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A MARCA DO DEMÔNIO 2 страница



Ela ouvia a pergunta em silê ncio, enquanto o fixava boquiaberta, pensando na semelhanç a incrí vel que havia entre os dois. Por que a condessa nã o falara nada sobre isso? Como ela podia morar na mesma casa que esse homem, que era um retrato idê ntico do primo, o assassino de Matt?

— Eu nã o vou ficar aqui! — exclamou com um gesto brusco da cabeç a. — Vou partir imediatamente para Madri.

— No meio da noite? Você está louca! Nã o há nenhum trem antes do amanhecer. Você terá que passar a noite aqui.

— Impossí vel — disse Justine fitando-o com angú stia. — Por favor, leve-me de volta à estaç ã o. Eu vou dormir em qualquer lugar, menos aqui.

— Manolito está morto e você nã o pode me culpar pela morte de seu marido. Pense bem. Nã o adianta nada comportar-se dessa maneira histé rica...

— Eu estou farta de você e de seus comentá rios! — exclamou Justine com impaciê ncia. — Eu nã o gostei nada da maneira como você deu a entender que eu era uma aventureira, que estava atrá s de um marido rico, nem da maneira como você falou dos meus cabelos, como se fossem tingidos.

— Ah, já sei... Eu feri sua vaidade feminina. Você me odeia por causa disso?

— Eu odeio você e toda a sua famí lia! — disse Justine com amargura na voz. — Eu nã o teria vindo aqui se soubesse quem você s eram. Ah, por que a condessa fez isso comigo? Que razã o ela tinha para me enganar desse jeito?

— Ela devia ter suas razõ es. A menos que nã o tenha sido o diabo que a conduziu até aqui — disse Artez dando um passo atrá s e recebendo diretamente a luz da lanterna no rosto. A face morena parecia realmente demoní aca. A cicatriz profunda desfigurava-a de alto a baixo, produzindo a impressã o geral de uma careta satâ nica. — Seu marido nã o se chamava Mitchell? Mathews Mitchell?

— Mitchell era meu nome de casada. Eu retomei meu nome de solteira quando voltei a trabalhar no hospital. Eu nã o queria estar permanentemente lembrada de que fora casada antes. Ah, meu Deus, o que eu vou fazer agora?

— Esta noite você vai dormir aqui. Estamos a uma boa distâ ncia da vila e já passa da meia-noite. Logo vai amanhecer o dia.

Ela voltou-se para a casa com o rosto contrariado. Somente algumas luzes estavam acesas no andar de cima, por trá s das grades de ferro das sacadas. Por que sua madrinha silenciara esse fato? Desejava que ela convivesse com pessoas que tinham passado por um conflito semelhante ao seu? Numa forma mais trá gica que a sua?

— Vamos entrar — disse Artez. — Já é tarde.

Ela nã o teve outra alternativa a nã o ser segui-lo. Essa noite pelo menos era forç ada a sujeitar-se a esse imprevisto, mas estava decidida a partir nas primeiras horas da manhã.

— Você promete que vai me levar de volta amanhã cedo? Eu nã o posso ficar aqui, de jeito nenhum! Como posso ver todos os dias algué m que é semelhante em tudo ao homem que matou meu marido? Nã o, isso seria intolerá vel. Seria o mesmo que ver o diabo em carne e osso na minha frente. Deus me livre!

— Você acha? — perguntou Artez com um sorriso irô nico que nã o alterava em nada a frieza inquietante dos olhos negros.

 

CAPÍ TULO II

 

A luz dos lampiõ es era fraca e nã o penetrava nos cantos do quarto de dormir. Havia eletricidade na fazenda mas era desligada depois das dez da noite, a fim de economizar combustí vel do gerador.

Justine olhou em volta e avistou o crucifixo em cima da cama, que estava coberta com uma colcha branca e um cortinado de filó para proteger dos mosquitos. Embora as venezianas do quarto estivessem fechadas, as mariposas entravam pelas frestas e voavam ao redor das chamas, projetando sombras fantá sticas nas paredes brancas.

