no cabelo. De repente, lembrou de outra coisa que Bá rbara tinha dito, certa manhã em que passeavam pelo jardim. Aquela era a flor do amor, como diziam na ilha. Num gesto involuntá rio, jogou a florzinha longe e se arrependeu imediatamente. Que criancice! Olhou para trá s: as pé talas estavam! espalhadas no chã o de pedras do pá tio. Uma... duas... voaram, levadas pelo vento, como se ganhassem vida. . . e fugissem dela.

 

 



  

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