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A MARCA DO DEMÔNIO 9 страница



Justine dividiu um pequeno quarto com uma prima de Susana. Enquanto repousava no sofá, ela procurou esquecer a cena desagradá vel em que tomara parte. Gostaria de dormir com a mesma facilidade que a moç a espanhola, mas continuou acordada ouvindo o tique-taque monó tono do reló gio da sala, sendo assaltada por um bando de imagens que atormentavam sua imaginaç ã o.

Deu um suspiro e afundou o rosto na almofada. Nã o se importava de ter atirado o copo de vinho na cara de Fernando diante dos convidados e amigos. Na condiç ã o de enfermeira, sabia que Artez sofrera terrivelmente na ocasiã o do acidente. De fato, poucas dores fí sicas sã o compará veis à s de uma queimadura de terceiro grau. A pró pria convalescenç a é um tormento em si mesma e ela teria atirado um balde cheio de á gua na cara de Fernando para dar vazã o a sua indignaç ã o.

Ela odiava a crueldade. Sim, fora por essa razã o que agira impulsivamente. Nã o havia nada pessoal nisso mas todos os presentes tiveram a impressã o que ela se sentira ferida pessoalmente pelo comentá rio maldoso de Fernando. Talvez estivesse envolvida com Artez, de quem assumira a defesa, em lugar de Cosima.

Justine voltou-se no sofá e desejou de todo coraç ã o sair da fazenda antes que os outros acordassem e a fitassem com olhos recriminadores. Que desculpa podia dar para partir? Nenhuma... Tinha que permanecer ali e enfrentar a realidade. Ouvir de cara alegre a mú sica dos violõ es e das castanholas que fora programada para a tarde, em homenagem aos visitantes.

Nã o era a primeira vez que presenciava uma festa desse gê nero na Espanha, se bem que a festa campestre fosse muito diferente das reuniõ es organizadas pela madrinha na cidade sofisticada de Madri, onde os convidados compareciam de traje a rigor e a comida era servida em travessas de prata, enquanto um pequeno trio de guitarristas dedilhava as mú sicas mais em voga no momento.

 

Na fazenda, a festa assumia um cará ter mais popular e alegre. Um leitã o inteiro estava sendo assado no espeto ao ar livre e uma mesa comprida fora armada embaixo das á rvores do pá tio, onde os pratos eram servidos em profusã o, bem apimentados e fortemente temperados ao gosto da cozinha espanhola. A mesa tinha um aroma esplê ndido de carnes assadas que se sentia a distâ ncia. Em mesas menores havia jarros de vinho tinto e garrafas de xerez, conhaque e uma grande sopeira de ponche, feito de frutas picadas e vinho branco, para as crianç as.

Fernando, muito elegante num terno escuro e com uma camisa de rendas, cingiu a cintura da mulher com sua mã o morena ao dirigir algumas palavras aos noivos.

— Todos nó s desejamos os melhores votos de felicidades a você s dois. Eu conheç o Artez desde crianç a e nó s servimos juntos no Exé rcito. Embora ele seja um cavaleiro fantá stico, capaz de montar em pê lo nos potros mais bravos, mesmo os da cavalaria espanhola de Cuerto, onde muitas vezes galopamos no deserto e apostamos corridas, eu espero que ele nã o precise usar seu pulso de ferro para amansar sua esposa.

Os presentes riram e aplaudiram as palavras de Fernando. Justine estava embaixo de um salgueiro no momento em que Lugh se aproximou com um copo de vinho.

— Para mim? — perguntou ela com um sorriso, recebendo a bebida de sua mã o. — Você nã o tem medo que eu perca novamente a cabeç a?

— Confesso que seu gesto foi meio inesperado. Os espanhó is costumam reagir dessa forma, mas você parece uma jovem tã o serena e reservada.

— As aparê ncias enganam, meu caro — disse Justine levando o copo de vinho aos lá bios. — Como você interpretou meu gesto? Você també m acha que sou a amante de Artez?

— Bem, eu nã o sei o que pensar — disse Lugh evasivamente.