Em toda parte da Espanha havia casas com paredes caiadas de branco e as sombras fantasmagó ricas das mariposas à noite. Parecia o sí mbolo do temperamento latino, amante dos contrastes e a quem desagradam os meios-tons. Nã o havia indecisã o de traç os nem de personalidade. Os homens eram demô nios ou santos. As mulheres eram mã es ou freiras. Esse traç o do cará ter fascinava e assustava ao mesmo tempo o visitante.

A fazenda onde Justine ia passar a noite era a casa do homem que tinha atropelado Matt e era incrí vel que ela estivesse hospedada justamente ali. Que mã o do destino a conduzira naquela direç ã o? Que demô nio sussurrara no ouvido da madrinha, sugerindo seu nome como enfermeira de Cosima?

Justine estremeceu ao pensar nisso. Até mesmo os contornos de seu rosto, avistados no espelho da penteadeira, lhe pareceram estranhos. Ela foi até a cama, andando por cima dos tapetes macios, cobertos de desenhos á rabes, nos quais as cores se misturavam naturalmente como gotas de tintas pingadas em cima d'á gua. Parou ao lado da cama e admirou as quatro figuras esculpidas nos pilares: um anjo e um cavaleiro em cada lado da cabeceira; um dragã o e um demô nio ao pé da cama.

Era certamente uma proteç ã o para a pessoa que dormisse ali, ainda que o perigo avanç asse das sombras.

Ela afastou-se alguns passos. Nã o, nã o podia dormir ali! Passaria a noite sentada na cadeira de braç os que estava perto da janela e aguardaria com ansiedade a madrugada. Ao primeiro clarã o da manhã sairia daquela casa assombrada. Artez nã o faria nenhuma objeç ã o. Ele antipatizara com ela desde o primeiro momento e nã o manifestara nenhum agrado na estaç ã o ao receber a enfermeira inglesa que tinha feito uma longa viagem a fim de cuidar de sua prima.

Com as pernas cansadas e dormentes, Justine aproximou-se da cadeira de vime e sentou-se, exausta, na almofada macia. Apó s um momento, encostou a cabeç a no espaldar alto. Fazia muito tempo que nã o se sentia tã o cansada assim, pensou. Na realidade, desde os primeiros dias da viuvez. Sendo enfermeira, sabia que o esgotamento provinha de estar com os nervos tensos, apó s um dia repleto de emoç õ es. Sabia també m que precisava dormir profundamente para recuperar as energias, mas recusava-se terminantemente a dormir naquela cama enorme de casal, com aquele cortinado no alto que parecia um pá lio! Teria pesadelos horrí veis se dormisse ali. Era preferí vel, nesse caso, cochilar na cadeira, tanto mais que estava habituada a isso, como acontecia quando dava plantã o à noite no hospital.

As mariposas voavam em volta dos lampiõ es e o cheiro de ó leo queimado misturava-se ao aroma forte de cera de abelha e de naftalina que vinha do guarda-roupa. As pá lpebras pesadas desceram lentamente e todas as sensaç õ es se embaralharam no instante em que o sono tomou conta de sua mente e de seu corpo exausto. Os dedos se descontraí ram, os braç os caí ram para os lados. A cabeç a pendeu sobre a almofada do encosto e os cabelos prateados encobriram o rosto pá lido. Os lá bios perderam a rigidez da ú ltima hora e, no repouso do sono, toda a juventude voltou ao rosto sereno. Ela estava totalmente inconsciente no momento em que Artez bateu à porta do quarto.

Ele aguardou um segundo antes de entrar e atravessar a peç a silenciosamente, com passos de felino. Parou diante dela e observou-a longamente, em silê ncio. Justine continuou dormindo até que os primeiros raios de sol atravessaram as vidraç as ovais e inundaram o quarto de dormir de feixes coloridos de luz.

Ela piscou os olhos sob a claridade ofuscante. Continuou deitada alguns segundos, imó vel, olhando surpresa para a janela e para o crucifixo no alto da cama. Onde tinha passado a noite? Dormira tã o profundamente que a volta à realidade foi bem lenta. Onde estava? Que quarto era aquele? De repente, tudo se precipitou na lembranç a. Sentou-se na cama com um movimento brusco, alarmada por ter dormido tanto tempo. Levou um susto ao notar que nã o estava mais sentada na cadeira, onde adormecera na noite anterior. Agora estava deitada na cama grande de casal embaixo do cortinado, e estava com os pé s descalç os.

Como podia estar ali? Lembrava-se perfeitamente que adormecera na cadeira perto da janela, ou estava tã o cansada da viagem que fora para a cama e deitara de vestido, depois de puxar o cortinado para se proteger dos mosquitos?

O raio de sol que tocava sua mã o era quente, sinal evidente que passava das seis da manhã. Ela decidira na noite anterior sair da casa nas primeiras horas da manhã e voltou-se ansiosa para o reló gio na cabeceira, a fim de ver que horas eram exatamente. O reló gio, poré m, estava parado. Na correria do dia anterior, esquecera-se completamente de dar corda. Pela claridade que avistava na janela passava certamente das sete. Levantou-se prontamente da cama e ia calç ar os sapatos quando ouviu uma batida leve na porta.

Estava voltada para lá, com os olhos apreensivos e os cabelos revoltos, quando a maç aneta girou lentamente e a porta se abriu. Uma mulher de idade entrou e deu alguns passos em direç ã o à cama. A fazenda pesada do vestido farfalhou no silê ncio da peç a. Os cabelos brancos estavam presos com uma fita no alto da cabeç a. A mulher de idade examinou-a em silê ncio dos pé s à cabeç a, com uma expressã o de benevolê ncia na fisionomia, observando naturalmente que ela dormira vestida e que nã o tinha retirado a colcha da cama.

— Bom dia — disse por fim. — Como passou a noite?

— Muito bem, obrigada.

A mulher espanhola devia ter uns sessenta anos, mas conservava alguns traç os de sua mocidade. Os olhos eram esplê ndidos, grandes, luminosos, muito negros, com um toque de oriental no desenho das pá lpebras. A pele era alva como porcelana e quase sem nenhuma ruga. Somente pelas veias azuladas das mã os e do pescoç o era possí vel adivinhar sua idade.

— Você chegou muito tarde ontem e eu já estava deitada — prosseguiu a mulher num inglê s impecá vel. — Como nó s nã o nos encontramos ontem à noite, eu vim lhe dar bom dia e lhe desejar as boas-vindas. Espero que meu sobrinho tenha feito as honras da casa. Você ficou assustada ao ser recebida no meio da noite por um homem que tem uma cicatriz tã o funda no rosto?

— Nã o, nem um pouco — disse Justine, balanç ando a cabeç a sonolenta.

Ela lembrou-se no mesmo instante que devia informar a mulher educada e atenciosa que tinha a firme intenç ã o de sair imediatamente de sua casa. A marquesa pensaria naturalmente que o motivo da partida inesperada era o medo que sentira na presenç a do sobrinho. A verdade poré m era bem outra! Mas como podia explicar à mulher bondosa que ela era a viú va do homem que fora barbaramente atropelado pelo filho dela, acusado publicamente de ser um motorista imprudente e irresponsá vel? Toda mã e protege o filho, mesmo que seja um criminoso. Toda mã e conserva uma lembranç a terna dele, por menos que corresponda à realidade.

— O que foi? — indagou a marquesa com a expressã o ansiosa. — Você está sentindo alguma coisa? Seu rosto está pá lido...

— Nã o, senhora marquesa, eu estou perfeitamente bem.

Justine levantou-se sem jeito e procurou os sapatos embaixo da cama, enquanto pensava rapidamente numa desculpa para ir embora da casa. Podia dizer à marquesa que nã o estava em condiç õ es de cuidar da filha paralí tica? No fundo, era por culpa de Artez que se encontrava naquela situaç ã o embaraç osa. Se ele a tivesse levado para a estaç ã o uma hora atrá s, antes que a marquesa acordasse, ningué m ficaria sabendo de sua presenç a na casa. Artez podia dizer à tia que a enfermeira inglesa nã o viera, conforme combinado. Afinal, ningué m, a nã o ser ele, estivera com ela na noite anterior. Nenhum empregado da casa estava acordado quando chegaram e nã o havia nenhum vestí gio de sua passagem no quarto de dormir. Ela alisaria a roupa de cama antes de sair e ningué m suspeitaria que dormira no quarto.