— Eu vou lhe explicar o que aconteceu. Eu vi no hospital onde trabalho pessoas com queimaduras e sei o que é o sofrimento delas. Você nã o faz idé ia. É uma dor terrí vel que dura muitas horas. Eu reagi instintivamente com o comentá rio maldoso de Fernando. Foi só isso que aconteceu. Nã o há nada entre Artez e eu. Nó s somos como cã o e gato. Nossa antipatia é recí proca.

Depois dessa explicaç ã o, ela se sentiu mais à vontade para apreciar os festejos da noite na companhia de Lugh. Passeou com ele de braç o dado e conversou com uma espontaneidade que estava ausente no encontro da vez anterior. Sentia-se muito bem na companhia de Lugh, como se tivesse encontrado um amigo em vez do amante que nã o deseja ter no momento.

A lua ergueu-se no cé u estrelado e banhou a fazenda com sua luz prateada. A noite esplê ndida, a mú sica e as danç as tinham uma beleza estranha, mais evocativa da Espanha do que tudo que Justine vira até entã o. A jovem danç arina estava com uma saia vermelha bem rodada e uma blusa branca de punhos rendados. O homem tinha costeletas compridas, o nariz fino e reto, e estava vestido todo de preto. As rendas dos punhos e do peito da camisa eram brancas como neve.

Justine contemplou deslumbrada a beleza exó tica do casal de danç arinos, que parecia ter saí do diretamente de uma pintura de Goya. Quando as castanholas começ aram a marcar o ritmo da mú sica, a moç a levantou os braç os para o alto e bateu com os calcanhares no chã o. O homem e a mulher simbolizavam os amantes da lenda espanhola. O sangue do deserto corria pelas veias deles; aproximavam-se um do outro e tornavam a se afastar; eram acariciantes e logo depois crué is, indiferentes; excitavam-se mutuamente com contorç õ es graciosas do corpo e com olhares insinuantes.

Era um espetá culo belí ssimo no cená rio dos muros brancos e das janelas altas da fazenda, protegidas com grades de ferro rendilhado. O ar estava impregnado com o perfume de ervas aromá ticas e da lenha que queimava nas fogueiras. Justine afastou-se dali sem perceber que se distanciava de Lugh, que nã o desgrudava os olhos da bela danç arina. Quase sem perceber, encontrou-se embaixo de um nicho do muro branco da casa, atrá s dos galhos espessos de uma buganví lia.

Quando uma lá grima escorreu de seus olhos, ela enxugou-a sem mostrar-se surpresa. Era por isso no fundo que se afastara de Lugh, para dar vazã o a sua tristeza. Ela tinha consciê ncia de que aquela noite marcava o iní cio de sua despedida da Espanha. Nã o desejava sentir saudade do paí s de Manolito, nem recordar a pungê ncia da noite espanhola banhada pelo perfume das flores, pelo luar e pelos cantos lâ nguidos das antigas cortes de amor.

Amor... Por que pensava no amor quando esse sentimento estava tã o longe do seu coraç ã o? A mú sica e a magia da noite eram para os casais de namorados que se abraç avam com ternura pelas sombras do pá tio.

Deu um suspiro e encostou-se no muro branco da casa, protegida dos olhares indiscretos pelos galhos da buganví lia. No instante seguinte, avistou um vulto alto que se aproximava lentamente do local onde estava. Ela pensou que fosse Lugh, que saí ra a sua procura.

Quando Artez parou a alguns passos dela, o luar bateu de cheio no rosto dele. Ela avistou o jogo das sombras em volta dos lá bios e da linha saliente do maxilar. Nã o conversara com ele desde o iní cio da tarde e estava tã o intimidada com sua presenç a que fitou-o em silê ncio, com angú stia nos olhos. Por que Artez nã o a deixava em paz? Tinha curiosidade de saber o motivo de seu gesto, como os outros? Nã o desconfiava da razã o que a levara a tomar sua defesa diante do comentá rio maldoso de Fernando?