Agora era tarde demais para pensar nessa soluç ã o. Agora tinha que dar alguma desculpa para nã o permanecer na casa.

— Eu estou vendo que aconteceu alguma coisa — insistiu a marquesa, examinando atentamente seu rosto. — Você nã o está contente de ter vindo? A fazenda lhe parece muito triste?

— Um pouquinho — concordou Justine, aproveitando a sugestã o da marquesa. — Eu nã o fazia idé ia que a casa era tã o distante da vila. Eu creio que nã o me darei bem aqui. Seria melhor se partisse imediatamente...

— Sem ter conhecido primeiro minha filha? — perguntou a marquesa intrigada. — Você nã o tem jeito de ser uma moç a volú vel, que muda de idé ia a cada instante. Desconfio que alguma coisa está ditando sua decisã o. Por acaso meu sobrinho foi indelicado com você ontem à noite? Eu sei que ele nã o ficou muito entusiasmado quando sugeri que minha filha fosse atendida por uma enfermeira inglesa. Aliá s, ele deixou isso bem claro numa conversa que tivemos. O que ele falou com você? Ele disse, porventura, que você nã o era a pessoa indicada para cuidar da minha filha?

Felicitas tinha uma maneira tã o persuasiva de indagar as coisas que Justine abaixou a cabeç a, sem jeito.

— Talvez seu sobrinho tenha razã o. Nã o valeria a pena eu trabalhar alguns dias e reconhecer mais tarde que nã o vou me dar bem aqui. É preferí vel partir sem demora.

— Você costuma ceder tã o rapidamente assim diante das dificuldades? Eu sei que meu sobrinho pode ser um homem desagradá vel à s vezes, mas você nã o me parece o tipo de mulher que se deixa intimidar facilmente pela opiniã o dos outros. Você vai desistir antes mesmo de ter começ ado, sobretudo depois de ter feito uma viagem tã o longa? Por que nã o fica alguns dias, a tí tulo de experiê ncia? Eu estou disposta a aceitar sua decisã o se, dentro de uma semana, você achar que nã o convé m permanecer conosco.

Justine sabia que nã o devia ceder ao encanto e à simpatia da mulher, que nã o se tornara amarga e infeliz apó s perder o filho na flor da idade e ver a filha recé m-casada atacada de paralisia. Ela hesitou, portanto, antes de dar uma resposta. Sem perda de tempo, a marquesa puxou o cordã o da campainha que havia na cabeceira da cama.

— Eu vou pedir o café para você, ou chá, se você preferir. Vitó ria vai atendê -la enquanto você estiver em nossa casa. Apesar de sua fisionomia fechada, ela tem excelente coraç ã o. Até mais tarde, Justine.

Depois que a marquesa saiu, Justine deu um suspiro e chegou à conclusã o de que nã o tinha outra alternativa senã o atender à sugestã o da mulher de idade. Passaria uma semana na casa, a tí tulo de experiê ncia. Depois decidiria o que fazer da vida. Ela mordeu o lá bio com a impressã o que perdera a primeira batalha para uma mulher mais vivida e experiente e foi até a janela que dava para o jardim. Puxou a cortina pesada e deixou o sol entrar copiosamente no quarto.

Do lado de fora, a sacada formava uma varandinha onde havia cadeiras de vime e uma mesa redonda. Em potes de cerâ mica havia frutas de diversas qualidades e em vasos de barro algumas flores tropicais de perfumes fortes. Uma trepadeira subia pela grade de ferro e as abelhas estavam sugando ativamente o pó len das flores amarelas.