— O que você quer? — perguntou com ansiedade, como se a presenç a dele fosse uma intrusã o na sua intimidade.

— Eu vim ver como você estava. Por que você se escondeu aqui? Nã o está gostando da festa?

Embora a voz dele fosse impessoal e distante, Justine teve a impressã o que bastava apenas um gesto dela, um olhar, uma palavra para tirá -lo da sua apatia. A magia da noite aproximara finalmente os dois, se bem que de uma forma tensa e perigosa.

— A mú sica e a danç a sã o fantá sticas — disse ela, esforç ando-se para ocultar seu nervosismo. — Nunca tinha visto uma festa como essa na Espanha. Os turistas que visitam Madri e Sevilha nã o sabem o que estã o perdendo.

— Pois é. Nã o sã o todos os visitantes que tê m a oportunidade de conhecer a vida real do povo. Nenhum estrangeiro compreende realmente nosso modo de vida. Você se irritou à toa com Fernando. Nó s aceitamos as crí ticas com a mesma naturalidade que ouvimos os elogios. Desfrutamos os triunfos e as tragé dias em medidas iguais, o fatalismo faz parte da medula de nossos ossos e torna todas as coisas suportá veis.

— Essa filosofia me parece cruel — comentou Justine. — Se você aceita a dor com orgulho, vai acabar causando o sofrimento com alegria. Foi assim que surgiu a inquisiç ã o na Espanha.

— E a escravidã o na Inglaterra, nã o conta? Crianç as de dez anos trabalhavam em minas de carvã o e colonos morriam aos milhares nas plantaç õ es e nos engenhos de cana-de-aç ú car. Em todos os seres humanos existe a semente da crueldade. Somente os anjos sã o perfeitos e a vida dos anjos é um pouco enjoada para nó s.

— Eu nã o imagino você no meio dos anjos... se bem que você nã o seja també m um demô nio convicto.

— Ah, você mudou de opiniã o a meu respeito? Nã o me julga mais demoní aco como antes? — perguntou Artez com a voz indolente.

Quando ele falava desse jeito, havia uma qualidade sensual e acariciante na voz dele e Justine teve vontade de segurar no seu rosto, de colocar as mã os na sua garganta, de onde saí am essas palavras suaves.

O que se passava com ela? Primeiro a reaç ã o inesperada diante de Fernando, agora esse desejo repentino de carí cia...

— Eu tenho que ir — disse, assustada com suas pró prias emoç õ es. — Lugh deve estar me procurando... nó s está vamos juntos.

— Está com saudade dele?

— Nã o é isso. Mas eu nã o quero preocupá -lo à toa. Eu saí sem dizer onde ia.

— Eu estava certo entã o quando suspeitei que havia alguma coisa entre você s dois?

— Nã o seja ridí culo. Nã o há nada entre nó s dois. Acontece que falamos a mesma lí ngua num paí s estranho, só isso. Nã o há como os espanhó is para suspeitarem coisas que nã o existem.

— É por isso que temos tanta curiosidade pelos misté rios da vida... e do amor.

— Você acha mesmo que vou me apaixonar pelo primeiro homem que encontrar?

— Você viveu muito isolada até agora, numa espé cie de castigo que você impô s a si mesma, por ser esposa e viú va no mesmo dia.

— Mas isso nã o quer dizer que esteja disposta a romper todas as promessas que fiz quando Matt morreu. Eu nã o sou espanhola. Eu nã o poderia me unir a um homem que nã o amo.

— Você nã o tem medo da solidã o?

— Nã o. Uma pessoa como eu nunca se sente solitá ria.

— Nem mesmo quando volta sozinha para casa no fim do dia? Que outra companhia você tem, alé m do tique-taque do reló gio, da voz do locutor do rá dio ou da televisã o? As espanholas preferem dar o coraç ã o aos homens que prometem ser bons para elas. Os espanhó is nã o sã o maridos ideais, mas raramente sã o cansativos.

— Esse motivo nã o me convence. É muito frio para mim.