Justine foi novamente seduzida pelo encanto singelo da casa. A pequena varanda era o lugar ideal para sentar-se algumas horas por dia com um livro na mã o ou para bordar uma almofada, sem ser perturbada por ningué m. Que perfume era esse que sentia? Aspirou fundo e identificou o cheiro de tabaco, um aroma doce e penetrante que pairava no ar da manhã.

Havia plantaç õ es de fumo na fazenda, alé m das de cana-de-aç ú car? Artez dissera que a regiã o era quase tropical e que nasciam ali muitas plantas exó ticas.

Debruç ou-se na grade de ferro do balcã o e avistou um filete de á gua correndo pelo meio do jardim. Alé m do riacho, fazendo sombra para os pequenos arbustos, estavam palmeiras e coqueiros esguios, com as folhas compridas balanç ando levemente à brisa fresca da manhã. Avistou aves de diversas cores e plumagens voando entre as á rvores do jardim e ouviu trinados e gorgeios que nunca escutara antes na vida. Ouviu també m o canto estridente das cigarras, a voz do sol, insistente e afinado, vindo de diversos pontos simultaneamente, produzido por criaturas pequeninas que se agarravam aos galhos das á rvores.

Estava tã o absorta na visã o de tudo isso que nã o ouviu a criada entrar. Foi somente o som das chaves que ela carregava na cintura que a fez voltar a cabeç a para o interior do quarto. Vitó ria era a criada mais antiga da casa e tinha a incumbê ncia de arejar e espanar os quartos fechados. Por isso carregava consigo um molho enorme de chaves e tinha o apelido pitoresco de ama de Ilaves — a criada das chaves. Justine voltou-se surpresa e avistou uma mulher magra, alta, inteiramente de preto, com uma corrente comprida passada no cinto, onde estavam diversas chaves de vá rios formatos e tamanhos. A mulher era bem morena e tinha a pele coberta de rugas miudinhas. O olhar, no entanto, era penetrante e atento como o da velha marquesa.

— Bom dia. Dormiu bem a noite? Nã o estranhou a cama?

— Dormi muito bem, obrigada.

— O que você gostaria de tomar no café? — perguntou Vitó ria da porta. — Posso lhe oferecer chá ou café com leite. Nossa casa felizmente tem tudo que você possa desejar, se bem que algumas enfermeiras que estiveram aqui antes se queixaram comigo de nã o haver televisã o para assistirem aos programas preferidos.

Justine sorriu com o comentá rio da criada. A mulher, pelo visto, era uma personagem tí pica da Espanha, adepta fervorosa das tradiç õ es milenares que tinham sobrevivido à invasã o dos costumes novos.

Justine entrou no quarto sob o olhar penetrante da criada.

— Olhe, Vitó ria, eu tomaria com prazer um chá com biscoitos. Onde o café é normalmente servido? No quarto ou na copa? Outra coisa que gostaria de saber. Onde fica o banheiro?

— Eu posso trazer o café no quarto, se você preferir, embora seja mais prá tico descer à saleta que dá para o pá tio, que é mais clara e mais fresca que a copa, a essa hora da manhã. O banheiro fica logo aqui pertinho. Eu vou lhe mostrar onde é.

— Muito obrigada, Vitó ria.

Justine acompanhou a empregada pelo corredor sombrio, onde avistou diversas portas com almofadas lavradas em baixo relevo, com belos motivos ornamentais. Vitó ria parou no fim do corredor.

— Aqui é o banheiro. Como o rio corre das montanhas, à s vezes falta á gua durante algumas horas, porque a mesma caixa é usada para regar o jardim e o pomar. É preferí vel por isso tomar banho de chuveiro.

— Tem á gua quente?

— À s vezes sim, outras nã o. Depende da hora em que o fogã o de lenha foi aceso. É bom por isso você se habituar com banhos de á gua morna. Eu sei que no seu paí s há mais conforto que aqui, mas a fazenda oferece outras vantagens que você nã o encontra em lugar nenhum.

— Eu vou fazer o possí vel para me habituar com as condiç õ es daqui, Vitó ria. Gostei muito da casa. Por falar nisso, gostaria de esclarecer uma dú vida. A marquesa toma conta da fazenda sozinha?

— O marido da marquesa morreu há muitos anos e Manolito, o filho ú nico do casal, perdeu a vida nas touradas. O administrador da fazenda no momento é o sobrinho da marquesa. Foi ele que a trouxe ontem da estaç ã o. Normalmente é meu filho que dirige a charrete, mas Artez foi pessoalmente buscá -la na estaç ã o, porque o carro estava enguiç ado e meu filho foi comprar uma peç a na cidade, há muitos quilô metros daqui.

— Quer dizer que Artez é o administrador da fazenda?

— Exatamente. Ele toma conta de toda a propriedade há muitos anos. Manolito nã o se interessava pela fazenda nem pelas plantaç õ es, se bem que gostava de receber o dinheiro que a fazenda produz. Manolito tinha muita estampa e conversa, mas quem trabalha no duro é o sobrinho da marquesa. Ele nã o corre atrá s das mulheres bonitas; nem anda atrá s dos touros bravos. Ele é um homem pacato e ningué m vai mudá -lo.

Artez, pelo visto, tinha vergonha que o rosto desfigurado assustasse as mulheres, pensou Justine. Lembrou-se da face morena vista à luz do lampiã o, na sala da entrada e sentiu um calafrio. À meia-luz, Artez tinha uma semelhanç a incrí vel com Manolito. Como seria o rosto mutilado à luz do dia?

— Quer dizer que ele é o patrã o aqui?

— É, é o patrã o. Ele manda e desmanda. Se Cosima tivesse mais juí zo na cabeç a, teria casado com ele.

— Como? Os dois nã o sã o primos?

— Que importâ ncia tem isso? Os primos nã o se casam no seu paí s?

— Raramente.

— Pois aqui é muito comum e ningué m se espanta com isso. Se houver traç os bons na famí lia, os pais passam para os filhos.

— E se houver traç os ruins?

— Aí é que sã o elas...

— Talvez seja por isso que os dois nã o quiseram casar. Afinal, o irmã o de Cosima nã o era nenhum santo, como ouvi contar.

— Nã o, nã o era. Cosima gostava muito do irmã o, no entanto. Ela recebeu a notí cia e ficou muito abalada. Foi depois disso que começ ou a definhar e acabou paralí tica das pernas. A vida nem sempre é justa com as pessoas.

— Estou de acordo.

Matt fora atropelado estupidamente aos vinte e seis anos de idade. Justine costumava ver nos sonhos a imagem do homem que amava se transformar diante dos seus olhos num cadá ver. Ela sentiu um calafrio e estendeu a mã o para abrir a porta do banheiro.

— Posso tomar café no quarto, só hoje?

Vitó ria balanç ou os ombros com um gesto de resignaç ã o.

— Como você preferir. Eu vou buscar seu café.

— Muito obrigada, Vitó ria. Desculpe o incô modo.

— Nã o tem de quê. Eu estou à s suas ordens.

Justine já tinha entrado no banheiro quando Vitó ria lhe tocou no ombro.

— Eu soube que você é viú va.

— Pois é. Meu marido morreu há dois anos, num acidente.

— Que horror! Você é muito moç a para ser viú va.

Vitó ria saiu caminhando pelo corredor sombrio, acompanhada do ruí do das chaves que carregava na cintura.

Justine entrou no banheiro pensando consigo que se comprometera a permanecer pelo menos uma semana na fazenda. Ela nã o queria ficar, mas havia uma forç a contrá ria que a mantinha ali. Talvez fosse curiosidade. Simpatia nã o era, disso tinha certeza. Como podia sentir simpatia por um membro da famí lia de Manolito? Eram todos parentes, no fundo. Os pecados de uns eram os pecados dos outros. Ela sabia instintivamente que devia partir o mais rapidamente possí vel daquela casa. Entretanto, quando se inclinou para abrir a torneira de á gua quente, ficou gelada ao avistar uma aranha enorme, negra como piche, no fundo da banheira.