— Pode ser, porque o espanhol é um realista no fundo, ao contrá rio das inglesas que freqü entam nossas praias. Elas dã o a aparê ncia de frias e reservadas quando no fundo sã o mais quentes e româ nticas que as espanholas. É só na postura que o espanhol se parece com Rodolfo Valentino.

— Pode ser — concordou Justine, esfregando os braç os com um movimento nervoso. — E os espanhó is, como sã o?

Artez estava bem perto dela. Podia sentir o aroma de fumo que vinha de seu casaco de couro e o cheiro mais sutil ainda da pele morena, queimada pejo sol inclemente da Espanha. Seu coraç ã o começ ou a palpitar e sentiu um começ o de falta de ar. Ela queria fugir dali antes que sucumbisse ao encanto que emanava dele. Se a tocasse, como fizera antes, seria impossí vel fingir de novo que ele nã o significava nada para ela.

Artez refletiu sobre a pergunta com a testa franzida e Justine observou-o atentamente, tensa, consciente de sua masculinidade, maior do que a de qualquer outro homem que conhecia, inclusive de Matt.

— Por estranho que pareç a, o espanhol tí pico nã o é um conquistador. Talvez seja mais um idealista, à maneira de Dom Quixote. O respeito dele pela honra é quase religioso na sua intensidade e nã o hesita um instante em defender sua reputaç ã o. É por isso que as histó rias de vinganç a sã o tã o comuns na Espanha. Você nã o concorda?

— Sim, acho que sim.

De longe vinha o ritmo sincopado da mú sica espanhola, repleto de simbolismo, de paixã o, de ameaç as veladas.

— Nossa mú sica é um duelo entre o feminino e o masculino. É sensual e disciplinada ao mesmo tempo. O simples roç ar dos corpos se transforma numa carí cia excitante e proibida. Se você observar os danç arinos com atenç ã o, verá que eles nunca se tocam realmente, pelo menos nã o se tocam em pú blico. O espanhol detesta exibir os sentimentos í ntimos diante dos outros. Muitas vezes, inclusive, demonstra publicamente indiferenç a ou frieza pela pessoa que lhe é cara. É muito diferente, contudo, na intimidade do quarto. Ali, ele pode até mesmo ser dominado pela mulher que ama. Sua imagem pú blica poré m deve ser sempre a de um homem orgulhoso, autoritá rio. A sensualidade está presente nos lá bios, no olhar contido, nos comentá rios mordazes. O espanhol aprecia a reserva, os subentendidos, as palavras ambí guas. Entretanto, no fundo do coraç ã o, ele carrega a lanç a de Dom Quixote e investe corajosamente contra os ideais impossí veis.

— E você chama isso de realismo?

— Que outro nome posso dar? — perguntou Artez, colocando a mã o no ombro dela.

Imediatamente o contato foi direto à espinha; ela ficou toda arrepiada, como se estivesse com frio.

— Nã o, por favor! — suplicou com o coraç ã o doendo.

— Eu prometo me comportar bem se você responder minha pergunta. Por que você tomou meu partido diante dos outros e, quando estamos sozinhos, você foge de mim? Por que você finge uma coisa que nã o sente?

— Finjo? — A palavra sufocou-a. — Você acha que estou fingindo neste momento?

— Você deve saber, mi bruja branca.

Ela prendeu a respiraç ã o quando foi puxada para os braç os dele por um movimento brusco, repentino, que nã o podia ser evitado.

— El momento de la verdad. É assim que se diz nas corridas de touros quando o matador levanta a espada cintilante ao sol da tarde. O terrí vel momento da verdade. Diga-me quanto você me odeia e ama. Diga-me!

Ela tentou soltar-se das mã os dele mas os braç os fortes a cingiam pela cintura e podia sentir o corpo musculoso atravé s do tecido leve da blusa. Artez abraç ou-a com tanto í mpeto que a saia levantou um palmo acima dos joelhos. Nã o era a primeira vez que se encontrava nos braç os dele; agora no entanto teve vontade de abraç á -lo com forç a, de apertar o abraç o que os unia.

O passado voou para longe da ó rbita de sua mente e tudo que tinha consciê ncia no momento era do langor quente que subia pelas pernas, da cabeç a jogada para trá s, dos lá bios entreabertos para receber o beijo, sem luta nem surpresa. Queria apenas que aquela sensaç ã o nã o terminasse nunca, que o abraç o que a derretia se prolongasse indefinidamente, sem ter fim.

No momento em que ele afundou o rosto no seu colo com um gemido de prazer, Justine abandonou-se completamente nos seus braç os. Segurou a cabeç a dele com as duas mã os e beijou a cicatriz que lhe desfigurava o rosto, como se quisesse dessa maneira apagar a memó ria do sofrimento.

— Essa é a ú ltima vez que nos beijamos — murmurou Artez junto ao seu ouvido e cada movimento dos lá bios era uma carí cia antes de ser uma tortura. — Você vai embora daqui, vai voltar para seu paí s, vai me esquecer.

— E você? També m vai me esquecer?

A voz estava engasgada com a angú stia das lá grimas que esforç ava para reprimir. Enterrou os dedos nos ombros dele e deixou de ser a jovem tí mida que se protegia atrá s da má scara da frieza e da reserva. O contato í ntimo deixou-a tonta, lâ nguida, indiferente a tudo mais. Artez era parte dela como ningué m tinha sido até entã o, nem mesmo Matt.

Nã o, nem mesmo Matt, por mais inteligente e atencioso que fosse. Ela nunca sentira ó dio por Matt, nem tã o pouco essa confusã o de prazer e de dor ao mesmo tempo.

— Ah, eu vou morrer se for embora daqui!

— Morrer nã o é tã o fá cil assim, niñ ita. Pecar é muito mais fá cil e é isso que vai acontecer se você continuar aqui. Eu nã o sou mais um rapaz para tocar uma serenata embaixo de sua janela. Nã o há outra maneira a nã o ser a separaç ã o. Você entende, niñ a?

Ela balanç ou lentamente a cabeç a. O paraí so que seria se cedesse ao desejo que a consumia se transformaria em inferno quando visse Artez nos braç os de Cosima. Ele nunca abandonaria a prima. O que sentia por Cosima nã o tinha nada a ver com necessidade fí sica. Artez era bastante forte para controlar o desejo, mas nã o tinha defesa contra a compaixã o que Cosima despertava. Ele casaria com ela e Justine voltaria sozinha para a Inglaterra.

— Nã o tem outro jeito. Ah, se você tivesse voltado naquele primeiro dia, como eu sugeri, o sofrimento nã o seria tã o grande como agora. A cicatriz no meu rosto nã o é nada em comparaç ã o com a outra que vai se formar dentro de mim. Por que você veio para cá com esses cabelos prateados, com esses olhos azuis da cor do cé u? Por que você nã o me odeia de verdade? Eu pensei muitas vezes que seu ó dio era verdadeiro, até o momento em que você atirou aquele copo de vinho no rosto de Fernando. Eu tive que me controlar ao má ximo para nã o abraç á -la diante dos outros. Eu queria levá -la comigo para bem longe daqui.

— Ah, Artez, por que tudo isso foi acontecer conosco?

Ele afastou-se bruscamente ao ouvir um ruí do de passos perto dali e saiu de trá s da cortina de folhas da buganví lia que os protegia.

— Eu estou indo, Sanches!

— Cosima está procurando por você. Acho que ela está cansada e quer voltar para casa.

— Vamos lá — disse Artez, afastando-se na companhia do amigo. Mais um momento e os dois teriam sido surpreendidos por Sanches no esconderijo atrá s da á rvore. Repentinamente Justine sentiu-se muito sozinha num paí s estranho. No fundo, era apenas uma aventura passageira na vida de um espanhol que punha a honra antes do amor.