Em geral, ela nã o tinha medo de insetos que trepavam ou rastejavam pelo chã o. Mas dormira mal na noite anterior e todos os nervos estavam tensos com os acontecimentos recentes. Antes que pudesse controlar o pâ nico, deu um berro e levou as mã os à cabeç a, apavorada com a visã o da aranha na sua frente.

No mesmo instante a porta do banheiro foi aberta por fora.

— O que foi? Por que você gritou?

Ela voltou-se na direç ã o da voz e avistou Artez, de cabelos ú midos, o peito descoberto, vestido apenas com uma calç a preta, bem justa no corpo. No primeiro instante, ela olhou fascinada para o disco dourado que brilhava sobre o peito. A correntinha de ouro, passada em volta do pescoç o, estava escondida entre os pelos escuros. Aparentemente ele tinha acabado de tomar banho e correra ao ouvir seu grito.

Embora tivesse o costume de ver muitos homens despidos no hospital, Justine nunca vira antes um corpo masculino que transpirasse uma vitalidade tã o grande quanto o de Artez.

— Por que você está com essa cara?

Ela lembrou-se da aranha e ficou envergonhada com seu medo infantil. Apontou sem jeito para a banheira, sem saber o que dizer.

Artez seguiu a direç ã o do dedo e avistou a aranha no fundo branco da banheira.

— Ah, uma aranha! Eu pensei que fosse uma cobra...

— Era só o que faltava! Eu nã o tenho medo normalmente de aranhas, mas essa aí é horrenda! Eu nunca vi nenhuma igual na minha vida!

— Acredito.

Artez abaixou-se sobre a banheira, apanhou a aranha com as pontas do dedo e levou-a até a janela. Atirou-a para fora e voltou-se com ar displicente. Justine encarou-o no fundo dos olhos e ficou toda arrepiada quando viu o sol refletido no rosto dele. Nã o foi a cicatriz apenas que a surpreendeu — foi antes a semelhanç a enorme que tinha com Manolito. Os dois eram altos, fortes, de olhos negros como a noite.

— Você conversou com minha tia?

— Conversei.

— O que ela disse?

— Ela insistiu para eu ficar uma semana — respondeu Justine, afastando os olhos dele.

No instante seguinte, com a velocidade de um relâ mpago, Artez atravessou o banheiro e segurou-a pelo queixo, forç ando-a a encará -lo nos olhos. Ela se viu forç ada a examiná -lo de perto, contra sua vontade.

— Se você ficar aqui, verá todos os dias esse meu rosto desfigurado. Você treme de medo, nã o é verdade? Sente repugnâ ncia? A escolha é sua... Eu posso levá -la de volta para a estaç ã o agora mesmo e você nunca mais me verá de novo. Ontem à noite você suplicou que a levasse embora, está lembrada?

— Eu també m quero partir, mas prometi à marquesa ficar uma semana pelo menos. Nã o posso faltar com a palavra dada.

— Ah, já sei! Você tem curiosidade de conhecer a famí lia que é diretamente responsá vel por sua infelicidade. Você quer a resposta para a morte de seu marido e pensa que poderá encontrá -la aqui. Nã o é isso?

— Nã o sei. — Ela piscou para evitar encará -lo nos olhos. Nunca tinha visto antes olhos tã o negros e insondá veis quanto os dele. Olhar para ele era o mesmo que perder-se nas trevas da noite. — Eu nã o sei o que fazer. Estou meio confusa, mas nã o quero parecer uma covarde e fugir do compromisso que assumi com a marquesa.

— Você prefere ficar aqui e me odiar. — Ele apertou o queixo dela com mais forç a, a fim de obrigá -la a encará -lo de perto. — Olhe bem para mim durante o dia. Ontem à noite você disse uma coisa estranha, que eu era Manolito ressuscitado... Talvez seja verdade. Quando ele foi levado moribundo da arena, seu belo rosto estava desfigurado pela chifrada do touro, exatamente como o meu. Ele pagou sua dí vida, como nó s todos teremos que pagar um dia. Vá embora, enquanto é tempo. Volte para seu paí s e esqueç a que você esteve aqui.



  

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