Mas era apenas desejo que ardia entre os dois, que o tempo e a distâ ncia acabariam apagando? Ela esqueceria a maneira como fora beijada por ele? Justine levou as mã os ao rosto. Era absurdo apaixonar-se por um homem que estava comprometido com outra mulher. Ela deu um suspiro de tristeza. Desejava gritar que o amava, para todos ouvirem, mas era obrigada a esconder o sentimento como se fosse algo condená vel. Devia comportar-se como se Artez nã o significasse nada para ela. Mas era possí vel observá -lo friamente quando suas pernas amoleciam toda vez que lembrava a pressã o dos lá bios dele contra sua boca?

Podia deixá -lo logo agora que desejava tanto amá -lo? Sim, ela amava Artez — nã o da maneira como amara Matt, mas de uma forma tã o diferente que nã o havia traiç ã o. Matt nã o poderia criticá -la pelo amor que sentia por Artez. Alé m disso, nunca experimentara um desejo tã o forte por nenhum outro homem. Artez a despertara realmente para a sensualidade.

E, exatamente nesse momento, devia voltar as costas, ir embora, seguir seu caminho sozinha, deixar atrá s de si o homem alto e belo que ia casar com a prima por um sentimento de honra.

A perspectiva era terrivelmente melancó lica. Sentiu-se deprimida, abandonada, rejeitada. No momento em que redescobria o amor, era obrigada a partir para longe.

 

As despedidas na fazenda no fim da noite foram animadas e cheias de calor.

— Voltem sempre! — disse Susana abraç ando Cosima com ternura. Voltou-se em seguida para Justine. — Você vai partir em breve para a Inglaterra? Está com saudade de rever os amigos?

— Estou — respondeu Justine desanimada, ao sentar-se no banco traseiro ao lado de Cosima.

Artez atirou uma mantilha de lã para cobrir os joelhos das duas. Ele desceu a capota do carro conversí vel e o interior começ ou a esquentar logo que ligou o motor.

— Até a vista, pessoal — exclamou Cosima quando o carro se afastou da fazenda e das mã os que acenavam para os trê s. — Foi bom rever os conhecidos, mas agora estou morta de cansaç o. Acho que vou dormir na viagem de volta. Eu nã o entendo como você s dois podem estar tã o acordados depois de toda essa agitaç ã o.

Cosima deu um bocejo e reclinou a cabeç a no encosto do banco. Ela era graciosa mesmo dormindo, frá gil como a crianç a que volta para casa da festa de aniversá rio. Como era possí vel. magoar algué m tã o indefeso? Miguel a abandonara no momento em que ela mais necessitava dele, mas Artez nunca a deixaria.

Justine observou a cabeç a morena e os ombros largos que iam no banco da frente do carro e sentiu vontade de estender a mã o para acariciar os cabelos compridos que caí am em cima da nuca. O silê ncio criava um sentido forte de intimidade.

Quando chegaram finalmente em casa, Cosima estava tã o cansada e sonolenta que Artez a levou nos braç os para o quarto de dormir.

— Eu vou ajudá -la a trocar de roupa — disse Justine.

— Nã o precisa. Anaya está acordada — disse Artez com firmeza. — Você també m está cansada. O dia foi muito agitado para todos nó s.

Ela balanç ou a cabeç a em silê ncio e deu um suspiro fundo. Artez observou-a com atenç ã o, o rosto marcado por linhas pequeninas em volta dos olhos.

— Parta daqui antes que eu faç a uma loucura. Antes que eu magoe você ou Cosima.

— Você nã o pode me magoar — murmurou Justine. — Mesmo que você me batesse eu continuaria gostando de você. Nada me faria mudar de sentimento.

Os dois subiram a escada que levava aos quartos de dormir no segundo andar. Quando pararam diante da porta do quarto de Justine, o coraç ã o dela estava batendo tanto que lhe causava falta de ar. Era fá cil entrarem no quarto e satisfazerem o desejo que os consumia, ainda que fosse apenas uma ú nica vez.

— Seria uma delí cia passar a noite com você — murmurou Artez diante da porta, como se adivinhasse o pensamento dela. — Mas amanhã eu teria que sair dos seus braç os e enfrentar a realidade. Eu sou um homem, houve outras mulheres na minha vida, mas nã o quero que você seja apenas a satisfaç ã o de um desejo passageiro.

Ela sentiu uma pontada no coraç ã o ao ouvir essas palavras. Era doloroso admitir que nã o podiam satisfazer o desejo que sentiam sem que isso fosse acompanhado de sentimento de culpa e de arrependimento.

— É melhor você ir sozinha para a cama. Assim, quando acordar amanhã, poderá enfrentar os outros com a cabeç a erguida, como sempre fez. Seu orgulho e sua dignidade significam muito para mim. Sã o as jó ias que você usa e eu nã o quero roubá -las como um ladrã o no meio da noite.

Ele soltou o laç o da gravata com um movimento brusco e afastou-se dela.

— Vou beber alguma coisa lá embaixo. Vá para a cama e esqueç a tudo o que aconteceu.

Ele desceu a escada a passos rá pidos. Justine acompanhou-o com a vista, o coraç ã o pesado pela tristeza. Nã o podia nem mesmo passar algumas horas com ele. Artez pertencia a Cosima e a ú nica alternativa que tinha era sair daquela casa nas primeiras horas da manhã.

Entrou no quarto e fechou a porta por dentro. Estava triste, poré m, profundamente deprimida e, durante muito tempo, permaneceu sentada no escuro, ao pé da cama, recordando todas as palavras que tinham sido trocadas entre os dois, todos os beijos dados e recebidos.

 

CAPÍ TULO VIII

 

Os dias seguintes foram tristes e sombrios, como se uma nuvem sombria pairasse sobre a fazenda, precursora de uma tempestade iminente.

Entretanto, era apenas uma ilusã o. Os dias continuaram luminosos, quentes, ensolarados, profusamente perfumados pelos canteiros de flores que se estendiam pelo pá tio.

Encontrar-se com Artez passara a ser para Justine um tormento e uma volú pia, tanto do ponto de vista fí sico quanto emocional. Ele a observava em silê ncio; ela respondia em silê ncio ao olhar que Artez lhe dirigia e havia uma comunicaç ã o secreta entre os dois, enervante, extenuante. Justine procurava por isso encontrar alguma desculpa para afastar-se de sua presenç a antes que Cosima suspeitasse de alguma coisa. O maior perigo contudo era encontrar-se a só s com Artez. Ela evitava todos os lugares onde o encontro pudesse ocorrer, o pomar, as cocheiras atrá s da casa, o pavilhã o mourisco que se erguia no meio do pá tio, como se fosse um pequeno minarete gracioso entre as palmeiras e os coqueiros. O portã o do pavilhã o tinha a forma curiosa de fechadura e Justine tinha a impressã o de fugir do mundo quando passava por ali e era recebida pela paz e a tranqü ilidade que reinava no interior do recinto. O silê ncio lá dentro era tã o grande que ela tinha a sensaç ã o de ouvir os passos de uma escrava á rabe de outra é poca, com sua pulseirinha de ouro no tornozelo. Essa impressã o era apenas imaginá ria, mas o que aconteceria de fato se Artez a surpreendesse ali, mergulhada na sua tristeza? Os dois se beijariam clandestinamente, longe dos olhares indiscretos? Ou manteriam a promessa feita e nã o cederiam à tentaç ã o?

Era incrí vel o desejo que Artez lhe despertava! Quando a fitava com seu sorriso triste, com sombras sutis de significado no canto da boca, Justine tinha vontade de gritar para Cosima que aquilo estava errado, que era terrivelmente injusto abusar da lealdade dele. Artez tinha muito mais a dar que a simples compaixã o e isso era tudo que Cosima necessitava dele. O casamento entre os dois seria apenas uma formalidade. Justine sabia disso com seus instintos mais agudos.

Esse conhecimento era, ao mesmo tempo, uma fonte permanente de sofrimento e de prazer. De sofrimento, porque era forç ada a ceder o homem que amava a uma outra, e de prazer porque era a prova evidente que, como homem, simplesmente como homem, Artez a desejava de todo coraç ã o.



  

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